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Pauta Fiscal

Superando para frente a modulação de efeitos

'Superação para frente de precedentes', prevista na lei processual, confere eficácia prospectiva ao precedente

modulação
Sede do Supremo Tribunal Federal. Crédito: Nelson Jr./SCO/STF

A modulação dos efeitos das decisões judiciais foi prevista no art. 27 da lei 9.868/99 como um instituto originariamente aplicável às ações de controle concentrado de constitucionalidade, por meio do qual seria possível restringir os efeitos do acórdão ou estabelecer sua eficácia a partir do trânsito em julgado ou de outro momento a ser fixado pelo Supremo Tribunal Federal. Com o passar dos anos, o instituto passou a ser usado também no controle difuso e não foram poucas as tentativas no sentido de ampliar essa técnica para decisões que não tratavam de matéria constitucional. Mas o experimento sempre esbarrava na ausência de autorização legislativa para tanto.

Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, no entanto, a modulação passou a dividir espaço com um instituto processual semelhante, capaz de conferir irretroatividade às decisões que alteram jurisprudência dominante dos tribunais superiores, para além das hipóteses de controle de constitucionalidade. Trata-se da denominada “superação para frente de precedentes”, prevista no art. 927, §3º da legislação processual.

A nova ferramenta, à semelhança do que se verifica na modulação de efeitos, confere eficácia prospectiva ao precedente, aplicando-o apenas para fatos futuros, mas somente é cabível nas hipóteses de alteração de um entendimento judicial consolidado, com a finalidade de evitar que o jurisdicionado seja surpreendido, de forma inesperada, pela nova posição do Judiciário.

Considerando a grande quantidade de temas que têm sido definidos recentemente pelos tribunais superiores em recursos representativos de controvérsia (1.900 processos já foram julgados, até 18/05/2022, conforme informado no site do CNJ), os quais, não necessariamente, tratam de questões constitucionais, mas, com uma certa frequência, promovem alterações jurisprudenciais, percebe-se que o novo instituto possui um campo fértil de aplicação, podendo vir a ser (e vem sendo) bastante utilizado.

Ainda mais se considerarmos que a superação para frente pode ser aplicada também em processos que não tenham sido “afetados” pela sistemática dos representativos de controvérsia – embora haja certa polêmica quanto a essa possibilidade. E se ponderarmos que a quantidade de julgamentos em controle concentrado e difuso tende a ser menor, vislumbraríamos uma possível superação do instituto da modulação – não no sentido de que perdeu importância ou caiu em desuso, mas sob a ótica de que pode se tornar residual.

Mas por que falar em predominância de um instituto sobre o outro se ambos aparentam significar exatamente a mesma coisa? A semelhança é mera coincidência, no entanto. Não se pode confundir a modulação de efeitos com superação para frente, como tem sido, aliás, bastante comum.

Os julgamentos dos Temas 881 e 855 de repercussão geral, que estão em análise no STF e tratam da cessação da eficácia da coisa julgada, reavivam a relevância dessa diferenciação quando se percebe que o relator de cada tema sugeriu, em seu voto condutor, a modulação dos efeitos da decisão final. O curioso é que o ministro Edson Fachin menciona a necessidade de aplicação da modulação com base no art. 927 do CPC, enquanto o ministro Luís Roberto Barroso propôs a modulação com base no art. 27 da Lei 9.868/99.

A distinção se faz necessária, não por um preciosismo acadêmico, mas pelos pressupostos e consequências que cada um imprime nas relações jurídicas por eles afetadas.

A principal diferença entre os institutos se relaciona com a natureza da decisão cujos efeitos serão aplicados para o futuro. Enquanto na modulação de efeitos a decisão declara a inconstitucionalidade de uma norma (seja em sede de ADI, ADC ou recurso extraordinário), na superação para frente não há declaração de inconstitucionalidade e a decisão não necessita abordar aspectos constitucionais, podendo tratar de qualquer matéria de direito.

Sob uma segunda perspectiva, a modulação de efeitos não exige entre seus pressupostos formais de cabimento, ao revés do que se verifica na superação para frente, que a decisão tenha promovido uma alteração de entendimento jurisprudencial consolidado, bastando que a declaração de inconstitucionalidade nela contida afete a segurança jurídica ou o interesse social. Isso porque se entende que, em alguns casos, para manter a credibilidade da ordem jurídica é preciso conservar os efeitos da lei inconstitucional, no intuito de preservar situações que se concretizaram enquanto a lei era reputada constitucional.

Já a superação para frente somente pode ser aplicada quando a decisão altera um precedente, um entendimento consolidado anteriormente existente no qual os jurisdicionados possuíam uma confiança legítima e justificada no sentido do direito que era atribuído pelo Poder Judiciário. Em suma, na modulação não é necessário que tenha havido pronunciamento judicial anterior sobre o tema, enquanto na superação a pré-existência do precedente e a frustração do cidadão de agir de acordo com essa orientação são fundamentais.

O que nos conduz à terceira distinção: o instituto da superação para frente faz parte do sistema de precedentes instaurado pelo novo Código de Processo Civil, enquanto a modulação se situa no campo do controle de constitucionalidade das leis, regida pela Lei 9.868/99. Isto é, a modulação atua em relação a lei, visando proteger os direitos fundamentais dos cidadãos consagrados na Constituição e a superação se dirige à interpretação judicial, à delimitação do alcance das normas, tendo como objetivo resguardar o direito dos jurisdicionados a uma ordem jurídica estável, previsível e isonômica, para proteger a confiança justificada no próprio Judiciário.

Em razão disso, seus pressupostos de aplicação também diferem. Para modular uma decisão é necessário quórum qualificado de 2/3 dos membros do STF, posto que almeja a manutenção dos efeitos de uma norma que desde o seu nascedouro se apresentava contrária ao ordenamento vigente, por ter sido reconhecida como inconstitucional, mas que regulou situações que merecem ser protegidas.

Já na superação para frente de um precedente não há previsão expressa de quórum específico, de modo que se entende que a maioria simples seria suficiente, pois se pretende manter a eficácia de atos que foram praticados de acordo com a ordem jurídica (concretizada e interpretada no precedente) que se encontrava em vigor. Nesse caso, ainda, exige-se o contraditório e fundamentação adequada e específica (art. 927, §4º do CPC), o que não foi previsto pela Lei 9.868/99.

O que aproxima os dois institutos, além da óbvia semelhança de conferir efeitos prospectivos a uma decisão judicial (a partir de um determinado momento futuro, que pode variar a critério dos julgadores nos dois casos), é a proteção ao princípio da segurança jurídica, pois ambos pretendem resguardar a previsibilidade e a estabilidade das relações jurídicas ocorridas tanto sob a vigência da lei declarada inconstitucional (no caso da modulação) quanto sob a confiança do precedente revogado (no caso da superação). Isto é, tanto aqueles que seguiram a lei, que era inconstitucional mas estava vigente, quanto os que se pautaram no precedente que era válido mas deixou de ser, não podem ser surpreendidos pela decisão judicial.

Considerando-se, portanto, os impactos de tais decisões judiciais na ordem jurídica e na sociedade, confundir os dois institutos pode resultar em superação para frente de normas inconstitucionais e modulação de precedentes ultrapassados, o que, pedindo escusas pelo trocadilho, não favorece a segurança jurídica que ambas as modalidades se prestam a preservar.

Quanto à cessação dos efeitos da coisa julgada, uma das controvérsias de maior relevância a ser definida pelo Judiciário, a decisão a ser proferida pelo STF estará sujeita à modulação ou à superação? Justifica-se que em cada um dos temas de repercussão geral haja uma deliberação diferente? Independentemente do que se defina, espera-se que a segurança jurídica e a isonomia restem fortalecidos.logo-jota