A controvérsia sobre a autodeclaração de ACM Neto no registro eleitoral da sua candidatura, como sendo de cor “parda”, é uma oportunidade para analisar de que forma as instituições do sistema de Justiça interagem com a percepção da sociedade sobre as categorizações raciais. Ao que parece, na Bahia há uma impressão generalizada, em especial entre os eleitores pardos e pretos, de que o candidato ao governo da Bahia pelo União Brasil teria feito uma declaração falsa de sua cor, no intuito de obter alguma vantagem. Para quase todos no Brasil, ACM Neto é um homem branco.
Pela minha experiência nos EUA, creio que uma eventual definição racial do político baiano seria estabelecida em padrões divergentes do que parece ser um certo senso comum no Brasil e no estado da Bahia. Para tanto, resolvi fazer o seguinte experimento informal, sem qualquer pretensão científica.
Circulei entre vários alunos e professores negros de uma universidade americana fotos do candidato, disponíveis no Google Imagens. Nas fotos, como qualquer um pode fazer ao acessar o buscador, há algumas em que o tom da pele de ACM Neto está mais claro e em outras mais escuro. Achei importante apresentar várias fotos para evitar incluir apenas imagens mais recentes, em que o candidato aparenta estar “bronzeado” (segundo seus detratores, artificialmente). Note-se, também, que nos EUA a cor da pele não é o único elemento considerado para definição racial. Obviamente que nenhum dos consultados sabia quem é o personagem, sua nacionalidade e nem muito menos conhecia a polêmica sobre a questão.
De todos os negros norte-americanos que consultei, nenhum afirmou que ACM Neto é branco, como nenhum afirmou que ele é negro. As respostas mais comuns foram “biracial”, “latin”, “hispanic” e “mexican”. Em uma segunda rodada, perguntei se a pessoa nas imagens poderia ser considerada “a person of color”, expressão usada para definir quem não é branco nos EUA. Todos responderam afirmativamente à questão.
Em seguida, pedi a uma professora da África do Sul que tem ascendentes britânicos, africanos e indianos e que se declara como sendo de “mixed color” (o equivalente ao nosso “pardo” naquele país), que definisse a cor de ACM Neto. Pedi também que ela circulasse as imagens em grupos de amigos da África do Sul de diferentes raças ou cores. Nenhum classificou ACM Neto como “branco”. As respostas mais comuns foram “mixed” e “indian” (indiano). Repeti o segundo procedimento da pesquisa feita com os norte-americanos, pois na África do Sul, assim como nos EUA, a expressão “a person of color” designa não brancos. De novo, todos os sul-africanos consultados consideraram ACM Neto “a person of color”.
Por que, afinal, há diferenças de percepção sobre quem é branco, pardo ou negro entre os países que experimentaram o escravismo e leis raciais? E como as normas que visam reparar as desigualdades raciais (necessárias e urgentes, presentes no Brasil, nos EUA e na África do Sul) devem ser aplicadas quando há conflitos de classificação, tendo em conta essas diferentes percepções sobre cor e raça nesses países?
Não há resposta fácil para essas difíceis questões, mas creio que algumas premissas podem ser extraídas a partir do Direito Comparado com os EUA e com a África do Sul. Esses dois países, diferentemente do Brasil, foram colonizados pela Inglaterra e Holanda, de modo que o conceito de “branquitude” lá está até hoje associado aos fenótipos do norte da Europa. Na América Latina em geral, os “brancos” foram associados aos povos latinizados do sul da Europa, cujas características de cor da pele, feições e cabelo são notavelmente diferentes.
Um exemplo concreto desta distinção são as leis de naturalização que foram adotadas nos Estados Unidos no final do século 19 e início do século 20, como o Naturalization Act de 1906. Essas normas aprovadas no Congresso com o intuito essencial de barrar a imigração de orientais e povos islamizados estabeleciam que somente poderiam naturalizar-se americanos pessoas brancas ou “africanos” (na verdade, os negros norte-americanos, em razão das emendas da reconstrução que se seguiram à Guerra Civil).
Essa definição da Naturalization Act de 1906 levou a uma enxurrada de processos na Justiça Federal dos EUA, nos quais os juízes precisavam definir se imigrantes sírios, armênios, marroquinos, mexicanos, indianos, persas, entre outros, eram ou não “brancos”. Um desses casos, inclusive, chegou à Suprema Corte, no qual um indiano de origem Sikh alegava ser um “ariano” (United States v. Bhagat Singh Thind, 261 U.S. 204, 1923). A Suprema Corte negou-lhe o direito à naturalização, ao argumento de que branco significava “caucasiano”, como entendido pelo “senso comum”, já que “ariano” não teria definição científica (decisão totalmente contraditória, por sinal, já que não se exigiu cientificidade ao termo “caucasiano”). Assim, a jurisprudência dos tribunais americanos acabou adotando, de forma geral, uma concepção de “branquitude” mais estreita, aproximando-a dos fenótipos dos colonizadores originais.
Outro aspecto que coloca o Brasil em campo separado dos EUA e da África do Sul é que nestes últimos dois países prevaleceu uma doutrina radical da “gota de sangue” (one drop of blood) para definição de quem é negro. Ou seja, dada a natureza da concepção do direito de propriedade de escravizados naqueles países (reforçada pela extinção efetiva do tráfico no Atlântico Norte, em 1807), a ascendência africana era determinante para manutenção dos cativos nos EUA e na África do Sul, sobrepondo-se, inclusive, à cor da pele ou a outros traços fenotípicos, o que foi reforçado com o sistema de segregação racial institucional existente em ambos os países após a abolição.
No Brasil, apesar do que pode sugerir a famosa obra “A escrava Isaura”, a situação era raríssima, pois em razão da ausência de leis de segregação e em face dos esforços oficiais de “embranquecimento” da população brasileira após a abolição, a cor da pele e os traços fenotípicos prevaleciam sobre a ascendência, de modo que definições informais sobre raça acabavam sujeitas a fatores variados, inclusive, a considerações de status social, cultural e econômico.
A legislação eleitoral que obriga os candidatos a declararem sua cor é um avanço na direção do progresso da justiça racial em nosso país. Sua interpretação e aplicação, no entanto, dificilmente podem se dar de forma eficiente sem uma apreciação sóbria da história e do direito comparado, que leve em conta as diferentes circunstâncias da colonização e da diáspora africana nas Américas. Debater o tema apenas sob o viés das paixões políticas não é um bom caminho, embora seja uma ótima oportunidade.