Em fevereiro do presente ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou importantes ações a respeito da conflituosidade da tributação de softwares, dentre elas a ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) 1945[1] que perdurava sem decisão definitiva há mais de 20 anos.
Na oportunidade, a despeito de entendimentos divergentes, a Corte firmou entendimento, por maioria, no julgamento conjunto da ação supracitada e da de número 5659[2] no sentido da não incidência do ICMS e sim do ISS, rompendo com a insegurança jurídica e a guerra fiscal vertical entre os estados e municípios no que toca ao setor de tecnologia.
Antes de retratar, porém, os possíveis reflexos, convém relembrar o contexto normativo e tecnológico que permeou a referida conflituosidade:
Na década de noventa, ambiente que fomentou o início da discussão, havia o questionamento sobre a tributação da possível materialidade “física”, como os cds e os dvds. À época não eram relevantes questões referentes à “nuvem”, tampouco sobre as novas tecnologias que, cada vez mais, ganham enormes palcos de discussão. Com isso, a perquirição era: como tributar referida materialidade? Seria esta uma materialidade física (mercadoria), por meio de sua circulação com incidência via operação mercantil, ou tributar-se-ia o conteúdo inserto nesta? (software/licença de uso) ou ainda a prestação do serviço?
Vale lembrar que em Recurso Extraordinário (RE) 176.626, o STF teve a oportunidade de se pronunciar sobre a temática e uma turma da Corte apontou tratar-se do imposto sobre circulação de mercadorias e serviços (ICMS), portanto, de âmbito estadual.
A decisão que foi proferida em 1998 teve como perspectiva o que impulsou a dicotomia entre software de “prateleira”, aquele realizado em grande escala comercial e materializado em suporte físico, e software “customizado”, aquele personalizado (sob encomenda). Todavia, nada se decidiu no mérito.
Sobre o assunto, registra-se importante dizer do Professor Lucas Galvão que, no XVII Congresso do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET) – “Texto e Contexto”, foi enfático no sentido de que a discussão sobre a tributação do software tem sido do “ouvir dizer”, sem preservar sua origem, com consequências no desejo que o sujeito gostaria que fosse e não a verdade objetiva dos fatos (verdades do emissor x verdades da vontade).
Percebe-se, por conseguinte, que a interpretação que se transformou em “verdade” foi a de que para os casos de softwares de “prateleiras”, haveria a incidência estadual de ICMS, ao passo que para os “customizados” haveria a tributação municipal via ISS.
Somando o avanço tecnológico e normativo dos municípios e estados, por meio sobretudo das Leis Complementares (LC) 116/2003, 157/2016, que dispõem sobre o ISS, e Convênios ICMS 181/2015, bem como 106/2017, a disputa se acirrou e, sem qualquer respaldo da Corte, muitos contribuintes passaram a recolher o tributo por meio também da interpretação que se criou e alguns entes a utilizaram como parâmetro em suas orientações.
À guisa de exemplo, destaca-se Solução de Consulta (COSIT) nº. 303/2017 da Receita Federal do Brasil (RFB) sobre contribuição para o PIS/PASEP e a COFINS-Importação em que o trecho a seguir torna evidente como a interpretação foi difundida:
Desta maneira, considerando-se o software de prateleira vendido no varejo como mercadoria, como assim decidido pelo STF no RE nº 176.626-3 (SP), o valor aduaneiro relativo à importação dessa espécie de programa de computador seria definido unicamente pelo valor ou custo do suporte físico propriamente dito, isso se o custo dos dados e instruções constasse destacado do valor do suporte físico no documento fiscal (…)
Portanto, tendo em vista que as bases de cálculo da Contribuição para o PIS/Pasep-Importação e da Cofins-Importação na importação de mercadorias são definidas pelo valor aduaneiro, conclui-se que não incidem essas contribuições na hipótese de importação de softwares de prateleira por meio de download.
De outra parte, haja vista que os contratos de licenciamento e de sublicenciamento de uso de softwares podem conter requisitos que indiquem prestação de serviços, a exemplo da manutenção, do suporte e do treinamento, como anteriormente explanado no item 20, convém acrescer que os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos a residentes ou domiciliados no exterior, como contraprestação à prestação desses serviços, constituem as bases de cálculo da Contribuição para o PIS/Pasep Importação e da Cofins-Importação, nos termos e nas condições do inciso II do art. 7º da Lei nº 10.865, de 2004. (Grifo nosso)
Posto isso, parece clarividente a tendência brasileira de fixar “precedentes”, intensificando-se o fenômeno principalmente com o advento do Código de Processo Civil de 2015, inclusive, muitas vezes de forma destoante, inaugurando o percurso de “frases sem texto” e da enunciação aforizante[3].
Com isso, percebe-se que a recente decisão poderá influenciar em outros aspectos na seguinte medida: utilizando-se como paradigma o voto condutor do Ministro Dias Toffoli, percebe-se que a “tese vencedora”, apontada por ele, consolidou importantes argumentações, como a importância do papel da lei complementar, em sua clara exposição no sentido que para a orientação tradicional da Suprema Corte, o simples fato de o serviço encontrar-se em lei complementar já daria ensejo a esta tributação. Nesse sentido, os respectivos itens da lista de ISS, já estariam aptos a afastar o ICMS.
O raciocínio foi construído pois a própria Constituição prescreveu que “compete aos municípios instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar”. Ademais, o constituinte deu ao legislador complementar o importante papel para dispor sobre os conflitos de competência em matéria tributária, além de definir as bases de cálculo, os fatos geradores e os contribuintes da espécie tributária impostos.
Não é novidade que a dualidade entre “tipos” (mais abertos) e conceitos (mais fechados) no âmbito da Constituição há muito se apoderou das discussões doutrinárias, contrariando o entendimento daqueles que, por entenderem que a lei complementar extrapolou a materialidade e o conceito mínimo semântico da Constituição, defendiam a competência residual.
Ocorre que aquele que detém o poder da última palavra, majoritariamente, não pareceu assim concordar. Como se sabe, a disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, por exemplo, também consta em item 1.09, introduzido pelas alterações da LC 157/2016, o que poderá significar a prevalência da opção do legislador complementar seguindo o raciocínio do Ministro também para casos como esse. A consequência é o possível término da guerra fiscal entre estados e municípios inclusive nas questões referentes ao streaming.
Aliás, a ADI 5958[4], que buscou a declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto de dispositivo da Lei Kandir, lei complementar que dispõe sobre o ICMS, com objetivo de afastar a incidência do imposto estadual em relação às operações sobre programas de computador, além de atacar Convênio ICMS, foi extinta em fevereiro, justamente por perda superveniente de objeto, o que corrobora com a perspectiva da tese consolidada no sentido de inconstitucionalidade de ICMS na tributação de tecnologia.
Com isso, conclui-se que a decisão foi de suma relevância não tão somente aos estados e municípios, rompendo possivelmente com critérios antigos, o que poderá influenciar novos rumos da tributação em aspectos que se tangenciam a decisão ao se concluir majoritariamente que as operações não implicam a transferência de propriedade do software e sim licenciamento ou cessão de direito de uso (item 1.05 da lista da LC 116/2003), que, na visão do Ministro Relator, inaugura um fazer humano, com consequência na tributação municipal incidente na prestação do serviço anexo à lista da lei complementar e sobretudo pelo respaldo da importância do papel do legislador complementar.
Deve-se ter em mente, contudo, que a decisão se referiu aos aspectos de softwares das ADI 1945 e 5659, o que significa que qualquer afirmação absoluta poderá resultar no fenômeno distorcido já enfatizado, o que se busca evitar.
Lado outro, há fortes indícios de que os reflexos da decisão poderão transcender a própria normatividade em análise. Aliás, é o que se espera. Veremos em cenas dos próximos capítulos, na expectativa de maior segurança jurídica. Será que finalmente obtivemos um ponto final?
[1] Ajuizada contra a Lei nº. 7.098/98 do Mato Grosso com previsão de tributação estadual de programas de computador, que consolida normas referentes ao ICMS.
[2] Proposta em face do Decreto estadual 46.877/2015 de Minas Gerais e outros diplomas legais.
[3] O fenômeno da enunciação aforizante advém do livro de Dominique Maingueneau “Frases sem Texto”, no qual consiste, dentre outros aspectos, do percurso da destacabilidade em que um conjunto de certas frases são destacadas e podem eventualmente circular fora do seu texto de origem com possibilidade de outra atribuição de sentido.
[4] Ação ajuizada com o objetivo de questionar o Convênio ICMS 106/2107, que disciplina os procedimentos de cobrança de ICMS nas operações envolvendo bens e mercadorias digitais comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados, bem como pretensão de declaração de inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, de dispositivo Lei Complementar 87/1996 (Lei Kandir), para afastar qualquer possibilidade de incidência do tributo sobre operações que envolvam programas de computador (softwares).