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Racismo no trabalho: nos EUA custa U$ 1 milhão; no Brasil, U$ 4 mil

Indenizações pífias exemplificam prostração crescente da Justiça do Trabalho em face do poder econômico

Crédito: Pixabay

Melvin Berry, negro, 43 anos, com formação universitária, foi contratado para trabalhar na fábrica de automóveis elétricos da Tesla em Freemont, Califórnia, onde era diretamente subordinado a um supervisor branco, de 23 anos, com formação educacional limitada ao ensino médio. Durante a vigência da relação de emprego, Berry foi seguidamente tratado com termos abertamente racistas pela sua chefia. Apesar de ter reclamado da conduta de seus superiores, nada foi feito e, devido ao ambiente agressivo no trabalho, pediu demissão e precisou passar por atendimento psicológico.

Um operário negro do Rio Grande do Sul, cuja identidade permanece em sigilo processual, trabalhava no setor de pintura na unidade de Gravataí da General Motors, e era alvo constante de piadas racistas feitas diante de seus companheiros pelo seu chefe imediato. Depois de muitas reclamações, o seu supervisor foi retirado da função e despedido “sem justa causa”. A empresa tratou o caso como um “fato isolado”.

Ambos os trabalhadores contrataram advogados para pedir uma reparação por danos morais, em razão do assédio moral racista a que foram submetidos.

O americano havia assinado no ato da contratação um compromisso arbitral, tática que vem sendo muito usada pelas empresas americanas para evitar processos judiciais, depois que a Suprema Corte, em decisão muito criticada, julgada em linhas ideológicas por maioria estreita de cinco a quatro, chancelou a arbitragem nas relações de trabalho, no julgamento do caso Epic Systems Corp. v. Lewis (2019).

Mesmo sendo muito difícil obter vitória em arbitragem de casos de discriminação e assédio racial no local de trabalho, as provas apresentadas eram tão fortes que a árbitra Elaine Rushing, uma experiente ex-juíza do estado da Califórnia com mais de vinte anos de carreira, condenou a empresa e fixou a indenização em um milhão de dólares.

O trabalhador brasileiro ajuizou uma ação trabalhista perante a Justiça do Trabalho no Rio Grande do Sul. Na primeira instância, o seu pedido foi rechaçado, porque o juiz entendeu que a empresa teria adotado providências para fazer cessar as condutas racistas, ao desligar o supervisor que as teria praticado.


No entanto, não restou claro no processo quanto tempo levou entre a queixa do empregado e a efetiva adoção de providências pela empresa, sustentando o autor que isso demorou mais de oito meses e o réu trinta dias. O ex-empregado da GM recorreu da decisão ao TRT da 4ª. Região, que reconheceu a existência do dano moral e fixou a indenização em 20 mil reais.

No voto da relatora do processo julgado no Rio Grande do Sul (0020275-55.2016.5.04.0233), consta apenas isso a título de parâmetro para fixar a indenização: “nesse caso, arbitro o valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), montante que considero adequado, tendo em conta o porte da reclamada e a gravidade da conduta, inclusive, renovo, tipificada pelo Código Penal como crime, não se tendo por elevado diante dos danos sofridos.”

Bem, não vou defender aqui que fatos como esses, praticamente idênticos, que ocorreram em fábricas de automóveis americanas multinacionais, instaladas na Califórnia e no Rio Grande do Sul, sejam julgadas exatamente da mesma forma. É evidente que os sistemas jurídicos são distintos, assim como o são as respectivas ordens sociais e sua regulamentação de condutas discriminatórias com viés racial.

Mas é preciso ponderar as semelhanças: Brasil e Estados Unidos possuem um passado de escravidão que deixou marcas de racismo estrutural que perpassam a organização do trabalho.

E os dois países possuem normas que vedam e coíbem a discriminação racial laboral, bem como regras que permitem a condenação de empresas que de forma direta ou indireta toleram ou se omitem quando tais condutas ocorrem.

Não se esperaria que nosso judiciário fixasse indenizações de centenas de milhares de dólares por danos morais, como é comum ocorrer nos EUA, inclusive porque a dimensão das economias é bastante distinta.

Por outro lado, no entanto, a comparação dos dois casos é útil para se perceber como as condenações aqui em nosso país, por fatos como os descritos, tem sido ridiculamente baixas, o que, a meu juízo, se explica, entre outros fatores, por uma prostração crescente de boa parte do Judiciário trabalhista em face dos poderes do capital e das campanhas difamatórias recorrentes que tem sido feitas contra o que seria uma excessiva intervenção de juízes do trabalho nas relações entre patrões e empregados.

O caso do TRT da 4ª Região não é isolado. Quem acompanha a jurisprudência trabalhista sabe que esse valor é emblemático e até alto, pois em geral, indenizações por danos morais nas relações de trabalho, mesmo em casos graves, tem sido fixadas na casa de cinco a dez mil reais (na coluna da semana que vem abordarei outro caso de indenização absurdamente baixa em face de conduta gravíssima).

O que chama a atenção nesses casos (e o acórdão do TRT gaúcho é bastante ilustrativo disso), é a completa ausência de parâmetros razoáveis para a fixação dos danos e, mesmo quando se os menciona, sua utilização de forma completamente arbitrária. Na decisão da Justiça do Rio Grande do Sul, a relatora do caso afirma que a conduta é “grave”, pois estaria também tipificada como crime. Pois bem, mas de que forma essa “gravidade” serve de escala para a fixação do dano?

Observe-se que mesmo a controversa tarifação trazida pela Reforma Trabalhista (art. 823, G, que reputo inconstitucional, mas por enquanto válida perante o princípio da presunção de constitucionalidade) estabelece que em caso de dano grave, a indenização poderia ser fixada em “até vinte vezes” o salário do trabalhador.

E, se fosse considerada “gravíssima” (o que poderia tranquilamente se decidir, tendo em conta que a relatora compara a conduta do preposto da empresa a crime), os danos morais poderiam ser estipulados em “até cinquenta vezes” o salário do empregado.

Pois bem, empregados no setor de pintura da GM, segundo tabelas disponíveis na internet, recebem em média R$ 2.500,00. Ou seja, a indenização, pelos questionáveis critérios da Reforma Trabalhista, poderia muito bem ser justificada entre R$ 50.000,00 e R$ 125.000,00. Mas, apesar de reconhecer que o dano é grave, a relatora do caso simplesmente fixou aleatoriamente uma indenização de ridículos 20 mil reais – quatro mil dólares! Indenização parecida com aquelas de “perda de bagagem”.

Outro suposto parâmetro utilizado de forma ainda mais sem-pé-nem-cabeça é o que se refere ao “porte da empresa”, mencionado de forma expressa na decisão.  Bem, na medida em que se adota esse critério, seria de se esperar, no mínimo, que a indenização guardasse alguma correspondência com o faturamento da empresa no Rio Grande do Sul, no Brasil ou mesmo no mundo, já que a instalação de Gravataí é um braço da operação mundial da GM.

Observe-se que esta tentacular corporação publicou em seu balanço público internacional, disponível com dois ou três cliques da internet, que seu lucro líquido em 2019 foi de modestos U$ 6,43 bilhões de dólares – certamente o lucro será bem menor em 2020 por conta desta condenação do tribunal trabalhista gaúcho.

Ora, se a preocupação é com o “porte da empresa”, por que não fixar a indenização em percentil correspondente ao faturamento da filial ou aos valores de isenção fiscal que a empresa generosamente recebeu do governo do estado do Rio Grande do Sul? Estou falando da aplicação de um fator fixado em algo como 0,0001%, o que certamente resultaria num valor em muito superior a vinte mil reais…

Aliás, essa suposta consideração do “porte da empresa” tem sido aplicado de forma discricionária e sem critério pelos tribunais trabalhistas, bastando ver que seis meses depois do julgamento do caso da GM, o mesmo TRT da 4ª Região apreciou um outro caso de racismo laboral ocorrido no Rio Grande do Sul, em uma empresa local de laticínios e a condenação foi exatamente dos mesmos vinte mil reais…

Não posso mensurar o tamanho desta companhia, pois o setor de comunicação daquele tribunal, sendo bastante camarada com o réu infrator, não divulga sequer o seu nome. Mas acredito que essa empresa de laticínios de Erechim não tenha o mesmo “porte” da GM.

Por fim, ressalto que nas razões do julgamento, a relatora aludiu ao fato de que a indenização “não é elevada pelos danos sofridos”. De fato, não só não é elevada, como é pífia e sequer serve a efeitos pedagógicos para reprimir condutas semelhantes no futuro. E, afinal, por que não poderia a indenização ser elevada?  Ela não deveria ser elevada justamente pela gravidade do dano? O raciocínio deveria ser o inverso: a multa precisa ser muito elevada em razão dos danos sofridos…

Esse tipo de tibieza na fixação de indenizações altas integra a obtusa doutrina desenvolvida pela jurisprudência brasileira de que o judiciário deveria impedir a “indústria do dano moral”, designação estapafúrdia que não quer dizer absolutamente nada juridicamente; concepção inexistente em outros países, criada a princípio para evitar um suposto “enriquecimento sem causa” de litigantes, como se alguém no Brasil pudesse ficar “rico” com cem ou duzentos mil reais…

Quem está enriquecendo indevidamente são, ao contrário, as empresas que adotam condutas discriminatórias, vexatórias e abusivas com seus trabalhadores e são “premiadas” com castigos molengas de mãe arrependida, por um judiciário cada vez mais temeroso e dócil diante do poder econômico.