O Mundo Fora dos Autos

A saúde dos presidentes e o interesse público

O direito às informações médicas do chefe de Estado no Brasil e nos EUA

Capa do jornal 'Gazeta de Notícias' de 17.01.1919

Em 1893, os Estados Unidos estavam atravessando uma gravíssima crise financeira, com a bolsa em declínio acentuado, uma quebradeira geral e os mercados em pânico. Guardadas as devidas proporções, foi o equivalente ao crash de 1929 no século XIX. Grover Cleveland havia assumido a presidência em março daquele ano. Já tinha governado o país no período 1885-1889, sendo o primeiro e até hoje único presidente a ser eleito para dois mandatos não consecutivos na história dos EUA.

Exatamente no dia de sua posse, ele percebeu uma pequena saliência no céu da boca. À medida que crescia a crise econômica deflagrada no início da sua presidência, também aumentava a protuberância interna que Cleveland podia perceber com sua língua; a partir de certo ponto a bossa no palato começou a provocar dores excruciantes, que se irradiavam pelos dentes. Os melhores médicos do país foram chamados e o diagnóstico foi unânime: tumor maligno, que deveria ser removido com a máxima urgência por uma cirurgia complexa, para a época. Caso o câncer localizado não fosse extraído, a metástase poderia ocorrer.

Se a notícia de que o presidente estava sob sério risco de vida viesse a público, ela certamente teria tremendo impacto na crise econômica, tornando as coisas muito piores do que já estavam. Cleveland decidiu que a questão deveria permanecer sob o mais absoluto sigilo e junto com seus assessores mais próximos concebeu um plano secreto para a realização da cirurgia.

Cleveland não poderia se internar em um hospital, pois fatalmente acabaria reconhecido. Ele pediu emprestado a um amigo um iate enorme, de última geração, e mandou instalar dentro dele uma sala de cirurgia com o que havia de mais moderno então em matéria de equipamento hospitalar.

Seis médicos peritos em intervenções cirúrgicas daquele tipo foram recrutados. Além de assinarem um compromisso de sigilo, outra exigência lhes foi imposta: o bigode do presidente não poderia ser removido para facilitar a operação, pois, além de despertar suspeitas, aquele era uma das suas mais fortes marcas na sua imagem pública como político. Para despistar a imprensa, o presidente dos Estados Unidos anunciou que faria um retiro de verão por alguns dias em sua casa em Cape Cod (a linda e praieira península de Massachusetts onde os primeiros peregrinos aportaram).

O iate transformado em hospital marítimo zarpou em junho de Nova Iorque, deitou âncora em águas calmas e a operação para extração do tumor foi extremamente bem sucedida. Um pedaço do palato e alguns dentes foram retirados. Cleveland passou alguns dias se recuperando em seu balneário, voltou para Washington bronzeado, aparentando estar tão vigoroso como antes e ninguém percebeu nada.

Pelo menos por algumas semanas, pois no dia 29 de agosto o jornal Philadelphia Press publicou o que seria, de acordo com sua própria manchete, “o maior furo da história do jornalismo americano”.

A matéria, assinada pelo jornalista E.J. Edwards, revelava em riqueza de detalhes não só a cirurgia do presidente a bordo de um iate, como todo o esquema montado para manter o seu sigilo, fornecendo até mesmo o nome completo dos seis médicos que participaram da operação.

A notícia espalhou-se rapidamente por todos os Estados Unidos, provocando a incerteza que o governo tinha querido evitar. A administração agiu rápido, emitindo nota assinado pelo médico do presidente de que este não tinha qualquer problema de saúde. Através de um editor amigo, Cleveland conseguiu plantar em outro jornal a versão de que tinha tido apenas uma dor de dente que resultou na extração de dois molares. A imprensa simpática ao governo atacou o jornalista Edwards como um sensacionalista criador de “fake news”. Ele caiu em descrédito e sua carreira foi prejudicada.

Somente em 1917 a história foi confirmada com a publicação de um livro sobre o assunto, por um dos médicos envolvidos na operação. Documentos secretos do governo posteriormente liberados revelaram todos os detalhes da cirurgia a que foi submetido Grover Cleveland. O próprio tumor foi preservado em laboratório e, inclusive, submetido a testes nos anos 1980, que revelaram tratar-se de um carcinoma de baixa agressividade.

A história do câncer de Cleveland é emblemática do delicado equilíbrio constitucional e político que envolve a privacidade da pessoa do presidente e o direito que o público tem em conhecer informações sobre a condição médica do chefe de Estado.

Outros episódios da história presidencial americana revelam que, embora até o início do século XX houvesse muito pouca transparência sobre a saúde dos líderes da nação, a partir de meados do século XX o pêndulo inverte-se no sentido de assegurar aos cidadãos maiores informações na questão.

Woodrow Wilson, que governou por dois mandatos entre 1913 e 1921, sofreu um sério derrame em outubro de 1919, que paralisou metade de seu corpo. Ele se recusou a renunciar e foi mantido por sua mulher Edith Bolling longe dos olhos do público e da imprensa, que nada sabiam sobre a sua real condição. Muitos historiadores acreditam que os Estados Unidos foram governados de fato por Edith no período restante daquele segundo termo presidencial.

Franklin Delano Roosevelt ficou gravemente doente em 1921, quando tinha 39 anos, e como sequela perdeu os movimentos das pernas, passando a usar uma cadeira de rodas e por vezes muletas. Foi eleito em 1932 sem que os eleitores soubessem da sua deficiência. Ele nunca se deixava fotografar em cadeira de rodas, jamais aparecia em público com elas ou com muletas e ficava em pé em seus discursos, amparado por equipamentos especiais ou por correligionários. FDR foi o único presidente eleito para quatro mandatos (quando isso era possível) e líderes europeus ficaram espantados quando o conheceram pessoalmente durante a Segunda Guerra, pois só então souberam da sua condição.

Roosevelt também esteve no Brasil visitando Vargas em janeiro de 1943, na cidade de Natal, e todas as fotos do histórico encontro que decidiu a participação do nosso país no conflito registram os dois sempre sentados, em um carro aberto ou em uma mesa de reunião. Roosevelt abordou abertamente a sua deficiência apenas em 1945, ano em que faleceu, logo no início do último mandato.

Nos anos 1950, Eisenhower sofreu um infarto no primeiro mandato e no segundo passou por uma cirurgia gastrointestinal e um derrame, mas o público recebeu informações razoavelmente claras a respeito dos dois episódios e aquele presidente conseguiu cumprir os dois termos sem grande prejuízo ao exercício das suas funções.

John Kennedy sofria de atrozes dores nas costas a ponto de precisar de muletas para se locomover em crises mais agudas, fato que era de conhecimento público. Ele também tinha uma rara disfunção endocrinológica conhecida como doença de Addison, que o levou a tomar esteroides para combatê-la e que provocavam fortes efeitos colaterais, assunto que foi mantido em sigilo.

Finalmente, na lista dos presidentes americanos doentes, Ronald Reagan, baleado durante o primeiro mandato, ficou hospitalizado por vários dias e as informações sobre as consequências do atentado foram confiáveis. No segundo mandato, submeteu-se a cirurgia para remover um tumor no cólon e depois outra para remoção de um câncer de pele. Reagan completou o mandato em 1988 e cinco anos depois foi diagnosticado com Alzheimer. Há suspeitas de que, na verdade, ele já começou a apresentar sinais da doença ao final do segundo mandato, quando tinha certos lapsos de memória e em algumas ocasiões sua fala parecia desconexa.

No Brasil, três presidentes eleitos (e um ditador não eleito) morreram durante o mandato por motivo de doença e as informações ao público foram parcas e, em um caso trágico, deliberadamente enganadoras.

Afonso Pena, o sexto presidente da República inaugurada em 1889, foi eleito para cumprir o mandato de 1906 a 1910, mas em junho de 1909 faleceu vitimado de uma pneumonia, com 61 anos. A notícia foi surpreendente para o público, pois ele não parecia doente. Algumas semanas antes, seu filho mais velho havia falecido e isso pode ter impactado em sua saúde. Sua morte ocorreu durante uma crise política relativa a desentendimentos quanto à escolha do candidato à sua própria sucessão, crise que o seu passamento só agravou.

Rodrigues Alves, que exerceu a presidência entre 1902 e 1906, foi novamente eleito para um outro mandato muito tempo depois, em março 1918, quando já contava com 69 anos. Estava fraco e debilitado e não conseguiu por isso sequer tomar posse em novembro daquele ano, sendo o cargo assumido interinamente por Delfim Moreira.

Em janeiro de 1919, faleceu, justamente no auge da epidemia de gripe espanhola. O fator determinante da morte, que vem sendo lembrada devido à presente pandemia, é controverso, sendo alvo de recente polêmica entre Ruy Castro e Elio Gaspari, já que não há certeza de que a gripe espanhola tenha sido, efetivamente, a causa mortis. Que paire dúvida até hoje a respeito de fato histórico tão importante mostra como não havia transparência ou registros públicos confiáveis sobre a saúde do então presidente.

O ditador Costa e Silva, segundo do regime militar, iniciou seu mandato em 1967 e em agosto de 1969 sofreu um acidente vascular cerebral incapacitante, ocorrência que não teve como ser escondida, mesmo por uma ditadura. O fato desencadeou uma crise, pois o vice-presidente, o jurista mineiro Pedro Aleixo, foi impedido de assumir o cargo por uma Junta Militar, que passou a governar o país e logo em seguida editou a autoritária EC 1 à Constituição de 1967, para estabelecer nova eleição indireta e um mandato estendido de cinco anos aos próximos presidentes.

Em dezembro, Costa e Silva faleceu como decorrência do AVS. Ainda durante o regime militar, o presidente João Figueiredo precisou se licenciar do cargo por algumas semanas para tratar de um câncer em Cleveland, Estados Unidos, e o afastamento gerou certas especulações sobre a lealdade do vice Aureliano Chaves.

E, por último, Tancredo Neves, o primeiro presidente civil eleito depois da ditadura militar, foi internado em 14 de março de 1985, às vésperas da posse no Hospital de Base de Brasília, em decorrência de uma crise provocada por intensas dores abdominais, numa aparente apendicite. Embora tivesse na verdade um tumor benigno intestinal, sua saúde deteriorou-se em decorrência de diagnósticos iniciais equivocados e uma sucessão de erros médicos no tratamento do paciente. O governo apresentou versão falsa de que o presidente eleito tivera uma simples diverticulite e mentiu também sobre sua iminente recuperação, quando na verdade sua saúde se deteriorava dia a dia, até a morte no dia 21 de abril.

Em razão do atentado de que foi vítima, Bolsonaro também precisou se afastar para cirurgia e tratamento no início do mandato, e as informações sobre seu estado de saúde parecem ter sido corretamente divulgadas pelo governo.

Assim deve ser, pois quem exerce a presidência deve ter uma expectativa muito reduzida de privacidade no que diz respeito à sua condição médica.

A história nos mostra que a ausência temporária, a incapacitação ou a morte de um presidente sempre causam impactos políticos e econômicos sobre os governados, e o público tem o direito de saber as condições físicas e até mesmo psíquicas do chefe da nação.

Nos EUA, como visto, a experiência levou os sucessivos governos a mudar completamente de orientação, reduzindo a confidencialidade para conferir transparência sobre os dados médicos dos Presidentes, como se vê da trajetória que vai da operação secreta de Cleveland à divulgação clara das cirurgias de Reagan. Já há algumas décadas os presidentes americanos têm divulgado espontaneamente breves relatórios de seus médicos para atestar sua aptidão física e mental.

Este modelo também deveria ser seguido aqui no Brasil. Surpreendentemente, porém, o governo atual vem mantendo um injustificável sigilo sobre o exame de Covid-19 prestado pelo presidente quando voltou dos EUA. Considerando que um número grande da comitiva retornou infectada, e que todos os seus exames foram publicizados salvo o do casal presidencial, não há motivo constitucional para manter aquele teste sob sigilo.

Pelo contrário, além do interesse público natural sobre a saúde do chefe do Executivo federal, cabe ao Ministério Público saber também se ele cometeu os crimes capitulados no Código Penal, em seus arts. 131 (“praticar, com o fim de transmitir a outrem moléstia grave de que está contaminado, ato capaz de produzir contágio”) e 268 (“infringir determinação do poder público, destinada a impedir a introdução ou propagação de doença contagiosa”). E o não atendimento à decisão da Justiça Federal já expedida para a liberação dos exames ensejará, também, outro crime, tipificado no art. 329-A do mesmo código (“impedir, embaraçar, retardar ou de qualquer forma obstruir o cumprimento de ordem judicial ou ação de autoridade policial em investigação criminal”).