Juízo 100% Digital

Viagem ao redor de minhas telas

O confinamento terminou por enquadrar o mundo em uma viagem virtual

Crédito: Pexels

Clássico do isolamento, “Viagem ao redor do meu quarto”, de Xavier de Maistre, ganhou uma nova tradução (Editora 34, 2020) em sintonia com o momento excepcional propiciado pela pandemia. É uma leitura fascinante, que me fez refletir sobre nosso ambiente de distanciamento social e os novos hábitos que ele engendrou.

Que o leitor não se engane, contudo: não estou pensando na vida quase monástica que (alguns) passamos a viver, mas na forma como permanecemos em contato com o resto do mundo, ou seja, nas interações que agora entretemos por meio de nossas telas.

No início, houve um esboço de ruptura total: enquanto o judiciário praticamente fechou, a universidade pública interrompeu tudo e o primeiro semestre de 2020 só começou em setembro. Parecia até uma das sete greves que vivenciei ao longo de minha carreira docente.

É verdade que as orientações de pós-graduação prosseguiram, mas a vida acadêmica da graduação foi quase totalmente paralisada. Nas duas frentes, todavia, o debate do retorno seguiu incessante, pois audiências judiciais virtuais e/ou híbridas e ensino remoto parecem constituir o novo normal.

O momento não é fácil, já que boa parte dos nossos arranjos de vida foi desajustada pela pandemia. Nossos mundos privado e profissional misturaram-se em um único ambiente, com tarefas sobrepostas que mitigaram as demarcações espaciais.

Desapareceu, por conseguinte, a sociabilidade dos deslocamentos entre esses mesmos espaços. Nossos campos de pesquisa tornaram-se refratários à investigação empírica que, por conta do risco da circulação, vê suas possibilidades de realização reduzidas. Como consequência do distanciamento social, nossas aulas migraram para o virtual.

No final das contas, perdi a conta das plataformas digitais com que tive que me familiarizar nesses meses pandêmicos: Lifesize, Meet, Slack, Teams, Webex, Zoom, além de reavivar o Skype e ampliar o uso do WhatsApp. O confinamento terminou por enquadrar o mundo em uma viagem por detrás da minha tela. Do outro lado, ouvintes com câmera fechada filtram os conteúdos que transmito em monólogo virtual. É uma interação diferente, na qual pareço estar falando para mim mesmo. Reinventar-se diante da tela é urgente!

Fomos inundados por incontáveis lives, fizemos cursos a jato para aprender a manusear as ferramentas das plataformas e vimos nossos espaços de sociabilidade acadêmica migrar para o virtual. No final das contas, depois de participar de webinários e congressos internacionais inteiramente online, até banca de doutorado assim realizamos, dando tratos à bola para a deliberação conclusiva: enquanto a plateia e o candidato socializavam na sala virtual, os membros da banca decidiam o resultado da arguição por WhatsApp.

No final das contas, são tantas as novidades que ainda é difícil avaliar o impacto dessas novas práticas no fazer docente.

No Judiciário, não será diferente, como evidencia a Resolução nº 345, de 9 de outubro de 2020, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que autoriza a adoção do “Juízo 100% Digital”, onde “todos os atos processuais serão exclusivamente praticados por meio eletrônico e remoto por intermédio da rede mundial de computadores”.

Entretanto, conforme inscrito no referido ato normativo, em hipótese alguma, o arrependimento e o pedido de retorno ao velho modelo presencial poderá ensejar a mudança do juízo natural do feito, devendo o “Juízo 100% Digital” abranger todas as unidades jurisdicionais de uma mesma competência territorial e material. Em outras palavras, apesar da incorporação do virtual integral implodir nossa compreensão de territorialidade, ela não teria (ainda) o condão de romper com nossa percepção da jurisdição e do princípio do juiz natural. Nesse sentido, é um mundo novo ainda incapaz de pensar fora do paradigma precedente.

Eis que o mundo cabe na minha tela. Dela, vejo tudo o que acontece lá fora e dialogo com os Outros. Mas não é uma interação simples, porquanto sujeita às intempéries da conexão: “Congelou!” e/ou “Caiu!” resumem explosões de irritação com a tecnologia. Outros problemas surgem, como, por exemplo, barulhos ambientes que interrompem ou atrapalham sessões virtuais. Embora o mundo tenha ficado ao alcance de um clique, ele segue imprevisível e inquieto.

No meio de tantas novidades e da profusão de telas, emerge uma nova gramática comunicativa, onde se destacam os podcasts. É o rádio diferido, que pode ser ouvido a qualquer momento, diriam os saudosos do dial. Penso, entretanto, que é um pouco mais que isso, pois, em sua maioria, eles trabalham com uma lógica reflexiva mais longeva que o instantâneo da notícia.

Ao cabo, incorporei os podcasts como atividade didática assíncrona e hoje sugiro que meus alunos ouçam episódios do Salvo Melhor Juízo ou ainda do Sem Precedentes, do JOTA. Faço minhas atividades domésticas ouvindo Medo e Delírio em Brasília ou ainda o Foro de Teresina. Mas, confesso, estou mesmo é fascinado com a ideia de documentários em formato de podcast. Ouvir Retrato Narrado ou Praia dos Ossos é absolutamente sedutor.

Com efeito, o assassinato de Ângela Diniz, ocorrido em 30 de dezembro de 1976, na Praia dos Ossos, na Armação de Búzios, é o crime da minha infância. Tenho dele uma recordação difusa, sempre associada à ideia de legítima defesa da honra, o argumento exculpatório utilizado pela defesa de Doca Street para justificar seu ato.

É impressionante como, ao reavivar uma memória perdida, uma narrativa sem imagens, com uma brevíssima utilização de um áudio da vítima, fascina e produz uma contribuição gigantesca para um debate contemporâneo sobre feminicídio e violência doméstica. É uma reconstituição tão chocante, que possibilita até mesmo refletir sobre o papel do júri no julgamento dos crimes contra a vida ou ainda sobre questões de deontologia profissional, na medida em que o advogado de Doca Street fora antes defensor de Ângela Diniz, quando ela foi denunciada por porte de drogas. Mas não é só, pois até o colunismo social acaba sendo submetido ao escrutínio do ouvinte. Praia dos Ossos descreve um mundo que aparentemente não ficou para trás, um mundo que eu achava estar recluso na minha memória infantil e adolescente.

Confinado, viajo pelo mundo ao redor de minhas telas. Descubro interações que julgava improváveis na época em que a comunicação à distância era essencialmente feita pelos correios, que hoje parecem se limitar a entregar faturas e compras. Pelas telas por onde hoje leio e vejo o mundo, descubro que também é possível ouvir e deixo aqui o convite para que o leitor se torne um ouvinte. Como dizia o Ed Motta, na canção do álbum homônimo lançado em 1992, “Agora entre e ouça!”

 

 


Qual a decisão mais problemática no caso André do Rap, de Marco Aurélio ou de Fux? Podcast do JOTA discute o fato de o plenário do STF ter gastado 2 sessões para resolver problema que a própria Corte criou. Ouça:

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