Judiciário e Sociedade

Justiça da pandemia: de volta ao ‘passivismo’ judicial?

A centralidade conferida aos Tribunais de Justiças e Tribunais Regionais Federais como instância de resolução de tensões

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Crédito: Pixabay

Desde os anos noventa do século passado se tem alimentado a narrativa da judicialização da política e das relações sociais no Brasil, apontando para um progressivo e significativo aumento da participação do sistema de justiça em searas notadamente executivas e legislativas em diversos âmbitos. Terá sido apenas entusiasmo ou apenas mais um discurso político sobre a justiça? Terá sido o tal “ativismo judicial” apenas um brado autoproclamatório? Perguntemos à conjuntura…

Passados cinco meses desde o início das medidas mais enérgicas de combate à pandemia, o que se percebe é que o Judiciário, especialmente o STF, tem ganhado visibilidade na mídia e nas redes sociais muito pouco por sua atuação nessa temática, mas muito mais pelo envolvimento em questões que passam ao largo da efetiva contribuição ao combate à Covid-19 e seus reflexos.

Envoltos na lógica conflitiva tramada e alimentada pelo presidente da república, destacam-se notícias da queda de braço entre ministros do STF e o presidente da república, especialmente no contexto do inquérito que investiga a existência de fake news e ameaças dirigidas aos ministros da Corte e seus familiares, ou ainda de notícias sobre as ameaças de intervenção na Polícia Federal por parte de Bolsonaro.

Nesse contexto, é possível que a decisão de maior impacto proferida pelo STF tenha sido aquela que diz respeito ao pacto federativo e que garantiu a autonomia dos estados e municípios nas ações e política de combate à Covid-19, prolatada em 15 de abril de 2020. Não sem razão, observa-se que grande parte de processos judiciais que chegou até a Corte Suprema gira em torno do pedido de reconhecimento de competência concorrente de estados, do Distrito Federal, dos municípios e da União no combate à pandemia.

Dentre tantas implicações possíveis e passíveis de serem discutidas a partir dessa decisão, uma questão em especial nos chama atenção e será o ponto fundamental da análise nesse artigo: a centralidade conferida, como reflexo, aos Tribunais de Justiças e Tribunais Regionais Federais como instância de resolução de tensões e conflitos decorrentes da pandemia.

Experimentamos a inexistência de um consenso amplo em torno da pandemia e de uma liderança nacional apta a conduzir a crise – seja pela condenável postura do presidente da república, seja pela inimaginável ausência de um ministro da saúde. De fato, houve uma setorização das formas de enfrentamento da doença, a cargo principalmente de governadores e prefeitos.

No Judiciário, essa realidade resultou em um apagamento do STF como principal instância jurídica de ação sobre essas questões (quebrando a expectativa de protagonismo da Corte) e em um inesperado protagonismo assumido por Tribunais de segunda instância, principais responsáveis por produzir decisões localizadas sobre o combate à pandemia.

Em um primeiro momento, os Tribunais foram provocados a assumir o papel de garantidores de direitos, especialmente diante do aumento no número de pedidos de liminares para a garantia de leitos e medicamentos.

Nesse contexto, observamos um grande número de decisões que, a despeito de garantirem o direito dos pleiteantes, evidenciaram-se destituídas de forças para transformar uma realidade anterior à pandemia: as deficiências e desigualdades que permeiam a nossa sociedade e que são resultados de escolhas públicas de longo tempo.

Houve, ainda, um momento de grande convergência entre as decisões judiciais e governadores e prefeitos, em que os Tribunais assumiram ainda a posição de guardiões das decisões tomadas pelos entes da administração pública em consonância com as recomendações da OMS e de diferentes especialistas, decisões constantemente tensionadas com os pronunciamentos públicos do presidente da república.

No entanto, se no início houve uma grande resistência por parte de governadores e prefeitos à lógica da “imunidade de rebanho”, da qual Bolsonaro sempre se mostrou um entusiasta, aos poucos fomos assistindo a um movimento de flexibilização das medidas adotadas por esses governadores e prefeitos, sem que houvesse uma diminuição no número de casos e de mortes ou indicações científicas contundentes nesse sentido. Nesse novo cenário, os Tribunais passam a ter que decidir se é ou não o momento de flexibilização, acirrando agora a disputa entre Judiciário e Executivos estaduais e municipais sobre a condução das medidas de combate à pandemia.

A despeito da narrativa de aparente adesão consensual, por parte dos Tribunais, ao entendimento mais próximo àquele preconizado pela ciência, não houve uma uniformização nas formas de decidir. E vivenciamos, agora também nos Tribunais, uma ausência de um projeto unificado e conjunto de enfrentamento da crise pandêmica. O que se percebe é que, se, no início da pandemia, apontava-se para uma sistemática derrota, também jurídica, do projeto do Executivo federal, tal assertiva hoje parece temerária.

Os Tribunais parecem dançar conforme a lógica conflitiva implantada pelo presidente da república, exacerbando o caráter político das decisões e posturas judiciais, concretizando uma versão judicial da divisão já observada na sociedade. Os Tribunais se transformam em instrumentos mobilizados nesse contexto de polarização ao tempo em que também são agentes alimentadores dessa mesma polarização.

Em qual sentido caminha, então, a tal anunciada judicialização da política?

Para além da crise enfrentada em razão da pandemia, lembramos, que, em tempos mais longínquos, não houve chuva de liminares contra o “confisco” das poupanças promovido por Fernando Collor, ou contra o Plano Real de Fernando Henrique Cardoso. O ingresso por cotas nas universidades e grandes programas de transferência de renda dos governos petistas também passaram incólumes pela tal “intervenção judicial”.

A grande e longeva concertação entre governos contratantes e cartéis de corporações privadas passou décadas ao largo do controle ministerial ou judicial, até que a oportunidade política se fizesse presente. De presente à passado, o “lavajatismo” já começa a ser denunciado e desmobilizado. Isto tudo sem considerar temas e pautas de capital relevância, como o desenho de nossas parcerias comerciais internacionais, e a resolução de conflitos entre grandes corporações privadas, desde muito no Brasil abrigados pela Lei de Arbitragem, sem qualquer alarde.

Assim, mas não por acaso, atingido o planeta terra pelo desafio que mobilizará uma geração – a pandemia global – parece o judiciário, e com ele o sistema de justiça, ter assumido seu lugar de sempre: aparador de arestas, produtor de adequações cirúrgicas, “adeaquador” da lei ao caso concreto. Dizemos assim pois aqui é Brasil, se fosse em França reafirmaríamos Bourdieu sobre o direito não ser parteiro de nova realidade, mas seu oficial de registro. Ou, ainda, a boa e velha bouche de la loi de Montesquieu.

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