O Mundo Fora dos Autos

Trabalhadores gripados e o ‘caso do sanduíche doente’

A luta pela paid sick leave nos EUA e a liberdade de expressão dos empregados

Cartaz de empregados do Jimmy Johns’s mostra duas fotos rigorosamente iguais: na primeira consta a frase “seu sanduíche feito por um trabalhador saudável da Jimmy Johns’s” e, na segunda, “seu sanduíche feito por um trabalhador doente da Jimmy John’s”. Abaixo das duas imagens, a pergunta: “você saberia dizer qual é a diferença?” Imagem: Twitter

Com um empréstimo de 25 mil dólares de seu pai, Jimmy John Liautaud abriu uma loja de sanduíches na garagem da sua casa, em 1983, na cidade de Charleston, Illinois. Ele fazia lanches baratos ao estilo “sub”, priorizando entregas aos famintos e sovinas estudantes da Eastern Illinois University. Foi assim que o seu negócio prosperou e ele logo quitou o investimento paterno.

O restaurante, é claro, levou o seu nome e logo o “Jimmy John’s” se tornou uma daquelas franquias americanas de sanduíches que começaram com uma pequena unidade nos anos 1980 e se expandiram como fogo na palha pelos Estados Unidos, com centenas de franqueados. A empresa cresceu tanto que patrocinou de pilotos da Nascar a lutadores do UFC.

Mas o Jimmy John’s e seus franqueados não tinham uma política muito amigável para os seus empregados. Em caso de falta por doença, os trabalhadores da franquia não recebiam salários e eram obrigados a encontrar e mandar um substituto em seu lugar, sob pena de perderem o emprego!

Trabalhadores de um fraqueado em Minneapolis não gostaram dessa ideia e se filiaram ao sindicato Industrial Workers of the World Union (IWW). Os trabalhadores do Jimmy John’s alegavam que a política da empresa os induzia a comparecer ao trabalho doentes para não perder o salário. Muitos empregados gripados, que precisariam ficar em repouso por dois ou três dias, acabavam trabalhando para não perder a renda e obviamente poderiam contaminar não só os colegas de trabalho, como também os sanduíches que montavam, repassando o vírus da influenza para os consumidores.

Os trabalhadores foram ao sindicato e sob sua orientação decidiram montar uma campanha de boicote aos produtos da empresa. Nos Estados Unidos, é muito comum que ações sindicais se deem através de campanhas de boicote, com os ativistas tentando convencer consumidores a não comprar produtos e serviços de empresas que tratam mal seus empregados.

A conduta é permitida pela National Labor Relations Act de 1935 e também pela jurisprudência da Suprema Corte desde o precedente New Negro Alliance v. Sanitary Grocery 303 U.S. 552 (1938), um caso no qual uma associação de defesa de direitos civis organizou um boicote contra uma mercearia que não contratava trabalhadores negros.

Os empregados do Jimmy Johns’s foram bastante criativos em seu protesto e conceberam o cartaz que ilustra essa matéria.  Ele mostra duas fotos rigorosamente iguais de “subs” da rede: na primeira consta a frase “seu sanduíche feito por um trabalhador saudável da Jimmy Johns’s” e, na segunda, “seu sanduíche feito por um trabalhador doente da Jimmy John’s”. Abaixo das duas imagens, a pergunta: “você saberia dizer qual é a diferença?” Em letras vermelhas, prossegue: “isso é assim tão difícil porque os empregados do Jimmy John’s não têm direito a afastamento remunerado por doença.” Mais adiante, outra provocação: “Esperamos que o seu sistema imunológico esteja bem porque você logo se submeterá ao teste do sanduíche…”  Por fim, o poster conclamava os clientes a telefonar para o franqueado em Minneapolis, “para que ele saiba que você quer trabalhadores saudáveis preparando o seu sanduíche”.

Os trabalhadores envolvidos no boicote colaram seis mil cartazes como esse em Minneapólis e St. Paul, as “cidades gêmeas” de Minnesotta, nas quais todas as lojas eram administradas por um mesmo franqueado. O proprietário das lojas, como era de se esperar, ficou furioso e conseguiu descobrir os seis empregados que estavam envolvidos na ação sindical. Ele os demitiu imediatamente. Também mandou uma equipe de empregados para retirar os cartazes do boicote em todas as duas cidades.

Os trabalhadores demitidos recorreram à National Labor Relations Board, uma agência administrativa do governo federal que examina conflitos individuais e coletivos decorrentes do direito de ação sindical.  Os empregados do Jimmy John’s sustentavam basicamente que a despedida era retaliatória e constituía um ato claramente antisindical, pois violava o disposto na seção 7 da NLRA, que considera como unfair labor practice qualquer ato praticado em retaliação a uma concerted activity, ou seja uma ação organizada por trabalhadores com fins reivindicatórios, incluindo-se nessa o direito de comunicação dos trabalhadores engajados com terceiros e com o público em geral, como parte de uma disputa trabalhista.

A NRLB julgou o pedido procedente, pois entendeu que os cartazes estavam ligados à disputa laboral e não continham mensagem que pudesse ser considerada “desleal, imprudente ou maliciosamente falsa”, única hipótese que poderia restringir o discurso sindical.

Nos EUA, todas as decisões das agências administrativas trabalhistas podem ser revistas pelo Judiciário em razão do judicial review, e os tribunais federais têm competência originária para conhecer destes recursos. Foi o que aconteceu também nesse caso, pois a empresa recorreu à Justiça Federal, alegando que a propaganda divulgada pelos trabalhadores denegria a imagem da empresa perante seus clientes e que a terminação era justificada porque os trabalhadores teriam faltado com o dever de lealdade para com o empregador.

Em julgamento proferido em 2017, a Corte Federal de Apelações do Oitavo Circuito surpreendentemente reverteu a decisão da NLRB. No entendimento da justiça federal, a interpretação dada pela agência administrativa violava o precedente da Suprema Corte NLRB v. Local Union no. 1229 IBEW, 346 U.S. 464 (1953), que estabeleceu o “Jefferson standard”, segundo o qual os empregadores podem dispensar empregados quando estes proferirem “ataques virulentos e públicos com o fim de depreciar a qualidade dos produtos da empresa ou de suas políticas empresariais, de uma forma deliberada para prejudicar a sua reputação e reduzir seus lucros”, ainda quando essa comunicação esteja relacionada a uma disputa laboral em curso.

A decisão da Corte Federal de Apelações do Oitavo Circuito (MikLin Enters., Inc. v. NLRB, 2017 U.S. App. LEXIS 11792 (8th Cir. July 3, 2017)), que teve claro viés conservador, foi duramente criticada pela doutrina constitucional americana, pois representou um revés ao direito de liberdade de expressão dos trabalhadores durante atos sindicais.

A crise do coronavírus está ressuscitando não apenas o debate sobre a paid sick leave nos EUA, como sobre o próprio direito dos trabalhadores em comunicarem aos consumidores suas péssimas condições de trabalho.

Conforme relatei em minha coluna da semana retrasada, a pandemia trouxe ao debate público dos EUA uma questão trabalhista mal resolvida naquele país: a inexistência de direito dos trabalhadores ao afastamento remunerado em caso de doença.

O Congresso aprovou nos últimos dias um pacote de emergência para enfrentar a crise viral, e inclui nele o direito de licença remunerada por 14 dias para trabalhadores que forem obrigados a permanecer em quarentena. É certo que esse debate não terminará agora: se os trabalhadores têm direito ao afastamento com salários decorrente do coronavírus, por que razão se há de lhes negar semelhante direito futuramente, na intercorrência de outras enfermidades?

Como expliquei naquele artigo, a legislação federal do trabalho norte-americana não prevê direito de licença com pagamento de salários e, em caso de doença, os empregados podem, no máximo, se afastar sem pagamento dos dias parados e de forma bastante limitada, pois há uma série de restrições para o exercício do direito.

Há algumas exceções, pois alguns estados pro-labor como Massachusetts estabelecem a licença remunerada por motivo de saúde, e alguns servidores públicos e poucos empregados da iniciativa privada são protegidos por convenções coletivas. Esse será certamente um dos temas quentes dos debates para as eleições presidenciais.

Igualmente importante do ponto de vista constitucional é o direito de livre expressão para ações sindicais, especialmente agora em que muitos trabalhadores começam a questionar políticas patronais que exigem presença de grande número de empregados confinados, até mesmo quando se constata que há colegas possivelmente infectados entre eles. E os consumidores certamente estão mais interessados na saúde dos empregados das empresas que lhes oferecem produtos e serviços, e talvez ficarão mais dispostos em ouvir o que eles têm a dizer, como no “caso do sanduíche doente”.  O coronavírus despertará reivindicações há muito sufocadas no mundo do trabalho.

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A decisão da Corte Federal de Apelações do Oitavo Circuito aqui comentada pode ser lida neste link.