A educação digital é um tema de considerável relevância nas últimas três décadas. Na era da inteligência artificial, do big data, das criptomoedas e da automação, a educação muitas vezes é tratada como um meio de preparar e motivar os jovens a trabalhar no futuro mercado digital. Nesse sentido, as tecnologias digitais no campo educacional são constantemente celebradas como um conjunto de iniciativas que melhoram o sucesso educacional. Mas, em geral, é na indústria que se prescreve e se desenvolve essa inovação digital. Desse contexto, emergem algumas questões: a educação tradicional está realmente quebrada? A educação digital surge para aprimorar o modelo atual? Neste artigo, vamos aprofundar essa discussão.
A promessa da educação digital
Tecnologias digitais se tornaram primordiais para abordar o problema do acesso à educação. Inclusive, a motivação inicial do microcomputador pessoal (lá no final da década de 1980) já era trazer a computação para as pessoas comuns.[1] Isso justifica, aparentemente, o motivo pelo qual pessoas encaram as tecnologias digitais como uma possibilidade de acesso mais completo, fácil e equitativo à educação. Porém, o digital não é só uma maneira de oferecer novas formas convenientes e baratas de acessar a educação. As tecnologias digitais também podem agir para reduzir – ou mesmo remover – barreiras para a participação ativa de pessoas que não têm acesso à educação. O digital pode oferecer uma nova perspectiva de mundo, proporcionando aos usuários, sejam eles professores ou estudantes, experiências em realidades não antes exploradas.[2]
Com isso, a educação digital ganha uma dimensão de potência, no sentido de que pode devolver ao cidadão comum o poder que é conferido junto às tecnologias digitais. O digital não vem como uma sucessão de verbos para “consertar” ou “melhorar” ou “revolucionar” a educação, mas sim para alterar qualitativamente o que a educação sempre pôde fazer: ensinar pessoas a lerem o próprio mundo com os próprios olhos e concepções. Por isso, políticas de incentivo à educação digital são tão importantes: pois são mais um passo em direção à emancipação social e cultural.
Política Nacional de Educação Digital (PNED)
Na última semana, o Congresso Nacional aprovou a Política Nacional de Educação Digital (PNED)[3], uma nova diretriz nacional que possui quatro eixos com ações específicas para digitalização do ensino: inclusão digital; educação escolar; capacitação e especialização digitais; e pesquisa e desenvolvimento em tecnologias da informação e comunicação. O texto foi originalmente escrito pela deputada Ângela Amin (PP-SC), e altera parcialmente a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)[4], tendo caráter complementar às políticas nacionais, estaduais e municipais já existentes de forma a convergir esforços de municípios, estados, Distrito Federal e União para formar pessoas aptas a se posicionarem no futuro mercado de trabalho.
PNED: debates e recomendações
A principal justificativa do lançamento da PNED é que as competências digitais não são apenas uma suposta garantia no futuro mercado digital para brasileiros, mas também um mecanismo para manter crianças, jovens e adultos interessados no ambiente escolar. O ano de 2022 foi desafiador no quesito de evasão escolar. Pesquisas mostram que dois milhões de jovens entre 11 e 19 anos estão fora da escola[5], e não têm condições ou interesse em retornar para terminar o ensino fundamental ou médio. Neste quesito, a hipótese de que a PNED venha também para motivar a futura classe trabalhadora a permanecer na escola é bem-vinda. Porém, deve ser acompanhada de outros mecanismos sociais que promovam uma cultura de valorização educacional.
Importante ressaltar que a PNED teve na sua aprovação alguns vetos e, dentre eles, está a inclusão de competências digitais na educação básica, em especial nos primeiros anos de ensino. Este ponto permanece em discussão. O argumento principal para o veto é de que não é benéfico que crianças tenham acesso demasiado às telas nos primeiros anos de escolaridade. Contudo, algumas pesquisas demonstram efeitos positivos do uso de tecnologias na primeira infância, utilizando como base os princípios para o desenvolvimento cerebral e comportamental[6].
A PNED tem uma abrangência que compele um incentivo ao desenvolvimento da cultura digital na educação. Entretanto, é interessante ressaltar o cenário em que o Brasil, em seus estados e regiões, há 20 anos, já possui, em maior ou menor amplitude, um histórico de políticas e dispositivos legais que preveem a educação digital. Nesse sentido, acreditamos que a primeira tarefa seria efetuar um mapeamento desses mecanismos com base contextual para entender como as diferentes localidades do território têm trabalhado para promover competências digitais em vários níveis de ensino.
Ao longo desse mapeamento a nível imaterial, valeria a pena que a PNED tivesse como uma de suas primeiras fases o mapeamento de equipamentos e dispositivos existentes em vários pontos do Brasil para entender a ociosidade, ou não, de hardware em centros informacionais, culturais e educacionais públicos. Esse mapeamento é relevante, pois poderia identificar não apenas as estratégias financeiras para cobertura de necessidades físicas na provisão de educação digital, mas também compreender quais tipos de hardware e software são mais aderentes a certos grupos populacionais e comunidades.
Uma vez feito esse mapeamento, a segunda fase seria a averiguação das lacunas tanto infraestruturais quanto orçamentárias que poderiam ser apoiadas pela PNED. Seguindo essa linha de debate, a PNED também pontua que ferramentas de autodiagnóstico sobre nível e experiência digital são interessantes para que cidadãos possam se autoavaliar sobre as suas competências, o que nos parece uma proposta assertiva. A autoavaliação tem se mostrado uma importante ferramenta em vários países para promover o “upskilling“[7], trazendo a esfera do poder avaliativo para a pessoa avaliada. Esta parece ser uma medida que pode dar certo na implementação de programas e centros digitais ao redor do país. E, talvez, poderíamos pensar em ferramentas de autoavaliação para escolas, instituições, organizações e esfera pública municipal e estadual, de tal modo que essa autoavaliação possa ter vários níveis de execução e implementação, acelerando resultados e qualificando este debate.
Outro tema relevante sobre o assunto é a certificação e especialização de professores. Tecnologias digitais são uma vertente em constante mudança, com alterações e novidades praticamente diárias, e o mercado de trabalho acompanha essa tendência. Por exemplo, após a pandemia de Covid-19, o trabalho remoto tomou uma considerável parcela das atividades comerciais, plataformas de reunião e vídeo online e à distância já são requeridas como elementos dominados pela força de trabalho atual. Com isso, professores e educadores devem estar a par dessas mudanças de modo a adicioná-las e discuti-las nos seus planos de ensino.
A PNED traz esse ponto da capacitação do quadro docente, mas é necessário chamar atenção para a valorização da figura de professores e educadores, especialmente em como essas capacitações possam ser convertidas em planos de desenvolvimento de carreira, horas de trabalho computadas e valorização financeira. Além disso, talvez valha a pena trabalhar com o quadro de gestão escolar e os próprios educadores sobre o exercício da gestão de prioridades dentro do ambiente pedagógico.
Sabemos muito bem que parte dos centros educacionais brasileiros estão sucateados e que as atividades “extracurriculares” perdem prioridade quando competem com a manutenção e sustentação de escolas. Porém, imaginemos um cenário em que não é preciso escolher entre construir uma parede e instalar um ponto de internet. Em que não é necessário escolher entre aprimorar a merenda ou comprar equipamentos para o ensino de robótica. Imaginemos um cenário em que pudéssemos ter a estrutura e segurança necessária, combinada com estabilidade para os profissionais e com centros digitais equipados para que os jovens permaneçam interessados e curiosos sobre seu próprio futuro. Isso é possível e a PNED pode viabilizar mecanismos para que o melhor de todos os mundos se encontre no meio de campo chamado educação.
Esse cenário pode também ser incentivado pela pesquisa e ciência, ou seja, com a atuação de instituições de ensino superior que privilegiam esse tema de investigação e praticam a “Ciência Aberta”. A atuação profissional de qualidade é intrínseca à atividade das Instituições de Ensino Superior, de forma a criar uma retroalimentação entre o que é estudado pelas Universidades e o que é aplicado no mercado de trabalho e nas escolas com outros níveis de ensino. Naturalmente, esse relacionamento não é novidade para nós, pode ser evidenciado e encorajado através de mecanismos legais que assessorem a promoção da cultura digital em todas essas esferas. Além disso, a qualificação da concepção sobre tecnologia educacional apoiada pela ciência pode evitar práticas de determinismo tecnológico, de obsolescência programada e de ociosidade de recursos existentes.
Em suma, a PNED se prova um mecanismo bastante promissor, mas vale ressaltar que a instrumentação legal da educação digital não é novidade. Portanto, temos também muito a aprender com a história brasileira em adequar, aplicar e executar esses mecanismos nos mais diversos cenários. Com a PNED, temos uma nova proposta de futuro. Porém, devemos dar ouvidos aos atores que estão na outra ponta da linha todos os dias: os educadores, os professores, os gestores, os estudantes e toda a comunidade escolar. Vamos tomar a oportunidade de dar ouvidos a esse grupo para que possamos construir uma forte política digital para educação, que seja referência nacional e internacional. Nós temos tudo para que isso aconteça, só basta acreditar e jogar as peças certas.
[1] BONAMI (2021). Dez Categorias que Expressam a Interface entre Tecnologia Digital, Comunicação e Educação: instrumento, empoderamento e rede de actantes. Universidade de São Paulo, Brasil.
[2] BONAMI (2022) Abstraction Clusters to Understand Digital Development: introducing the SETA model. Tübinger University Press, Germany.
[3] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/154469
[4] http://portal.mec.gov.br/conselho-nacional-de-educacao/base-nacional-comum-curricular-bncc
[5] https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/dois-milhoes-de-criancas-e-adolescentes-de-11-a-19-anos-nao-estao-frequentando-a-escola-no-brasil
[7] https://repositorio.pucsp.br/bitstream/handle/30292/1/Luiz%20Henrique%20Piazentini.pdf