
Em maio deste ano, na esteira dos lockdowns determinados para conter a COVID-19, o Governador da California, Gavin Newson, baixou um Decreto estadual, limitando a frequência do público a templos religiosos, restringindo sua capacidade a 25% do número de assentos, observado o número máximo de cem frequentadores.
A igreja South Bay United Pentecostal e outras interpuseram um pedido de “injunction” perante a Suprema Corte, contestando a ordem do Governador, ao argumento de que ela violava a liberdade de culto assegurada na Primeira Emenda à Constituição dos EUA.
A questão foi rapidamente distribuída ao plenário e no dia 29 de maio, por maioria apertada de cinco votos a quatro, a decisão entendeu que as restrições determinadas pelo governo estadual californiano eram constitucionais, uma vez que é função do Poder Executivo adotar medidas de proteção coletiva à população, especialmente quando incertezas médicas e científicas demandam ampla latitude de discricionariedade.
Os juízes da maioria ressaltaram que essa discricionariedade ampla, desde que não excedida, não pode ser controlada por pressuposições de um “judiciário não eleito”, que não possui conhecimento técnico ou experiência para a avaliar a saúde pública e, ainda, não detém responsabilidade política perante o eleitorado. Votaram na tese vencedora os quatro juízes que então integravam o bloco tido como “liberal” (Breyer, Sotomayor, Kagan, Ginsburg), com a adesão do Presidente Roberts, que redigiu a decisão.
Três dos juízes vencidos (Kavanaugh, Thomas e Gorsuch), embora admitindo que a pandemia é um motivo justificador da ampla discricionariedade administrativa, entenderam que havia em concreto uma discriminação aos serviços religiosos, porque o governo da Califórnia não teria justificado adequadamente por que outras atividades estavam sujeitas a critérios distintos de restrição de público. O Juiz Alito também votou pela inconstitucionalidade do decreto governatorial, embora não tenha assinado a divergência.
A possibilidade de o poder público determinar, durante a pandemia, restrições de capacidade em templos parecia pacificada pela Corte, mas eis que depois da última e controversa alteração na sua composição (nomeação expedita de Amy C. Barrett no lugar da saudosa Ruth B. Ginsburg), o resultado anterior foi invertido, em caso semelhante. Barrett, conhecida por sua forte religiosidade na vida pessoal, aliou-se aos quatro juízes do bloco conservador que haviam ficado vencidos em South Bay United Pentecostal, revertendo aquele precedente em menos de seis meses, algo bastante raro de ocorrer em uma corte constitucional que preza pela estabilidade de sua jurisprudência.
Desta vez, o ato normativo questionado provinha do Governador de Nova Iorque, Andrew Cuomo, que diante do crescimento de casos por COVID decorrente da “segunda onda” de infecções, editou Decreto estadual limitando em vinte e cinco o número de presentes em um mesmo ato litúrgico em determinadas áreas da cidade com alta taxa de transmissão da doença.
O recurso à Suprema Corte contra este decreto foi patrocinado por entidades representativas das comunidades católica e judaica de Nova Iorque. Nas suas razões, invocaram a tese defendida no voto divergente do caso South Bay United Pentecostal, sustentando viés discriminatório no ato do Governador. Em particular, na ação Agudath Israel v. Cuomo, juntaram declarações de Andrew Cuomo, proferidas em entrevistas e pronunciamentos, segundo as quais os índices de COVID em bairros da comunidade judaica estavam acelerados devido a aglomerações nas sinagogas.
Os advogados sustentaram que tais manifestações imputavam aos praticantes da religião judaica o papel de “bodes expiatórios” da crise sanitária. Os defensores da Roman Catholic Diocese of Brooklyn alegaram discriminação em relação a atividades comerciais, como lojas de departamento, que estava sujeitas a diferentes regras de restrição de atividades.
O Decreto do Estado de Nova Iorque foi considerado inconstitucional no voto da maioria (Gorsuch, Kavanaugh, Alito, Thomas e Barrett), sendo acolhido, inclusive, o argumento de que as declarações do Governador em relação a religiões específicas não passavam pelo rigoroso standard do escrutínio estrito, que entenderam aplicável ao caso.
Mas o que chamou a atenção dos analistas da Suprema Corte foi o tom enfático adotado no voto da maioria, com críticas abertas à decisão anterior referente à Califórnia, redigida como se viu, pelo Presidente da Corte. O Justice Neil Gorsuch, escrevendo um voto convergente, anotou: “mesmo em uma pandemia, a Constituição não pode ser colocada de lado. As restrições em questão, ao efetivamente impedir que muitos participem de cerimônias religiosas, atingem o cerne da liberdade religiosa assegurada na Primeira Emenda”. E adicionou que era chegada a hora de repelir “concepções equivocadas sobre o papel da Constituição em tempos de crise, que tem sido convalidadas por tempo demais.” E conclui com quase um manifesto: “os tribunais devem voltar a aplicar a Cláusula do Livre Exercício religioso e hoje uma maioria desta corte afirma esse plano”.
O presidente John Roberts parece não ter gostado do tom triunfalista e acrimonioso adotado por Gorsuch, pois em seu voto fez questão de rebater diretamente um de seus pontos, salientando que divergências entre os juízes sobre o sentido das normas constitucionais deveriam ser encaradas com naturalidade por todos os seus integrantes. Some-se a essa inusual observação o que talvez seja um descontentamento com um pronunciamento público recente do Justice Samuel Alito, que em evento da Federalist Society (associação de juristas conservadores), criticou abertamente algumas decisões recentes da Suprema Corte, muitas da quais contaram com o voto de Roberts.
Esse tensionamento causado pela nova maioria conservadora decorrente das três indicações de Trump (que não precisam mais contar com o voto do moderado John Roberts para formar um bloco coeso) parece estar abrindo um novo capítulo na história recente da corte, iniciada em 2005 sob sua presidência.
Há sérias dúvidas sobre como Roberts vai se comportar em casos delicados que espelham a polarização da opinião pública, pois ou ele consegue mitigar os renovados “apetites” dos juízes que lhe estão à direita ou pode ficar isolado com os três juízes liberais remanescentes, caso em que sua presidência pode se enfraquecer, como ocorreu com Warren Burger (1969-1986) nos anos em que o seu voto era frequentemente contado entre os vencidos.
Também não será fácil sua aliança circunstancial com o bloco liberal, já que o clima de acirramento ideológico na corte também parece estar enervando alguns de seus membros, que acabam por criticar Roberts indiretamente. Em seu voto divergente no caso do Decreto do Governador de Nova Iorque, a Juiza Sonia Sotomayor (indicada por Obama) lembrou que quando a Suprema Corte julgou em 2017 o banimento de viajantes de países muçulmanos (Trump v. Hawaii), a maioria (com o voto de Roberts) não aplicou o “strict scrutiby”, mesmo em face de declarações abertamente preconceituosas de Donald Trump de que a medida era um “muslim ban”, e agora o fazia apenas porque Andrew Cuomo constatara o fato de que bairros da comunidade judaica estavam entre áreas com propagação acelerada de casos de COVID. Ou seja, Sotomayor acusa indiretamente a corte de agir politicamente, atuando em autorestrição com o Republicano Trump e com ativismo contra o Governador Democrata Cuomo.
Se há uma certeza é a de que John Roberts enfrentará tempos conturbados nos próximos anos de sua presidência e uma administração do Partido Democrata que se inaugura no início do próximo ano certamente não lhe ajudará para conter esse alvoroço provocado pelas nomeações de Donald Trump, que alteraram um terço da composição da corte.
O episódio 45 do podcast Sem Precedentes trata de dois julgamentos que irão começar no Supremo Tribunal Federal (STF) e que interferem diretamente nas relações da Corte com o governo Bolsonaro e o Congresso Nacional. Ouça: