De 1988 até a década passada o Brasil passou por uma transformação administrativa gradual e progressiva. Mudou, insuficientemente, é verdade, o modo do Estado contratar. O pregão, a contratação integrada, as manifestações de interesse e, agora, o diálogo competitivo vingaram. Superou-se a insindicabilidade do poder discricionário. Alterou-se o modo de prestar e regular serviços públicos.
Assistiu-se uma ampla positivação do Direito Administrativo, até então de base muito mais doutrinária que legal. O processo administrativo, antes tido como impropriedade, passou a ser imposição. O consequencialismo e o dever de ponderação ao decidir foram incrementados pela análise de impacto regulatório e pelas alterações na LINDB. Apesar da retórica grandiloquente de reformas administrativas constitucionais, no final dos anos 1990 e nos anos recentes, essa transformação se deu predominantemente por mudanças na lei e na prática administrativa.
Um dos vetores de maior transformação da estrutura da Administração, em tempo recente, foi a conferência de graus importantes de autonomia a entes da administração indireta. As leis de criação de agências, consolidadas na Lei 13.648/19, e a Lei 13.303/16 deram concretude ao que Binembojm chama de administração policêntrica.
Tudo isso em meio a alternâncias significativas de governos. Em certos momentos, houve retrocessos, como o desafio às agências no início do governo Lula e a intervenção na geração de energia elétrica em 2013. Mas até 2018 avançava-se progressivamente. O governo que sai, em que pese o discurso liberal, trouxe mais retrocessos que avanços. É fato que sancionou a Lei das Agências, a nova Lei de Contratações e uma Lei de Liberdade Econômica inócua. Na ação administrativa, foi um desastre. O principal estrago veio na governança das agências e das estatais.
Aí andamos para trás. A captura das agências pelo governo, que já vinha de antes, tornou-se regra. Ao aparelhamento político se somou a captura ideológica. O Cade, até então preservado, virou arma eleitoral. A nomeação de novo Conselho na Petrobras fez tábula rasa das regras previstas na Lei das Estatais.
Recolocar as coisas no eixo, respeitando as autonomias e a boa governança, é mais um imperativo da reconstrução. E aí reside o risco. Ideologicamente, o partido que assume o poder sempre foi, por princípio, contrário às autonomias. Não obstante, na prática, Lula desrespeitou-a bem menos que o governo que sucede. Nos próximos anos poderemos retomar os avanços de governança e confiabilidade que conquistamos até 2018. Ou consolidar o retrocesso, voltando ao regime das velhas autarquias. O respeito à independência dos dirigentes de agências indicados pelo atual governo e as indicações do novo mandatário para a direção das estatais será o teste. Voltar aos anos 1950 seria um erro. Nos seus dois mandatos, Lula provou que as autonomias não impedem governar. Reverter também esse malfeito do governo que está saindo será mais um desafio.