O Mundo Fora dos Autos

O imigrante haitiano desconhecido e o zumbi do Alvorada

Como no conto de H.C. Andersen, ele ousou dizer: ‘o Rei está nu’

Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Sempre me intrigou o fato de que no “cercadinho do Alvorada” só aparecessem aqueles tiozões de churrasco que mandam tresloucadas mensagens no WhatsApp, de camisa amarela e celular em punho, a reverenciar aulicamente o presidente da República, como se estivessem diante de um gênio extraordinário da humanidade, quando, quase todos o sabemos, o chefe do Executivo tem sérias limitações cognitivas, emocionais e intelectuais.

Por vezes me perguntava por que militantes da oposição não se organizavam em Brasília e apareciam por lá apenas para espicaçar e dizer algumas poucas e boas na cara de Jair Bolsonaro. Afinal, protestos fazem parte da democracia e no mundo todo militantes erguem faixas e berram em megafones defronte aos símbolos do poder.  O turista que visitar a Casa Branca, em qualquer dia do ano, encontrará americanos bradando contra o presidente, seja ele quem for, Democrata ou Republicano, pelos motivos mais variados, pertinentes ou não.

É bem verdade que um ciclista corajoso e anônimo da capital federal até tentou um solitário protesto, apareceu diante do Alvorada num domingo baldio e perguntou ao presidente “onde está Queiroz?”, mas recebeu como resposta presidencial um nada cortês xingamento à senhora sua mãe. Talvez isso tenha desestimulado outros protestos, pois como diz o ditado, “não se pode jogar xadrez com pombos”.

Assim, restou à nação assistir passivamente ao triste espetáculo de um presidente que, sob aplausos e “améns” de uma turba de fanáticos prosélitos, toma a palavra à saída do palácio presidencial com a finalidade pouco nobre de agredir opositores, críticos e jornalistas, recorrendo frequentemente à linguagem vulgar dos mais sórdidos lupanares ou, pior ainda, a um comediante ridículo que o “substituiu” em uma entrevista, naquele que foi certamente um dos momentos mais deprimentes e constrangedores da história da presidência da República desde sua inauguração, em 1889.

Por isso, assisti com grande espanto o que sucedeu na noite do dia 16 de março passado, no início da noite, em Brasília. Um imigrante haitiano desconhecido conseguiu posicionar-se no cercadinho da claque bajulatória e, mais incrível ainda, logrou obter a atenção do presidente, que no dia anterior havia confraternizado com alguns de seus seguidores mais aloprados, no infame ato público “contra” o Congresso e o STF, descumprindo, além de tudo, as orientações do seu próprio governo para evitar aglomerações, quando ele próprio se encontrava sob suspeita de contaminação do covid-19.

E então o simpático haitiano teve a petulância de proferir as seguintes palavras ao Senhor presidente da República: “Bolsonaro, acabou. Você está recebendo mensagem no celular. Todo brasileiro está recebendo mensagem no seu celular. Você não é presidente mais. Você não é presidente mais”.

Jair Bolsonaro, em atitude passiva, mãos entrelaçadas abaixo da cintura, estupefato, ouviu a manifestação daquele ousado nativo da Ilha de Santo Domingo, que parecia ter encarnado naquele instante o intrépido espírito de Toussaint Louverture, a lhe dizer com a cara mais deslavada do mundo que tudo para ele está acabado e que não manda mais em nada.

O desconhecido lembrou aquele personagem célebre de H.C. Andersen, o menino que na sua pureza e inocência, para o espanto da multidão, era o único a afirmar o que todos viam mas não tinham coragem de afirmar diante de Sua Alteza e seus súditos: o Rei está nu!

Tenho cá minhas suspeitas de que aquelas breves palavras do haitiano caíram como uma maldição sobre Jair Bolsonaro. De lá para cá o presidente parece totalmente desnorteado, demonstra sinais evidentes de alucinação e descolamento da realidade e, inclusive, uma noite dessas chegou do trabalho e aproximou-se meio catatônico do cercadinho, parecendo um verdadeiro zumbi.

Aliás, por falar em zumbis e no Haiti, na tradição religiosa vodum daquele heroico país, os “zonbis” representam “a pessoa que teve sua alma escravizada por um feiticeiro”. É também comumente associada àquela religião a prática do vodu, ritual mágico com o qual se busca atingir desafetos e inimigos, através de pequenos bonecos de pano que os representam, perfurando-se-lhes com alfinetes para que assim sejam amaldiçoados e vitimados pelas mais horríveis danações.

Isso tudo não passa, é claro, de mera especulação metafísica e de certo modo um pouco preconceituosa de minha parte, pois creio que o imigrante haitiano desconhecido de magia nenhuma precisou se valer, já que mostrou ser o mais racional, clarividente e realista habitante de nossa nação entorpecida, pois constatou o fato óbvio e ululante de que o presidente, tal como um zumbi ou boneco de vodu, é hoje comandado por forças superiores – em razão da patente, ou inferiores – em razão do amor filial.

Prova da tutela que lhe vem de cima é que, pretendendo o presidente demitir seu Ministro da Saúde, foi, segundo a crônica política, contido pela “ala militar”, a qual, depois de reavaliar a questão após a entrevista de Mandetta à TV Globo, “liberou” o presidente para consumar a sua vontade, por vislumbrarem no ato “quebra de hierarquia”.  Exoneração que foi concretizada em estranha entrevista coletiva, na qual o Presidente, atarantado e disléxico, parecia repetir frases que lhe eram assopradas por sabe-se lá quem em um ponto eletrônico.

Quanto às forças ocultas que lhe dirigem de baixo para cima, nada pode ser mais emblemático do que a nomeação informal, como ordenança e assessor especial para assuntos aleatórios, com direito a gabinete no Palácio do Planalto, de um vereador do Rio de Janeiro que não por coincidência vem a ser o seu filho mais excêntrico, o qual, embora incapaz de escrever dois parágrafos que façam sentido e de respeitar minimamente as regras mais elementares da nossa última flor do Lácio, assumiu, ao que parece, o pálio da República durante a mais grave crise do Século, deixando, sem explicação aparente, de comparecer às sessões do Palácio Pedro Ernesto, onde deveria dar expediente e exemplo.

Nesse teatro do absurdo nada disso surpreende, pois o próprio Jair Bolsonaro declarou há alguns meses que “não nasceu para ser presidente”! Porém, vamos e venhamos, deveria Sua Excelência ter informado isso ao eleitorado antes das eleições. Melhor dizendo, deveria ter informado isso à fatia do eleitorado que o levou à presidência, já que a parcela restante já tinha pleno conhecimento do fato e não sufragou o seu nome exatamente por esse motivo nada trivial.

De tudo a que assistimos no último mês, fica a impressão de que o ocupante da cadeira presidencial já não governa mais, estando a mercê de seus generais de pijamas e de sua incrível prole. O presidente parece viver numa bolha e acreditar que os áulicos do cercadinho representam a grande maioria do povo brasileiro.

O haitiano, com seu alfinete metafórico de vodu ou com sua simples perspicácia terrena, furou essa bolha e trouxe-nos um pouco de realidade, lembrando a todos que Jair Bolsonaro é cada vez menos presidente do Brasil. Não sei se um dia descobrirão a identidade do imigrante haitiano desconhecido, mas ele já assegurou um lugar no Panteão dos Heróis da República.