Desde a edição da Portaria MME nº 514/2018[1], a qual estabeleceu o cronograma de abertura do mercado de energia no Brasil, ou seja, que permitiu a um rol muito mais amplo de consumidores escolher o seu fornecedor de energia elétrica, governo, consumidores e agentes do denominado Mercado livre (ACL no jargão setorial) aguardam ansiosamente que esta abertura propicie a desejada redução do custo da energia aos consumidores finais.
Em uma linha: a criação de um mercado competitivo onde consumidores (inclusive residenciais) teriam ampla liberdade para a escolha do seu fornecedor de energia elétrica para reduzir o preço desse insumo fundamental para o conforto da população e crescimento da economia.
Para viabilizar tal cenário, a Agência Nacional de Energia Elétrica (“ANEEL”) abriu a Tomada de Subsídios nº 010/2021 para a obtenção de subsídios à elaboração de estudo sobre as medidas regulatórias necessárias para permitir a abertura do mercado livre para consumidores com carga inferior a 500 kW, incluindo o comercializador regulado de energia e proposta de cronograma de abertura iniciando em 1º de janeiro de 2024[2].
A abertura do mercado de energia abre a possibilidade de os consumidores escolherem os atributos ambientais das fontes utilizadas para o atendimento do seu suprimento, fomentando-se a adoção dos certificados de energia (I-RECS), que ensejarão um abastecimento lastreado em fontes renováveis[3]; ofertas conjuntas de fornecimento com gás natural e até mesmo projetos integrados com recursos distribuídos[4].
O objetivo deste artigo é apontar as principais questões para a construção de um mercado realmente competitivo e que conduza à redução dos preços da energia elétrica no país.
Cabe esclarecer, de logo, que a cada R$ 100,00 (cem reais) cobrados dos valores refletidos na sua conta de luz, apenas R$ 20,00 (vinte reais), em média, são destinados à distribuidora, e os demais R$ 80,00 (oitenta reais) correspondem a impostos e encargos setoriais, custos com a aquisição de energia elétrica e custos de transmissão da energia[5].
Fonte: ABRADEE
Observa-se assim que as distribuidoras não são as responsáveis pelo alto custo da energia elétrica no Brasil, sendo tal custo fortemente impactado pelos impostos incidentes na distribuição de energia e encargos setoriais.
Notem que dois são os principais itens de pressão que oneram a tarifa de energia no País. O primeiro são os encargos setoriais e os tributos, já abordados em outro artigo recente onde propõem-se o enfrentamento desta questão na reforma tributária[6]. A segunda pressão está na compra de energia basicamente influenciada pelo modelo regulatório e legal de compra de energia onde as distribuidoras adquirem essas energias em leilões públicos de fontes variadas organizados pela ANEEL e Ministério de Minas e Energia (“MME”), a partir dos estudos da Empresa de Pesquisa Energética (“EPE”), para atendimento de 100% do mercado consumidor dessa distribuidora, em especial a aquisição de energia firme (térmicas, por exemplo) para garantia de suprimento de energia elétrica para toda sociedade (inclusive aqueles consumidores que estão no mercado livre e todos os demais tipo de consumidores como os chamados prossumidores).
É exatamente isso. Quem sai do mercado cativo passa a poder adquirir sua fonte de energia (limpa e mais barata), mas sem garantia de suprimento em razão da intermitência das fontes renováveis (como a solar e a eólica). E essa garantia de fornecimento de energia a cada instante é dada pela distribuidora local que paga um valor mais caro por um mix de energia (firmes e intermitentes) conforme dito acima.
Num momento em que se fala intensamente sobre ESG (sigla em inglês que se refere aos aspectos sociais, ambientais e de governança), inúmeras empresas adotam políticas para se amoldarem as exigências do ESG, privilegiando-se a aquisição de energia proveniente de fontes 100% renováveis, sobretudo eólica e solar. No entanto, a estrutura atual do mercado permite a segurança do suprimento das empresas que migram aceleradamente para o ACL, mas esta segurança é custeada somente pelos outros consumidores, normalmente aqueles mais vulneráveis e que não possuem recursos para a instalação de um painel solar ou migrar para o mercado livre.
Dito de outro modo, na atual arquitetura setorial, as empresas que estão adotando a aquisição de energia 100% limpa para seus negócios não estão atendendo o critério S do ESG, pois estão inadvertidamente aumentando o custo da tarifa dos consumidores. E pior, imaginemos que todos possam migrar para o mercado livre ou ter o seu painel solar próprio, a pergunta que fica é: quem pagará a conta da energia firme necessária para garantir suprimento para a sociedade 24 horas por dia?
Importante ressaltar que é o mix da distribuidora local que garante a segurança de fornecimento de energia ao mercado livre, porém esse mercado livre pagará um custo pela aquisição de energia muito menor do que o consumidor regulado (ou cativo) ligado à distribuidora, dado que a energia adquirida no ACL não arca com o custo de segurança do suprimento de energia.
O quadro abaixo[7] demonstra com maior clareza como são distribuídos os custos de energia e o que cada tipo de consumidor paga em relação a tais custos. Nota-se uma enorme distorção causado pelo fato de o custo da segurança elétrica para todos os consumidores ser pago somente pelos consumidores cativos. Veja-se:
*a conta ACR do quadro acima foi integralmente liquidada.
As dificuldades para que a criação de um modelo competitivo no fornecimento de energia ao consumidor final são conhecidas entre os especialistas, sendo adequadamente apontadas na Tomada de Subsídios nº 010/2021, mas dois pontos merecem ser amplamente divulgados entre o público, sob pena de repetirmos os equívocos da MP nº 579/2012, que sob a justificativa de reduzir o preço da energia, produziu um passivo bilionário pago por toda a sociedade brasileira na forma de tarifas mais altas.
O primeiro ponto de atenção é em relação aos chamados contratos legados, termo que significa simplesmente a existência de contratos de longo prazo firmados pelas distribuidoras de energia com geradoras. Atualmente as distribuidoras de energia possuem a obrigação regulatória de atendimento integral ao seu mercado consumidor, ou seja, precisam contratar energia suficiente para o atendimento da necessidade de energia elétrica da sua área de concessão.
Mesmo que referida obrigação regulatória deixasse de existir, as distribuidoras de energia estariam obrigadas ao pagamento das geradoras pela energia contratada, havendo a garantia de repasse do custo para os consumidores cativos (aqueles que contratam a energia com a distribuidora local) ou o direito de cobrar da União os prejuízos decorrentes da liberalização.
As distribuidoras e geradoras de energia, em função da natureza de seus contratos, possuem uma série de garantias legais e contratuais relativas à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro, ou seja, a evidente necessidade de prévia rescisão dos contratos de fornecimento celebrados pelas geradoras e distribuidoras de energia dependeria de anuência e aceite por parte dos contratantes, sob pena de intensa judicialização da questão.
É de se esperar que tais contratos de longa duração (cerca de 25 a 35 anos) somente serão rescindidos em caso do oferecimento de vantagens financeiras substanciais, dado que hoje as geradoras possuem contratos com preço definido para a venda de praticamente toda a energia que produzem, tudo isso num ambiente virtualmente sem inadimplência.
Não está claro quem arcará com o custo dos incentivos financeiros imprescindíveis para a redução do montante de contratos legados, mas invariavelmente serão ou os consumidores cativos ou os contribuintes brasileiros.
A definição de um cronograma adequado de abertura do mercado, em que se respeitem as garantias legais e contratuais tanto das geradoras quanto das distribuidoras de energia é crucial para o êxito da abertura, sob pena de intensa judicialização e custos ocultos que diminuem os benefícios da proposta ou, em casos extremos, a torna mais onerosa que o modelo anterior.
A reflexão madura e crítica quanto aos custos da transição para um modelo liberalizado do mercado de energia não é um impeditivo para o avanço da proposta, mas sim um necessário passo para a estruturação de um ambiente competitivo, com preços módicos, segurança do fornecimento de energia e estímulo à adoção de novas tecnologias.
O segundo ponto de reflexão necessário é relativo ao estímulo de novas tecnologias na matriz elétrica brasileira. O sucesso atual visto na popularização de tecnologias como a geração proveniente de plantas eólicas, solar-fotovoltaicas e biomassa é proveniente de um amplo investimento público (leilões públicos) e privado (prossumidores, por exemplo) para dar escala e receita recorrente a novas tecnologias quando essas não eram competitivas em termos de custo.
A disseminação dessas tecnologias no parque gerador brasileiro foi em grande medida decorrentes de uma exitosa estratégia de leilões de energia organizada pela ANEEL e pelo MME[8].
Se hoje há disponibilidade de projetos de parques eólicos e solar-fotovoltaicos com preços extremamente convidativos no mercado livre, isso decorre de mais de uma década de leilões de energia, o que permitiu a criação de uma ampla rede de fornecedores nacionais, a vinda de investimentos estrangeiros e o desenvolvimento de know-how entre os técnicos e engenheiros brasileiros.
No momento em que se vive uma verdadeira revolução no setor elétrico, com o desenvolvimento de microgrids, sistemas de baterias, eficiência energética e a própria energia passa a ser vista cada vez como um serviço (Energy-as-a-Service), crucial o apoio governamental para que essas tecnologias se traduzam em tarifas mais baratas, emprego e geração de riqueza no país.
A abertura do mercado de energia ainda não apresenta claramente uma estrutura de incentivo que permita que essas tecnologias revolucionárias se tornem relevantes no Brasil e que as empresas locais se transformem em players relevantes num mercado global.
Conclusivamente, a liberalização do mercado de energia elétrica é um movimento que adiciona competição e liberdade de escolha aos consumidores, propiciando novas ofertas que atendam às necessidades dos mais diversos perfis de consumidores. E para que seja efetiva exigirá a implementação de uma tarifa multipartes ou binômia (que permita a segregação da energia do serviço de redes), da desverticalização da comercialização atualmente dentro da distribuidora, e da segregação de lastro e energia, cujas soluções já estão abarcadas em parte no PL 414/2021 na Câmara dos Deputados. Uma transição que desconsidere os contratos legados e a alteração legal e regulatória na forma como a segurança de fornecimento é rateada entre os consumidores, está fadada a repetir os piores equívocos da intervenção estatal no setor elétrico, usualmente causados por uma busca voluntarista de redução dos custos, oferecimento de respostas fáceis e erradas a problemas complexos, bem como de privilégios de uns em detrimento de outros.
A liberalização do mercado de energia é uma tendência global, mas que não pode prescindir de uma reflexão crítica sobre os reais benefícios, custos de transição e especificidades legais e regulatórias do contexto brasileiro.
[1] MME. Portaria nº 514, de 27 de dezembro de 2018. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/57219064/do1-2018-12-28-portaria-n-514-de-27-de-dezembro-de-2018-57218754 Acesso: 25 jun. 2021
[2] ANEEL. Tomada 010/2021. Disponível em: https://www.aneel.gov.br/tomadas-de-subsidios?p_auth=z5VT0Gne&p_p_id=participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet&p_p_lifecycle=1&p_p_state=normal&p_p_mode=view&p_p_col_id=column-2&p_p_col_count=1&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_ideParticipacaoPublica=3561&_participacaopublica_WAR_participacaopublicaportlet_javax.portlet.action=visualizarParticipacaoPublicaAcesso: 25 jun. 2021
[3] Para mais informações sobre I-RECS, ver, dentre outros. JOTA. ESG meets I-Recs. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/vozes-negras-no-direito/esg-meets-i-recs-14042021 Acesso: 25 jun. 2021
[4] Para mais informações sobre recursos distribuídos, ver: ARENAWIRE. What are distributed energy resources and how do they work? Disponível em: https://arena.gov.au/blog/what-are-distributed-energy-resources/ Acesso: 25 jun. 2021
[5] ABRADEE. Tarifas de Energia. Disponível em: https://www.abradee.org.br/setor-de-distribuicao/tarifas-de-energia/ Acesso: 25 jun. 2021
[6] https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-modernizacao-do-setor-eletrico-e-a-reforma-tributaria-sua-conta-de-luz-pode-reduzir-25/ Acesso: 25 jun. 2021
[7] Extraído do artigo https://www.poder360.com.br/opiniao/economia/o-tcu-e-o-acerto-de-contas-na-geracao-distribuida-por-wagner-ferreira/
[8] ANEEL. Novo cronograma para leilão de fontes alternativas já está disponível para consulta. Disponível em: https://www.aneel.gov.br/home?p_p_id=101&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_mode=view&_101_struts_action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_returnToFullPageURL=%2F&_101_assetEntryId=14821485&_101_type=content&_101_groupId=656877&_101_urlTitle=novo-cronograma-para-leilao-de-fontes-alternativas-ja-esta-disponivel-para-consulta&inheritRedirect=true Acesso: 25 jun. 2021