Judiciário

O Supremo Tribunal Federal em tempos de pandemia

O STF tem conseguido, até aqui, colocar alguns limites à política negacionista do presidente Bolsonaro

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Ministro Luiz Fux na presidência da sessão plenária / Crédito: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Escrevemos esse texto em um momento de grande ameaça às instituições democráticas brasileiras, em especial, ao Supremo Tribunal Federal, que tem se mostrado ativo no controle da constitucionalidade dos atos do presidente Jair Bolsonaro, relativos à pandemia de Covid-19.

Desde o início do seu governo, Bolsonaro atribui ao Congresso Nacional e ao STF a responsabilidade por tornar o país ingovernável, mobilizando seus apoiadores em atos e manifestações frequentes contra essas instituições. No último dia 28 de maio, o presidente subiu o tom nos ataques ao Supremo, declarando: “Acabou, Porra! (…) Ordens absurdas não se cumprem e nós temos que botar um limite nessas questões”[1].

Ao ameaçar não cumprir uma decisão judicial, o presidente anuncia um crime de responsabilidade e o abandono da legalidade. Como bem colocaram Diego Arguelhes, Juliana Gomes e Thomaz Pereira, “se Bolsonaro puder escolher quais decisões cumpre, e quais não cumpre, o que terá acabado será a democracia” [2].

Já houve na história recente ameaças e mesmo descumprimento de decisões do Supremo por parte de autoridades. O então presidente do Congresso Nacional, Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), afirmou, em 1999, que não cumpriria uma liminar do Supremo, uma vez que “esse Poder não vai se curvar diante das decisões errôneas como essas que suspenderam os trabalhos da CPI do Narcotráfico”[3].

E em 2016, a Mesa Diretora do Senado encaminhou nota ao STF informando que aguardaria o posicionamento do plenário do tribunal para então aceitar o afastamento de Renan Calheiros, não cumprindo, assim, liminar monocrática concedida pelo ministro Marco Aurélio[4]. Nesse caso, o próprio senador, então na época presidente do Senado, se negou a assinar a notificação sobre a decisão do STF[5].

Mas, a reação de Bolsonaro nos dias de hoje, ganha contornos muito mais graves. As suas declarações se dão em resposta ao andamento do inquérito 4781, conhecido como inquérito das fake news.

A operação da polícia federal que aconteceu na última semana do mês de maio, contra parlamentares e militantes, e que faz parte desse inquérito pode atingir o filho do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro, que comandaria um grupo de assessores do Planalto, no chamado “gabinete do ódio”.

Além disso, essa investigação, levanta ainda mais suspeitas sobre a campanha presidencial de 2018, servindo para uma eventual cassação de Bolsonaro no TSE, em decorrência de disparos de mensagens em massa.

E não se trata apenas de atacar o Supremo para salvar a própria pele. Há que se lembrar que durante a campanha eleitoral de 2018, não foram incomuns declarações em tom de ameaça ao STF, como a de que bastariam um soldado e um cabo para fechar o tribunal, caso ele se colocasse como obstáculo à agenda reformista conservadora e moralista do futuro governo [6].

Desde a campanha, Bolsonaro se apresentou como inimigo da agenda de direitos relacionados à proteção do meio ambiente, de grupos indígenas e minorias sociais. Nesse sentido, ele vem cumprindo suas promessas de campanha, delineando reformas e políticas contrárias ao caráter inclusivo e pluralista da Constituição.

No início de seu mandato, uma de nós perguntou, em artigo escrito para o JOTA[7], se poderíamos depositar nossas esperanças democráticas na capacidade do tribunal atuar como contraponto forte para fazer prevalecer os princípios fundamentais da Constituição, e conter práticas autoritárias do governo.

Naquele momento já era esperado que os ataques ao tribunal seguiriam, e se intensificariam, mas a expectativa (ou esperança) era a de que o Supremo resistiria, e protegeria um núcleo mínimo de direitos fundamentais. Passados pouco mais de 16 meses do início do governo, já há elementos para balizar tal expectativa.

De acordo com a professora e doutora em direitos humanos, Eloísa Machado, no primeiro ano de mandato o Supremo impôs algumas derrotas ao governo Bolsonaro, por meio de decisões liminares (8 decisões liminares em 71 ações propostas contra medidas do governo federal)[8].

Entre essas decisões estão as restrições à extinção de conselhos pelo Executivo; a manutenção da demarcação de terras indígenas com a Funai; a suspenção do fim do DPVAT, e a manutenção da publicação de editais de licitação e leilões em jornais de grande circulação.

Essa baixa proporção de derrotas foi lida como sinal de letargia do tribunal. Mas a proporção se iguala ao padrão geral de intervenção do Supremo em diplomas federais. Considerando o montante de ações que foram propostas contra diplomas federais no STF em governos anteriores, a proporção de ações declaradas procedentes (no todo ou em parte) gira em torno de 10%[9].

Esse dado poderia fundamentar a hipótese de que o STF não agiu de forma mais nem menos intervencionista, ou combativa, com relação ao governo Bolsonaro, se comparado a governos anteriores.

Evidente que para um retrato mais completo, e verificação dessa hipótese, deveríamos observar o conteúdo das normas consideradas inconstitucionais, a centralidade das políticas revisadas para a agenda do governo, entre outros aspectos qualitativos.

Mas o dado de partida permite esperar que a intensidade de interferência do Supremo nas políticas federais não tenha sido muito diferente no primeiro ano do governo Bolsonaro, levando em conta o padrão decisório do tribunal.

E mesmo se considerarmos a recente interferência do Supremo na revisão de um ato administrativo do presidente, que foi a suspensão, por liminar monocrática, da posse de Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal, há precedentes nos governos anteriores – a suspensão da posse do ex-presidente Lula como ministro no governo Dilma, e a anulação da posse de Cristiane Brasil como ministra no governo Temer.

Com a emergência da pandemia de Covid-19, houve uma mudança no padrão de resposta do STF. Desde o início dos casos no Brasil até o dia 22 de maio de 2020, foram propostas no STF 85 ações de controle de constitucionalidade relacionadas à Covid-19.

Dessas, 54 questionavam normas oriundas do Executivo Federal[10]. O presidente saiu derrotado em 29 pedidos (54%). Entre as derrotas que sofreu estão a decisão que barrou campanha publicitária contra o isolamento social, e a que reconheceu a competência concorrente dos estados, municípios e da União para adoção de medidas restritivas de locomoção e regulamentação do alcance e extensão da quarentena (suspendendo trechos da MP 926/20).

O tribunal também decidiu restringindo, limitando e anulando outras medidas provisórias ligadas ao contexto da pandemia, tais como a MP que que previa suspensão nos prazos de resposta a pedidos de acesso à informação aos órgãos ou entidades da administração pública (MP 928/20), a MP que previa o compartilhamento de dados de usuários de telecomunicações com o IBGE para a produção de estatística oficial (MP954/20) e a MP que flexibiliza as regras trabalhistas (MP 927/20).

Na prática, isso significa que o STF tem conseguido, até aqui, colocar alguns limites à política negacionista do presidente, no que se refere à pandemia.

Quem mais acionou o STF para contestar essas políticas foram os partidos políticos, as associações e sindicatos, nessa ordem.

Um aspecto importante a ser observado é que a maioria das decisões relativas a normas do Executivo Federal tiveram o respaldo do colegiado. Ainda que muitas tenham sido decididas monocraticamente de início, a maior parte foi referendada pelo plenário da corte.

Esse é um comportamento decisório diferente do habitual, uma vez que o Supremo é constantemente criticado pelo excesso de decisões individuais, ensejando o fenômeno da ministocracia[11].

Se olharmos para o comportamento da opinião pública acerca do STF, houve uma reação positiva à atuação do STF nesse período de pandemia. Pesquisa recente publicada pelo Datafolha[12] mostrou forte queda na taxa de reprovação popular do Supremo.

Se em dezembro de 2019 eram 39% os brasileiros que avaliavam o desempenho dos ministros como ruim ou péssimo, e apenas 19% como ótimo ou bom, em maio de 2020 esses percentuais passaram a ser de 26% de reprovação e 30% de aprovação. A proporção dos que avaliam como regular mante-se estável, 38% em dezembro e 40% agora.

Os dados do Datafolha sugerem que houve um aumento da concordância da população com as decisões do STF, uma vez que quando se pergunta sobre o desempenho de uma instituição, avalia-se o nível de apoio específico de que ela goza junto ao público[13].

A forma como o STF vem respondendo à judicialização das políticas de combate à pandemia nos remete à afirmação de Robert Dahl (1957)[14] de que as cortes, por serem parte da elite política, em geral agem alinhadas ao interesse do governo, “a não ser durante breves períodos de desequilíbrio”.

E para pensar esses períodos de desequilíbrio, é útil recorrer ao conceito de deserção estratégica, desenvolvido pela cientista política norte-americana, Gretchen Helmke (2005)[15]. A deserção estratégica implica que toda vez que o governo perde poder, a Suprema Corte tende a decidir mais desfavoravelmente a ele, numa estratégia mesmo de sobrevivência e de evitar retaliações do novo governo que virá.

Se a resposta do STF à judicialização da política nesse momento de pandemia é um sinal de deserção estratégica, ainda é cedo para dizer. Mas depositamos nossa esperança democrática na capacidade do tribunal fazer frente às práticas autoritárias do Bolsonarismo.

 


Notas

[1] Redação O Estado de S. Paulo. “Ordens absurdas não se cumprem, temos que botar um limite’, diz Bolsonaro”, O Estado de S. Paul,  28 de maio de 2020. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ordens-absurdas-nao-se-cumprem-temos-que-botar-um-limite-diz-bolsonaro,70003317466>. Acesso em 30 de maio de 2020.

[2] ARGUELHES, Diego Werneck; GOMES, Juliana Cesario Alvim e PEREIRA, Thomaz. “Criticar sim, ameaçar nunca: a reação de Bolsonaro contra o Supremo”. JOTA, 29.mai.20. Disponível em: <https://www.jota.info/stf/supra/criticar-sim-ameacar-nunca-a-reacao-de-bolsonaro-contra-o-supremo-29052020>. Acesso em 30 de maio de 2020.

[3] GONDIM, Abnor e DAMÉ, Luiza. “CPI descumpre liminar do Supremo”, Folha de S. Paulo, 16 de dezembro de 1999. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1612199913.htm>. Acesso em 30 de maio de 2020.

[4] CARVALHO, Daniel et al. “Senado desafia Supremo e mantém Renan na presidência da Casa”. Folha de S. Paulo, 6 de dezembro de 2016. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/12/1838885-senado-desafia-supremo-e-mantem-renan-na-presidencia-da-casa.shtml>. Acesso em 30 de maio de 2020.

[5] ALVAREZ, Debora. “Renan se recusa a assinar notificação de afastamento pelo STF”, Folha de S. Paul, 5 de dezembro de 2016. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/12/1838714-renan-se-recusa-a-assinar-notificacao-de-afastamento-pelo-stf.shtml?origin=folha>. Acesso em 8 de junho de 2020.

[6] HOUS, Débora Sögur et al. “Bastam um soldado e um cabo para fechar STF, disse filho de Bolsonaro em vídeo”. Folha de S. Paulo, 21 de outubro de 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/basta-um-soldado-e-um-cabo-para-fechar-stf-disse-filho-de-bolsonaro-em-video.shtml>. Acesso em 30 de maio de 2020.

[7] OLIVEIRA, Fabiana Luci de. “O Supremo e a política judicial informal”. 1º de março de 19. Disponível em: <https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/judiciario-e-sociedade/o-supremo-e-a-politica-judicial-informal-01032019>. Acesso em 30 de maio de 2020.

[8] ALMEIDA, Eloísa Machado de. “Supremo abandona letargia e passa a controlar atos do governo Bolsonaro”. Folha de S. Paulo, 5 de maio de 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/supremo-abandona-letargia-e-passa-a-controlar-atos-do-governo-bolsonaro.shtml>. Acesso em 30 de maio de 2020.

[9] Ver OLIVEIRA, Fabiana Luci. Agenda suprema: interesses em disputa no controle de constitucionalidade das leis no Brasil. Tempo soc. [online]. 2016, vol.28, nº 1, pp.105-133. ISSN 1809-4554.  https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2016.106021.

[10] Tabela 1. Âmbito das normas questionadas em ADI, ADPF, ADO, de acordo com o requerido

Âmbito da norma

Total

Requerido

Estadual

Federal

Municipal

Executivo Federal

0

54

0

54

Executivo Estadual

13

0

0

13

Legislativo Federal

0

8

0

8

Legislativo Estadual

5

0

0

5

Governo Federal

0

3

0

3

Executivo Municipal

0

0

1

1

CNJ

0

1

0

1

Total

18

66

1

85

Fonte: Autoras, com base no Painel de Ações Covid-19 (STF), atualizado até 22 de maio de 2020

[11] Ver ARGUELHES, Diego Werneck  e  RIBEIRO, Leandro Molhano. Ministrocracia: O Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro. Novos estud. CEBRAP [online]. 2018, vol.37, nº 1, pp.13-32. ISSN 1980-5403.  Disponível em: <https://doi.org/10.25091/s01013300201800010003>.

[12] BÄCHTOLD, Felipe. “Reprovação a Congresso e STF tem forte queda em meio a crise com Bolsonaro, diz Datafolha”. Folha De S. Paulo, 30 de maio de 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/05/reprovacao-a-congresso-e-stf-tem-forte-queda-em-meio-a-crise-com-bolsonaro-diz-datafolha.shtml>. Acesso em 30 de maio de 2020.

[13] Ver EASTON, David. (1975). “A re-assessment of the concept of political support”. British Journal of Political Science, v.5, n.4, p.435-457.

[14] DAHL, Robert. (1957). “Decision-making in a democracy: the Supreme Court as a national policy maker”. Journal of Public Law, N. 6: 279-295.

[15] HELMKE, Gretchen. (2005). Courts under Constraints – Judges, Generals, and Presidents in Argentina. Cambridge: Cambridge University Press.

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