mensagens do além

Prova sobrenatural: quando o espírito ‘comunica’ a sua versão dos fatos

Admissão de cartas psicografadas em processos judiciais viola o contraditório e a racionalidade

prova sobrenatural
Crédito: Unsplash

“Temos que dar credibilidade à mensagem de fls. 170 […] em que a própria vítima, após a morte, vem relatar e fornecer dados ao julgador para sentenciar” (Anexo A). Com essas palavras, em 27 de outubro de 1979, o juiz Orimar de Bastos absolveu sumariamente José Divino Nunes da acusação de homicídio doloso pela morte de Maurício Garcez Henrique, amigo de Nunes. 

O caso despertava empatia. De acordo com os autos, no dia 8 de maio de 1976, Henrique estava na casa de Nunes quando encontrou uma pasta deixada sobre a mesa com um revólver. Retirou a munição do tambor e começou a brincar com a arma. Nunes não gostou, pois não queria que Henrique brincasse com os pertences de seu pai. Eles discutiram e, em seguida, Henrique decidiu sair do cômodo em que estavam para buscar cigarros. Neste momento, Nunes, que segurava o revólver, estendeu o braço para mexer em um rádio e, sem querer, puxou o gatilho. A bala atingiu Henrique no momento em que retornava ao cômodo. Ele não resistiu ao ferimento.

Nunes alegou perante as autoridades que jamais tivera  a intenção de matar seu amigo. Apesar disso, o Ministério Público o denunciou por homicídio doloso. Ainda na primeira fase do Júri, Nunes foi absolvido sumariamente pelo juiz Orimar de Bastos, com base na imprevisibilidade do resultado: como os jovens poderiam imaginar que restava uma munição no revólver? O juiz argumentou ainda que não se podia falar em dolo ou culpa, de modo que a conduta de Nunes não se enquadrava em nenhum dos crimes tipificados no Código Penal. Contudo, devido ao recurso do Ministério Público, o caso foi levado ao Tribunal de Justiça, que reformou a decisão. Nunes foi pronunciado e o seu destino foi parar nas mãos dos jurados.

No intervalo até a data do julgamento, o conhecido médium Chico Xavier escreveu cartas cujo conteúdo foi atribuído ao espírito da vítima, Henrique, por meio de um fenômeno conhecido como psicografia. As cartas defendiam a inocência de Nunes. “O José Divino nem ninguém teve culpa em meu caso. Brincávamos a respeito da possibilidade de ferir alguém pela imagem do espelho” – foram as palavras atribuídas ao espírito de Henrique. 

Os pais de Henrique, que a princípio eram assistentes da acusação, ficaram convencidos da veracidade das mensagens psicografadas, pois acreditavam que elas apresentavam traços inconfundíveis da assinatura de seu filho. A convicção era tanta que o pai de Henrique redigiu uma correspondência direcionada ao juiz presidente do Tribunal do Júri, na qual informava os motivos pelos quais acreditava na veracidade das informações que constavam das cartas. Uma cópia dessa correspondência foi juntada aos autos (Anexo C). Nunes foi absolvido pelos jurados por 6 votos a 1.

Este foi o primeiro caso criminal registrado em que uma mensagem espiritual foi apresentada como prova no Judiciário brasileiro. Também é o primeiro, de que temos conhecimento, em que palavras atribuídas a um espírito foram expressamente utilizadas para fundamentar uma sentença de absolvição sumária por parte de um juiz. É provável que ela tenha exercido também alguma influência na decisão do Tribunal do Júri. Desde então, surgiram outros processos criminais em que se admitiu a tese sobrenatural de que a vítima falecida pudesse se comunicar com os vivos e oferecer a sua versão dos fatos. Foi o que ocorreu em um caso recente, que comoveu todo o país. 

Devem os jurados ouvir os espíritos?

Eu vou trazer uma mensagem para vocês” – disse a advogada Tatiana Vizzoto Borsa, em dezembro de 2021, perante o Tribunal do Júri do Foro Central de Porto Alegre. Tatiana atuava na defesa de Marcelo de Jesus dos Santos, réu no caso da Boate Kiss. A advogada, que declarou ser “trabalhadora de uma casa espírita”, apresentou em plenário um áudio gravado que supostamente expressava as palavras psicografadas de Guilherme Gonçalves, um dos jovens vitimados pela tragédia ocorrida na cidade de Santa Maria. Segundo a defesa, as palavras foram retiradas do livro Nossa nova caminhada (Editora CEGM, 2021), produzido pelos pais de sete jovens falecidos no incêndio. A obra traz mensagens que os pais dos jovens acreditam haver sido psicografadas por  alguns médiuns do país. Na sala de audiência, pela voz de um radialista, que se pronunciava sob fundo musical, os julgadores foram chamados a “aceitar as determinações divinas”.

Em razão da dimensão da tragédia, o caso da Boate Kiss foi bastante divulgado pela mídia. Mas há outros casos também conhecidos em que a Justiça criminal brasileira igualmente permitiu que versões sobre os fatos atribuídas a espíritos fossem admitidas no processo. 

Em 1980, João Francisco Marcondes de Deus foi acusado de matar sua esposa, Gleide Maria Dutra, com um tiro no pescoço. A defesa juntou aos autos cartas psicografadas por Chico Xavier e atribuídas ao espírito de Dutra. Nelas, a vítima supostamente defendia a inocência do marido e afirmava que o disparo fora acidental. Poucos anos depois, em 1982, o policial civil Aparecido Andrade Branco foi acusado de matar o então deputado federal Heitor Cavalcante de Alencar Furtado. O caso gerou comoção pública, e não faltou quem suspeitasse de um crime com motivações políticas. Durante o plenário do Júri, o advogado de defesa apresentou uma carta psicografada, também por Chico Xavier, na qual o suposto espírito de Furtado sustentava que sua morte fora um acidente, fruto da imperícia de Branco no manuseio da arma.

Os dois casos mencionados acima se tornaram famosos não só pela presença de Chico Xavier, mas também em razão da fama que as vítimas gozavam na sociedade: Dutra fora “Miss Campo Grande” e Furtado era filho de um importante líder político.  O caso de Dutra foi, inclusive, tema do programa de televisão Linha Direta. Pelas nossas contas, existem, pelo menos, outros nove processos judiciais brasileiros em que cartas psicografadas foram utilizadas como meio de prova. 

Todos esses processos eram de homicídio doloso e foram julgados pelo Tribunal do Júri – exceto um, que envolvia estupro de adolescente, com resultado morte, e tramitou em segredo de Justiça. Em alguns deles, a carta supostamente psicografada foi apresentada com a concordância da própria família da vítima falecida. Algumas cartas descreviam detalhes do crime; outras limitavam-se a uma mensagem genérica de perdão, como ocorreu no processo da Boate Kiss.

O último caso de que temos conhecimento ocorreu no ano passado; mas, diferentemente dos anteriores, a prova psicografada foi apresentada pela acusação. Em 2022, a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul decidiu admitir no processo uma carta psicografada que havia sido oferecida como meio de prova pelo próprio Ministério Público do Mato Grosso do Sul. A carta havia sido alegadamente psicografada por um amigo da vítima, e obtida ainda na fase de investigação. Segundo o Ministério Público, a mensagem indicava que o réu, José Thadeu Marques Moreira Filho, não tinha a intenção de matar a vítima, Conrado Buratto dos Santos, mas sim outra pessoa, José Carlos de Souza Prata Tibery, a quem devia duzentos mil reais. Com base em suposto testemunho proveniente do mundo sobrenatural, o Ministério Público denunciou os réus por homicídio qualificado com erro de execução. Um habeas corpus do caso foi julgado com o número 1402867-05.2022.8.12.0000.

O que diz o Superior Tribunal de Justiça?

O caso da Boate Kiss gerou muita discussão sobre a admissibilidade das cartas psicografadas nos tribunais brasileiros. Alguns juristas afirmaram, em redes sociais, que o tema estaria superado, uma vez que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já teria decidido a favor da admissibilidade da prova psicografada. Isso, contudo, não procede – pelo menos, não ainda. 

A confusão sobre o posicionamento do STJ a respeito das cartas psicografadas se explica em razão dos desdobramentos do caso Iara Marques. Em agosto de 2003, Marques foi acusada de ordenar o homicídio de Ercy da Silva Cardoso, com quem mantivera um relacionamento. Durante o plenário do Tribunal do Júri de Viamão, o advogado de defesa apresentou uma carta psicografada atribuída ao espírito de Cardoso, com o seguinte teor: “o que mais me pesa no coração é ver a Iara acusada desse jeito, por mentes ardilosas como as dos meus algozes”. 

Marques foi absolvida por 5 votos a 2. Inconformada, a família da vítima – que atuava como assistente da acusação – recorreu, sustentando a falsidade da carta. Em 2009, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, contudo, manteve o veredicto. A ementa da decisão afirmava o seguinte: “Carta psicografada não constitui meio ilícito de prova, podendo, portanto, ser utilizada perante o Tribunal do Júri, cujos julgamentos são proferidos por íntima convicção.”

Foram interpostos novos recursos, desta vez pelo Ministério Público. Dentre eles, o Agravo de Instrumento n.º 1.389.293/RS, cujo objetivo era fazer com que o recurso especial contra a admissão da prova psicografada “subisse” ao STJ. A decisão do agravo nada mencionou sobre a admissibilidade ou não da carta, limitando-se a dizer que a matéria merecia melhor análise; em seguida, converteu o agravo em Recurso Especial. O STJ levou cinco anos para apreciar o Recurso Especial n.º 1.358.601/RS. Mais uma vez, a Corte nada disse sobre a prova psicografada. Devido ao lapso temporal transcorrido desde a pronúncia, a pena estava prescrita. Diante disso, o recurso foi prejudicado, e seu mérito não foi discutido.

Logo, até o momento, o STJ não se pronunciou sobre a admissibilidade da prova psicografada. Além de suas decisões no caso de Marques não terem adentrado o tema, não se tem conhecimento de nenhum outro processo no qual a Corte tenha decidido se um espírito poderia ou não apresentar seu testemunho por meio de uma carta. Até onde sabemos, tudo o que temos até agora são decisões isoladas, como as já mencionadas dos Tribunais de Justiça dos estados do Rio Grande do Sul e do Mato Grosso do Sul , nos casos de Marques e Moreira Filho, respectivamente. Apesar de terem sido favoráveis à admissão da prova sobrenatural, são precedentes que não vinculam os juízes submetidos aos respectivos tribunais, muito menos os juízes dos demais estados.

A psicografia é uma pseudociência

De forma geral, os defensores da admissibilidade da prova psicografada seguem estratégias muito parecidas: todas elas buscam associar o espiritismo à ciência. A tentativa de atribuir cientificidade a disciplinas, técnicas ou teorias que buscam imitar características do empreendimento científico – como a análise empírica e o emprego de cálculos matemáticos –, mas que no fim das contas desviam dos princípios da boa investigação, é o que entendemos por pseudociência

A primeira estratégia dos defensores da psicografia como “ciência” é invocar cientistas de renome que se deixaram convencer da veracidade dos fenômenos mediúnicos. O químico e físico William Crookes é um dos mais citados, muito embora seus experimentos com médiuns apresentassem falhas metodológicas. Trata-se da clássica falácia do apelo à autoridade: espera-se que o interlocutor acredite nas teses espíritas apenas porque o especialista X ou Y declarou ter encontrado evidências sólidas. O raciocínio é problemático, na medida em que ignora as conclusões alcançadas por outros cientistas. O conhecimento científico não é construído pelos estudos de alguns poucos especialistas, mas, sim, pelo trabalho conjunto – cooperativo e competitivo – de vários pesquisadores, ao longo de várias décadas.

Um desdobramento dessa estratégia é citar artigos publicados em revistas “científicas”, exaltando conclusões favoráveis às teses espíritas. Não é difícil encontrar artigos nos quais pesquisadores apresentam resultados que, em sua visão, corroboram a tese da autenticidade das cartas psicografadas. Nesse ponto, o artigo do perito grafotécnico Carlos Augusto Perandréa – posteriormente publicado em formato de livro (A psicografia à luz da grafoscopia), pela Editora FÉ – é campeão de citações. Contudo, como assinala o perito Thiago Gasparini, o trabalho se baseia na análise de uma única carta psicografada e apresenta sérias falhas metodológicas. (Trataremos do mau emprego da grafoscopia para comprovar a autenticidade das cartas mais adiante).

Mas as alegações de que é possível autenticar a comunicação de entidades de outros planos não se baseiam apenas em perícia grafoscópica. Nem sempre as cartas psicografadas apresentam caligrafia similar àquela que a pessoa apresentava em vida, e outros tipos de pesquisas são apresentados como prova. Em 2014, pesquisadores brasileiros publicaram um artigo sobre a acurácia das informações contidas em cartas psicografadas por Chico Xavier. Segundo os autores, explicações ordinárias para a precisão do conteúdo das cartas, como fraude ou vazamento de informações, “eram apenas remotamente plausíveis”. Esse artigo também recebeu duras críticas. Em um texto publicado em duas partes (aqui e  aqui), Carlos Orsi chamou atenção para uma série de indicativos de baixa qualidade no estudo realizado e nas conclusões publicadas. Como afirma Orsi, “não é correto pressupor que a comunicação com os mortos seja uma explicação em pé de igualdade com as demais: antes de levá-la em conta é preciso, primeiro, descartar todas as vias alternativas normais”. 

Uma segunda estratégia é recorrer a outras teorias pseudocientíficas que alegadamente corroboram a existência dos espíritos. Por exemplo, alguns juristas citam o ativismo quântico de Amit Goswami, que pega emprestados conceitos da física para defender uma visão mística do mundo; enquanto outros fazem referência à máquina kirlian e sua suposta capacidade de fotografar as auras das pessoas.

Uma terceira estratégia para dizer que a psicografia tem base “científica” é apresentar um compilado de relatos de fenômenos mediúnicos que teriam ocorrido em diversas partes do mundo ao longo de muitos séculos. Mais uma vez, o raciocínio é problemático, pois parte do pressuposto de que se os seres humanos acreditam na mediunidade há tanto tempo, a única explicação plausível é a de que a mediunidade deve mesmo ser real. Contudo, o fato de uma crença ser milenar não implica a sua qualidade epistêmica; significa apenas que ela é antiga e está enraizada no senso comum (como ocorre com a astrologia). Além disso, existem explicações muito mais prosaicas para esses fenômenos curiosos – conforme nos ensinam os pesquisadores Bruce Hood e Richard Wiseman

Quando a psicografia é defendida como um fenômeno científico e  independente da religião, ela se torna uma pseudociência. Permitir que cartas psicografadas sejam utilizadas como prova significa abrir caminho para decisões judiciais baseadas em crenças religiosas em vez de evidências. Esse perigo já foi apontado em oportunidades anteriores (aqui, aqui e aqui). 

Uma digressão lógica

No livro Probability theory: the logic of science (Teoria da probabilidade: a lógica da ciência), o físico Edwin Jaynes dedicou um capítulo a “Usos não convencionais da teoria da probabilidade”, no qual abordou o problema da comprovação de fenômenos paranormais. Jaynes demonstra como a interpretação dos resultados obtidos em um estudo ou experimento dependem do conjunto de hipóteses consideradas, e também das crenças iniciais depositadas nessas hipóteses. 

No exemplo apresentado no livro, que trata de um estudo sobre as habilidades telepáticas de Gloria Stewart, ele aplica a teoria da probabilidade a um cenário em que se consideram apenas duas hipóteses para explicar o alto índice de respostas corretas da suposta telepata: ou esse resultado era fruto do acaso, ou ela realmente tinha poderes telepáticos. Com esse par de hipóteses, os resultados fornecem uma evidência formidável a favor da hipótese de poderes telepáticos. 

Contudo, em um segundo cenário, Jaynes passa a considerar diversas outras hipóteses além das duas primeiras; por simplicidade, consideremos aqui apenas uma terceira hipótese: a de que houve falhas no processo de contagem dos resultados. Se o pesquisador acredita que essa terceira hipótese é, a priori, mais provável que a hipótese de telepatia, então o grande número de acertos da Sra. Stewart passa a constituir forte evidência de que houve erro de contagem, e não de que ela possui poderes telepáticos. 

Ou seja, o mesmo conjunto de resultados pode levar a diferentes conclusões, dependendo das hipóteses consideradas e das crenças depositadas nessas hipóteses antes da realização dos experimentos. Em particular, resultados considerados espetaculares podem ter o efeito inverso ao esperado por defensores de fenômenos como a telepatia ou a psicografia. Sobre este ponto, Jaynes cita Pierre Simon Laplace, polímata francês do século XIX: “aqueles que relatam resultados milagrosos diminuem, ao invés de aumentar, a crença que tentam inspirar; isso porque tais relatos tornam muito provável o erro ou a falsidade de seus autores” (p. 124).

O mau emprego do exame grafoscópico

Conforme mencionado, uma das estratégias adotadas pelos que defendem a credibilidade de cartas psicografadas é recorrer a exames grafoscópicos. O objetivo de um exame grafoscópico é esclarecer se um manuscrito de origem duvidosa realmente foi produzido pela pessoa a quem se atribui a autoria. O manuscrito questionado e o padrão gráfico – um conjunto de manuscritos presumida ou comprovadamente produzidos pela pessoa de interesse – são apresentados ao perito, que realizará uma comparação entre as escritas e apresentará em laudo os resultados do exame e sua conclusão. No caso da psicografia, alega-se algum grau de similaridade entre a caligrafia produzida pelo médium e a caligrafia que a pessoa falecida produzia quando ainda viva, para então se proceder à realização do exame grafoscópico. 

Há diversas premissas implícitas nessa abordagem. Destacamos quatro: 

  1. supondo que o fenômeno exista de fato, assume-se que o espírito em questão é o da pessoa que se diz ser;
  2. com base na mesma suposição, assume-se que a caligrafia seria uma característica que “transcende” a existência material, estando vinculada ao espírito, e não ao corpo físico;
  3. independentemente da crença no fenômeno (de natureza religiosa), afirma-se que o exame grafoscópico seria, por si só, capaz de provar a hipótese de mesma origem;
  4. sustenta-se que a conclusão alcançada pelo perito constituiria prova confiável.

Quanto à primeira premissa, que diz respeito à “verdadeira identidade” do espírito, trata-se de questão fora do escopo da perícia grafotécnica, mas que certamente poderia ser levantada por uma das partes em um processo criminal. 

Quanto à segunda premissa, que parece tratar a caligrafia como uma característica do espírito, e não do corpo físico, ela não parece fazer sentido quando pensamos na forma como as pessoas aprendem a escrever. A caligrafia é uma habilidade motora geralmente aprendida na infância, durante o processo de alfabetização; durante séculos, em diferentes localidades e épocas, este processo contou com o uso de diferentes cartilhas de alfabetização (pp. 6-27), nas quais os alunos aprendem os movimentos que constituem a escrita recobrindo letras e palavras ali tracejadas. Com o passar do tempo, à medida que o aluno avança de um estágio inicial de “desenhar” as letras para um estágio de escrita automática, as formas de suas letras passam a se afastar daquela contida nas cartilhas e apresentar hábitos próprios, ditos pessoais ou idiográficos — mas ainda carregando alguma similaridade com aquele da cartilha. Assim, a caligrafia de uma pessoa é, em grande parte, consequência das práticas de alfabetização adotadas no local e na época em que esse processo ocorre, ou seja, estão associadas a um contexto geográfico e histórico bem definidos. 

Além disso, pesquisas científicas no campo das neurociências envolvendo o controle dos movimentos do corpo humano, em geral, e dos movimentos associados ao ato de escrever, em particular, demonstram haver uma relação estreita entre determinadas regiões do cérebro de uma pessoa e sua escrita. Há grande volume de pesquisa empírica (p. 35-55) corroborando a existência de um programa motor associado à caligrafia de uma pessoa, e como esse programa pode ser afetado por lesões no cérebro, pela ação de certos medicamentos, por enfermidades e pelo avançar da idade. Assim, a atribuição de um modo de escrever a um espírito parece desconsiderar todos os aspectos observáveis e verificáveis ora descritos. Considerando essa premissa, quais seriam os manuscritos da pessoa falecida que deveriam servir como padrão gráfico para a comparação? Aqueles que evidenciam a sua caligrafia quando jovem? E se a pessoa sofreu um acidente em vida, que comprometeu a sua caligrafia, utilizamos como padrão a caligrafia do tempo de sua morte? 

A terceira premissa, de que o exame grafoscópico seria capaz de provar a mesma origem de dois conjuntos de manuscritos, é também problemática, baseada muito mais em “tradições” ou hábitos do que em ciência. Como ocorre em outros exames comparativos (exames de DNA, impressões digitais, microbalística, comparação de locutor, comparação facial etc.), o requisitante do exame e o perito se veem diante de duas hipóteses: a de que os itens comparados têm a mesma origem e a de que os itens comparados têm origens distintas. O que aqui chamamos de “tradição”, e que não tem fundamento lógico ou científico, é a prática comum no meio pericial de apresentar conclusões categóricas em exames comparativos, com o uso de expressões no sentido de que os itens comparados têm (ou não têm) a mesma origem. 

O problema lógico envolvido nesse tipo de conclusão já foi identificado em um processo criminal ocorrido mais de cem anos atrás, durante uma apelação que contestava a condenação do então capitão Dreyfus, na França. Ele havia sido condenado por traição, e a única prova material contra ele consistia em um exame grafoscópico que concluía, categoricamente, ser Dreyfus o autor de um manuscrito questionado. Atuando pela defesa, o matemático Henri Poincaré chamou atenção para a impossibilidade lógica de se concluir que dois manuscritos têm a mesma origem com base unicamente no exame comparativo, observando que a conclusão logicamente possível ao perito consistia em afirmar qual hipótese era corroborada, e qual a medida dessa corroboração. 

Embora essa abordagem sobre a interpretação da evidência científica seja adotada nos exames de DNA desde os anos 90, outras áreas de perícia baseadas em exames comparativos ainda persistem, em maior ou menor medida, no emprego de conclusões categóricas. No campo da grafoscopia, a literatura científica mais recente vem apresentando avanços neste sentido, ou seja, de abandonar as conclusões categóricas e informar o quanto os achados periciais corroboram a hipótese de mesma origem ou a hipótese alternativa.

A quarta premissa, relacionada a uma crença absoluta na conclusão de um laudo pericial, é seguramente influenciada pela adoção de respostas categóricas em laudos grafoscópicos — mas agora nos referimos a outro tipo de questão. Independentemente do modo de concluir do perito (por meio de conclusões categóricas ou por meio de graus de corroboração), é imprudente, do ponto de vista técnico-científico, tomar como premissa algo que deveria ser demonstrável e demonstrado: a capacidade de esse perito realizar o exame grafoscópico de maneira confiável. No dia a dia de nosso sistema jurídico, a avaliação dessa capacidade costuma se restringir ao status profissional do perito (ex.: se é um perito criminal trabalhando para o governo) ou à sua experiência (ex.: quanto tempo o perito atua nessa atividade). Ocorre que tais indicadores de expertise são insuficientes (p. 912), pois nada informam sobre o conhecimento do perito a respeito das pesquisas e publicações científicas recentes, sobre os cursos dos quais participou (e a qualidade desses cursos) ou sobre seu desempenho em testes de proficiência nos quais as respostas corretas são conhecidas. 

Em outros países, por exemplo, é comum que a confiabilidade de um perito grafoscópico esteja associada à obtenção e manutenção de uma certificação profissional, emitida por entidade profissional devidamente acreditada, que requer a aprovação em provas teóricas e práticas, além da observação de um código de ética profissional. Infelizmente, não existe esse tipo de mecanismo no Brasil, e os operadores jurídicos dispõem de poucos meios para avaliar criticamente a confiabilidade de um laudo pericial grafoscópico.

A carta psicografada é um meio de prova inadmissível nos tribunais

A utilização da psicografia como meio de prova deveria preocupar aqueles que defendem um raciocínio judicial baseado em fatos que possam ser comprovados empiricamente, sem recurso a “misteriosos desígnios divinos” – como escreveu Marina Gascón (p. 16).  A crença de que o espírito de uma pessoa possa desencarnar e estabelecer uma forma de comunicação sobrenatural nos faz lembrar do famoso caso das bruxas de Salém. No século XVII, os tribunais de Massachussets, Estados Unidos, permitiram a apresentação, por parte da acusação, das chamadas “provas espectrais”, que consistiam em testemunhos de pessoas que diziam que o espírito da acusada havia aparecido em sonho ou por meio de uma visão. A lógica da psicografia não é muito diferente.

Não obstante, há uma literatura jurídica crescente que busca refutar os argumentos contrários à admissibilidade da psicografia nos tribunais. Uma relação dos principais juristas pode ser encontrada aqui. Além de insistirem nos argumentos pseudocientíficos indicados acima, os juristas defensores da prova psicografada oferecem argumentos jurídicos – em especial, o direito à prova e a ausência de violação ao contraditório. Alegam que, diante da inexistência de normas que vedam explicitamente a carta psicografada, esta não pode ser considerada ilícita, sob pena de cercear a liberdade probatória das partes. Além disso, prosseguem, não faltam meios para contraditar a carta: ela pode ser submetida a um exame grafotécnico, para comprovação da autoria espiritual; seu conteúdo pode ser contrastado com as demais provas; e até mesmo o próprio caráter do médium seria um critério idôneo para determinar a sua credibilidade.

A inquietação com o emprego judicial de explicações sobrenaturais para os fatos não deve ser apenas epistêmica. Existe uma preocupação de natureza jurídica, tendo em vista a violação dos princípios constitucionais do contraditório e da laicidade do estado. Afinal, como a outra parte poderá contestar um meio de prova que depende de uma entidade cuja existência não pode sequer ser comprovada? Se a carta psicografada for apresentada pela acusação, como ocorreu em um dos casos descritos acima, isso implica uma tarefa hercúlea, se não impossível, para o réu. Que estratégia restará à defesa? Solicitar a outro médium que escreva uma nova carta em sentido contrário? Nesse caso, como o juiz fará a acareação entre “os espíritos conflitantes”? Seria, nas palavras de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “um incentivo à chicana”. 

Não é difícil perceber que a discussão sobre as consequências da admissão da prova psicografada rapidamente conduz a hipóteses absurdas, que parecem soar como deboche ao espiritismo – longe de ser essa a nossa intenção! Ainda assim, para muitas pessoas, o verdadeiro problema não é lidar com tais consequências absurdas. Segundo elas, vedar a prova psicografada configura perseguição a uma religião específica, algo inadmissível em uma sociedade que respeita o pluralismo e a liberdade de crenças. Este é um tipo de raciocínio que está de cabeça para baixo, pois é justamente a admissão de uma prova baseadas na existência de espíritos que levaria à violação da liberdade religiosa. Decisões judiciais devem ser fundamentadas em razões publicamente compartilháveis. Em outras palavras, o Estado só deve poder condenar alguém com base em razões com as quais qualquer pessoa poderia concordar, independentemente de ser adepta da religião A ou B, de não ter religião ou de não ter crença em entidade sobrenatural alguma – afinal, o ateísmo é uma crença que deve igualmente ser respeitada. 

É importante destacar que nenhum dos argumentos apresentados nesta seção é realmente novo. Eles já foram levantados e exaustivamente discutidos por juristas como Fredie Didier Jr. e Paula Sarno Braga, Guilherme de Souza Nucci, Aury Lopes Jr., Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Michel Mascarenhas. Todos eles concluíram pela ilicitude da prova psicografada. Ainda assim, vale a pena repeti-los – pois as cartas psicografadas continuam sendo utilizadas como meio de prova; inclusive, segundo a decisão mais recente, para fundamentar a tese da acusação. 

“Mas no júri prevalece a plenitude da defesa…”

Por fim, é importante confrontar a carta psicografada no Tribunal do Júri. A sua maior incidência nesse contexto não é mero acaso. Dois princípios que a Constituição Federal de 1988 assegura ao instituto do júri costumam ser citados para justificar a sua admissibilidade: a soberania dos veredictos e a plenitude da defesa. Ainda, no caput do artigo 5º, XXXVIII, a Constituição afirma que o júri será reconhecido “com a organização que lhe der a lei”. 

A lei que organiza o processo decisório no júri é o Código de Processo Penal brasileiro (CPP). De acordo com o artigo 447, as sessões de julgamento do Tribunal do Júri ficam a cargo do Conselho de Sentença. Trata-se de um órgão decisório composto por um juiz presidente e sete jurados leigos representantes do povo. Por sua vez, o artigo 483 prevê que as decisões do Conselho de Sentença serão tomadas com base em respostas categóricas (“sim” ou “não”) a uma série ordenada de quesitos que envolvem a materialidade do fato, a autoria ou participação do acusado, a sua absolvição – dentre outras envolvendo circunstâncias que incidirão na dosimetria da pena. Não existe, na dinâmica decisória do júri, qualquer dever de apresentar razões para as decisões. 

Vale notar que, à luz de tal ordem de quesitação, é possível que os jurados absolvam o acusado ainda que tenham respondido afirmativamente aos quesitos sobre a materialidade e a autoria do crime. O júri pode entender que o crime tenha sido mesmo praticado pelo acusado, mas que a sua conduta estava justificada perante o senso comum da sociedade. É a chamada absolvição por clemência. Nessas situações, não faz sentidoexigir apego à prova justamente no ponto em que o legislador parece ter aberto espaço para a misericórdia popular”, como afirma a professora Marcella Mascarenhas Nardelli. 

A ausência de fundamentação das decisões do júri decorre não apenas da organização que a lei dá ao instituto. Na verdade, a ideia de que os jurados devem ter ampla liberdade na formação de suas crenças define o conceito de íntima convicção. “A noção de íntima convicção por aqui adotada, no sentido de que o jurado deve decidir de forma introspectiva, na solidão de sua consciência, passou a ser atrelada ao próprio princípio constitucional da soberania dos veredictos”, escreveu Nardelli

Além disso, a falta de conhecimentos jurídicos dos cidadãos que integram o júri leva à falsa ideia de que a racionalidade na determinação dos fatos não deve ser exigida. Essa concepção contribuiu para o desprestígio da atividade probatória nesta sede, cedendo espaço para estratégias retóricas das partes. A noção de que os valores morais e o senso de justiça de cada cidadão seriam fatores idôneos e suficientes para embasar a decisão leva à conclusão de que é plenamente legítimo o livre manejo da prova neste ambiente. 

Mas talvez o argumento mais difícil de ser enfrentado, quando se trata de controlar a entrada de meios de prova pseudocientíficos no júri, é aquele que parte da premissa constitucional de que “no júri, prevalece a plenitude da defesa”. Plenitude, segundo parte da doutrina, é mais do que ampla defesa – a liberdade argumentativa seria total, irrestrita. Por essa lógica, não se poderia negar ao acusado a apresentação de toda e qualquer informação que possa corroborar a sua tese defensiva. Isso significa que devemos admitir argumentos que violam princípios fundamentais? Isso significa que devemos admitir argumentos que contrariam princípios basilares da razão e da ciência?

A plenitude da defesa foi objeto de decisão em 2020 pelo Supremo Tribunal Federal. A liberdade dos jurados sofreu importante restrição neste caso, pois o Tribunal proibiu a apresentação da tese de legítima defesa da honra em julgamentos por feminicídio. Parece, afinal, que a plenitude de defesa não é tão plena assim como se costuma supor. Em determinados casos, pode ser restringida, para evitar que se violem outros princípios e direitos constitucionais. Como afirmou o ministro Edson Fachin: “Nada há no ordenamento jurídico que vede a investigação sobre a racionalidade mínima que deve guardar toda e qualquer decisão. Se é certo que o Tribunal do Júri guarda distinções em relação à atividade judicial típica, não deixa de ser também um julgamento, isto é, a aplicação de uma norma jurídica a um caso particular e, como tal, deve guardar um mínimo de racionalidade e de objetividade. A importante tarefa de julgar não pode ser um jogo de dados”.

Um raciocínio semelhante pode – e deve – ser aplicado à carta psicografada e às demais provas que contrariem os conhecimentos científicos estabelecidos. Quando a fundamentação da decisão não é uma exigência, a dinâmica que deveria orientar a produção probatória no Tribunal do Júri não é a de admitir quaisquer elementos, mas sim o inverso. Ou seja, “a circunstância de que os jurados não apresentarão as razões para o veredicto justifica ainda mais a preocupação com o controle da qualidade epistêmica do conjunto probatório”. 

O controle da qualidade epistêmica da prova deve ser realizado pelo juiz togado, quando do juízo de admissibilidade. Desse modo, pseudociências não conseguirão ingressar no plenário do júri, diminuindo as chances de um veredicto irracional e, por isso mesmo, injusto.

“Quando a Justiça ignora a ciência”

A presença de pseudociências no Direito brasileiro impõe a necessidade de se pensar sobre o tipo de informação que estamos dispostos a admitir nos diferentes contextos jurídico-criminais. O caso das provas psicografadas de que tratamos neste texto é preocupante. Como vimos, este tipo de pseudociência tem sido utilizada não só nas fases de julgamento, mas também em etapas preliminares da investigação policial; não só nos Tribunais do Júri, mas também em posicionamentos de juízes togados e em decisões de órgãos colegiados; e não só na argumentação dos advogados de defesa, mas também por parte do Ministério Público. 

Existem ainda outros exemplos de pseudociências admitidas nos tribunais brasileiros. Um caso que vem ganhando notoriedade é o emprego de uma suposta terapia, também baseada em premissas espirituais, chamada constelações familiares. Como indicam Paulo Almeida e Natália Pasternak, as constelações familiares fazem parte do rol de práticas integrativas e complementares do Sistema Único de Saúde (SUS), e têm sido adotadas em tribunais de Justiça de diferentes estados, inclusive com o aval do Conselho Nacional de Justiça. Em Nota Técnica publicada em 2023, a Conselho Federal de Psicologia divulgou um alerta para as “incongruências éticas e de conduta profissional no uso da Constelação Familiar enquanto método ou técnica da Psicologia. Contudo, devido à limitação de espaço, bem como ao fato de as constelações serem majoritariamente aplicadas em contextos cíveis, optamos por não as abordar neste momento. Aos leitores interessados no assunto, sugerimos escutar o comentário de Natália Pasternak e assistir aos vídeos dos divulgadores científicos Gabriela Bailas, Carlos Orsi e Daniel Gontijo e Thiago Tatton; bem como às manifestações críticas na audiência pública convocada pelo Senado Federal para discutir “Constelação familiar e Cura Sistêmica”. 

Esta reportagem é a terceira do projeto “Quando a justiça ignora a ciência”, dedicado a discutir a rejeição ou mau emprego de evidências científicas no contexto criminal brasileiro. Na primeira matéria, abordamos casos de condenações errôneas por falso positivo em exames de drogas. Na segunda reportagem, exploramos as limitações dos exames de DNA, demonstrando que nem mesmo o “padrão ouro” das provas periciais está isento do risco de condenar inocentes.

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