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Coronavírus e a tragédia dos comuns

Como evitar que o uso desmedido de recursos por alguns ponham todos em risco?

Roma/Coronavírus: Voluntáriosda Anpas fazem compras de supermercado e entregam em casa. Crédito: Fotos Públicas

Imagine pequena comunidade de criadores de gado em que há um pasto compartilhado. Individualmente, cada morador poderia pensar que seria mais vantajoso adquirir novo animal: aumentariam seus lucros ao comercializar os produtos derivados. Mas, se todos os moradores tiverem a mesma ideia, a degradação causada pelos novos bois levará ao perecimento da área.

Algo similar ocorre na hipótese da Covid-19: nos últimos dias, foram registradas corridas por álcool gel, máscaras, papel higiênico. Aqueles com maior poder aquisitivo (ou que simplesmente chegam primeiro) fazem estoque, enquanto o restante da coletividade não consegue ter acesso a eles. A impossibilidade de acesso prejudica a saúde e a higiene dos mais desfavorecidos e aumenta o risco de contaminação de toda a sociedade – inclusive dos que chegaram primeiro às farmácias e aos supermercados.

O dilema entre o interesse pessoal e o bem-estar da coletividade já foi caracterizado como a tragédia dos comuns. Embora a expressão exista desde o século XIX, ganhou popularidade em 1968, com o lançamento de livro do ecologista Garrett Hardin, no qual o autor alertava para os riscos de perecimento de recursos naturais no caso de sua exploração desmedida.

A partir da popularização da tragédia dos comuns, uma série de estudiosos passou a buscar soluções para os problemas que surgem do compartilhamento de recursos, sobretudo nos casos em que os ganhos são privatizados, mas as perdas são coletivas.

Libertários defendem que a privatização do bem compartilhado geraria incentivos para que o novo proprietário o preservasse e promovesse uma exploração sustentável; porém esse raciocínio encontra obstáculos salientados pela crise atual.

Nem todos os bens podem ser privatizados (quem seria o proprietário da saúde pública?), e há casos em que as perdas têm origem difusa e o proprietário não seria capaz de minimizá-las (ainda que houvesse um proprietário desses “bens”, como ele poderia impedir danos que vêm de todas as partes do mundo?).

Por isso, a solução mais comumente invocada é a regulamentação do uso daquele bem comum pelo poder público, de modo a estabelecer quantidades máximas que podem ser exploradas ou adquiridas, requisitos a serem cumpridos pelos usuários, períodos de defeso e sanções pelo descumprimento das regras.

Mas há terceira via: os próprios particulares podem construir regras consensuais para a utilização do bem, viabilizando uma exploração que mantenha aqueles recursos para gerações futuras.

Essa solução, baseada no teorema de Coase, possui como vantagem a redução dos cursos de transação e, consequentemente, de efetivação, já que as regras para o uso sustentável do bem compartilhado são construídas em comum acordo.

Em tempos pandemia global, imagens de prateleiras vazias e relatos de falta de testes para a doença remetem instantaneamente à tragédia dos comuns. Afinal, se alguns esgotam produtos alimentícios e de higiene no supermercado, este grupo poderá até se beneficiar individualmente, porém as perdas para a sociedade são graves.

Da mesma forma, se os que podem pagar pelo teste para a enfermidade esgotam todo o estoque de kits e concentram em si toda a capacidade de análise laboratorial, o sofrimento coletivo e o risco de um crescimento do número de contágios por pessoas que não sabem que têm a doença são ainda maiores.

É necessário evitar a todo custo que a epidemia da COVID-19 se torne mais um exemplo da tragédia dos comuns. Já existem regulações governamentais que permitem a limitação da compra de produtos por cada consumidor e a aplicação de sanções sobre estabelecimentos que praticam preços abusivos. Falta, agora, a conscientização coletiva de que não basta o estabelecimento de normas cogentes: soluções consensuais e bom-senso também são bem-vindos nestes tempos difíceis.

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