Camila Villard Duran
Professora associada de direito da ESSCA School of Management e membro do grupo Mulheres na Regulação
Em 26 de abril de 2023, o Banco Central do Brasil (BCB) publicou o Voto n. 73, que instituiu o Comitê Executivo de Gestão do projeto-piloto da Plataforma do Real Digital e aprovou seu regulamento. Esse voto foi emitido na sequência do Voto n. 31, de 14 de fevereiro de 2023, que atualizou as diretrizes do Real Digital, que será a versão tokenizada da moeda soberana brasileira.
O Real Digital tem o potencial de revolucionar a infraestrutura do mercado financeiro no país. Ele será fundamental para o futuro do sistema monetário brasileiro, com impactos relevantes também nas operações transfronteiriças. Notadamente, a liquidação de obrigações jurídicas é um processo importante para o funcionamento de economias nacionais. A forma como as pessoas físicas e jurídicas realizam pagamentos tende a revelar como elas se relacionam com seu banco central e o mercado.
A moeda soberana é o meio final de liquidação de obrigações financeiras. Ela detém, por excelência, o efeito liberatório. No sistema nacional, ela é hoje representada por papel-moeda, moedas metálicas e contas de reserva mantidas por instituições autorizadas junto ao BCB. São as formas monetárias que constam do passivo do balanço da autoridade e são o ativo mais líquido e seguro da economia nacional. Não há qualquer risco de liquidez ou de crédito, pois o BCB é a única instituição financeira autorizada (constitucionalmente) a emitir a própria moeda.
E qual é a importância da criação de uma moeda soberana tokenizada? Dentro do contexto da tecnologia de registro descentralizado (Distributed Ledger Technology - DLT), a tokenização é o processo de conversão de algo que tenha valor econômico em um token digital, inclusive a moeda.
O desenvolvimento da criptografia e a tokenização de diversos ativos financeiros estão profundamente impactando a forma como a moeda circula e é emitida por Estados e entidades privadas. O piloto do Real Digital tem como objetivo responder a essa demanda e criar uma moeda tokenizada, que sirva como mecanismo on-chain para a liquidação de obrigações financeiras.
No sistema financeiro, o processo de liquidação de obrigações compreende uma série de arranjos, que asseguram a transferência de recursos entre atores de mercado. Basicamente, eles estão organizados em duas camadas. A primeira delas é aquela voltada ao usuário, que se vale de diferentes instrumentos para realizar e receber pagamentos (como Pix, TED/DOC, cartões, cheques etc.).
A segunda camada, por sua vez, corresponde ao nível interbancário. Trata-se de relevante infraestrutura de mercado, que permite o movimento de recursos entre as contas de usuários. No Brasil, ela corresponde ao Sistema de Transferência de Reservas (STR), núcleo do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB). Instituições autorizadas movimentam suas contas de reserva para assegurar a liquidação de obrigações financeiras de forma definitiva. Essas contas são verdadeiras moedas digitais emitidas pelo BCB, de titularidade de entidades integrantes do SPB.
Mas se as moedas emitidas pelo BCB em formato digital já existem, então, por que criar uma nova?
O Real Digital será a CBDC (Central Bank Digital Currency) do Estado brasileiro. Atualmente, 114 jurisdições no mundo, representando 95% do PIB mundial, exploram ou já criaram sua própria CBDC. A CBDC não é uma criptomoeda (como bitcoin ou ether), mas sim um token que "envelopa" uma obrigação jurídica do banco central.
O desenvolvimento das tecnologias de registro descentralizado (a blockchain é um exemplo) e a correspondente tokenização de ativos, nos mercados financeiro e de capitais, geram demanda por equivalentes de moeda, que possam servir como meios de pagamento e de reserva de valor on-chain.
Até o momento, as stablecoins têm atendido a essa demanda. Elas são ativos virtuais, que buscam manter o valor estável de sua unidade monetária por meio do lastro em moeda fiduciária (como dólar, por exemplo) ou em outros ativos (como o ouro) - não irei aqui adentrar na questão das stablecoins algorítmicas. Esse tipo de moeda é emitido por instituições privadas em ambiente de DLT, inclusive por entidades não bancárias.
As CBDCs foram conceptualizadas para que a moeda soberana pudesse acompanhar essa evolução tecnológica. Elas detêm atributos relevantes, como programabilidade e composição de serviços financeiros. Essas qualidades apresentam uma série de funcionalidades potenciais comparativamente a outras formas da moeda estatal, como o papel-moeda ou as contas de reserva. O Real Digital poderá ser um instrumento relevante de transmissão da política monetária. Maior eficiência e maior acessibilidade a ativos financeiros integram a promessa da economia tokenizada.
Por ora, é apenas um piloto com finalização prevista para 2024. No entanto, os votos do BCB já antecipam as primeiras noções sobre o futuro da moeda brasileira:
1) O ambiente de DLT irá reproduzir o sistema legado, ou seja, o acesso ao passivo do BCB restringe-se a instituições específicas. A CBDC brasileira será, a princípio, de atacado, com apenas instituições financeiras e de pagamento sendo titulares desse ativo.
2) Pessoas físicas e jurídicas não-financeiras terão acesso a outro tipo de moeda em DLT: o Real tokenizado, que se constitui como depósitos à vista junto a instituições financeiras e moedas eletrônicas em entidades de pagamento. Essa moeda representa obrigação jurídica de agentes privados e, por simetria regulatória, terá as mesmas garantias de circulação.
3) O piloto tem por objetivo validar o uso de uma solução teste para a CBDC na plataforma Hyperledger Besu. Será uma DLT multiativos, em que ativos de naturezas diversas poderão ser tokenizados. Por ora, para os testes com transações apenas simuladas, os seguintes ativos foram definidos: CBDC (representativa de depósitos das contas reservas bancárias e de liquidação, além da conta única do Tesouro Nacional), Real tokenizado e títulos públicos federais. Para o futuro da plataforma, a multiplicidade de ativos pode implicar em possível sobreposição regulatória, especialmente com a Comissão de Valores Mobiliários. Uma sintonia fina entre autoridades será necessária para evitar fragmentação e competição regulatórias.
4) No piloto, haverá aplicação da moldura jurídica vigente às operações realizadas na plataforma do Real Digital, de forma a evitar assimetrias entre os sistemas legados e o novo. Outra implicação decorrente é a necessária observância de princípios e regras de privacidade e segurança já previstos na legislação (o que será um desafio importante).
5) A liquidação de obrigações financeiras será atômica. As operações devem contemplar a liquidação condicionada e simultânea entre ativos, de forma a assegurar a Entrega contra Pagamento (Delivery versus Payment - DvP) até a camada do usuário final. Ainda, de forma a ampliar ganhos de eficiência e acessibilidade da tokenização, o registro de ativos deve possibilitar seu fracionamento.
6) Apenas instituições já reguladas participarão do ambiente de testes, em sintonia com os itens acima. Apesar do ruído gerado, empresas de tecnologia poderão participar de consórcios com entidades reguladas para integrarem o piloto.
A moeda soberana e sua capacidade de servir como instrumento definitivo de liquidação de obrigações ocupam um lugar central nas relações em sociedade. Em contexto de expansão das atividades da criptoeconomia, as CBDCs serão um ativo importante, inclusive para que bancos centrais consigam cumprir seus mandatos institucionais de manter a estabilidade financeira e a monetária. Políticas públicas, como o piloto do Real Digital, devem garantir que inovações aumentem a eficiência e a segurança jurídica de relações econômicas em um cenário em que a tokenização de ativos já é uma realidade.