Coronavírus

Escolhas pós-pandemia

É necessário resistir e enfrentar a exigência imperiosa de existir e emprestar um sentido comunitário à vida

Crédito: Andréa Rêgo Barros/PCR

Desde o início da pandemia da Covid-19, nossas autoridades públicas têm emitido contínuos sinais divergentes: enquanto o pêndulo oscilava entre isolamento vertical, isolamento horizontal, lockdown ou retorno à normalidade pretérita (muito embora essa pretensa normalidade já não mais exista), produziu-se uma abundante normatividade da crise.

No âmbito do direito do trabalho, controvérsias eram suscitadas (e eventualmente encerradas) quase com a mesma velocidade com que uma medida provisória se sobrepunha a outra.

Nascia assim uma dogmática contingencial da urgência para esclarecer sobre as modalidades de ruptura do contrato de trabalho (caso fortuito, força maior ou fato do príncipe) e os respectivos cálculos indenizatórios, para examinar as possibilidades processuais de revisão de acordos homologados pela Justiça do Trabalho, para apreciar autorizações e/ou restrições à movimentação das contas de FGTS ou ainda para determinar sobre a essencialidade de certos serviços e os limites impostos pela regulamentação da segurança e medicina do trabalho.

Deu-se ainda enorme projeção à controvérsia acerca da validade de acordos individuais de trabalho, cuja legalidade restou ratificada, em sede provisória, pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Creio, contudo, que esse debate, por estar entrelaçado com nossas escolhas societais, vai além de seus aspectos dogmáticos e evidencia três tendências presentes no direito (do trabalho) brasileiro: ampliação da autonomia da vontade, colonização econômica da vida e produção de uma institucionalidade judiciária homogênea.

Quanto à primeira tendência, argumenta-se que, conquanto nossa tradição regulatória do mundo do trabalho seja essencialmente heterônoma, com amplo predomínio da regulação pela lei, estaríamos vivendo um processo de valorização da autonomia da vontade, que não seria, contudo, uma especificidade do direito do trabalho.

Em outras palavras, a ampliação da autonomia da vontade constituiria uma nova tendência paradigmática do direito, cujo exemplo mais robusto seria a modificação introduzida pelo Estatuto da Pessoa Deficiente ao transformar a presunção de incapacidade do deficiente em presunção de capacidade a ser contraditada no caso concreto.

Essa tendência encontraria abrigo no direito do trabalho não pela ampliação da autonomia da vontade coletiva, cuja manifestação dar-se-ia pela atuação dos sindicatos, mas essencialmente pela ampliação da autonomia da vontade individual expressa em acordos individuais tanto no âmbito da reforma trabalhista de 2017 quanto na legislação da emergência pandêmica.

Entretanto, como a autonomia da vontade pressupõe agentes em condições de igualdade, ela seria bastante problemática no direito do trabalho, pois explicitamente confrontaria todos os seus princípios basilares. Essa tensão seria supostamente resolvida por uma calibragem diretamente proporcional da relação entre vulnerabilidade e proteção: a proteção deve ser maior para os mais vulneráveis e diminuir à medida que a vulnerabilidade diminuía.

Essa hipótese propicia, contudo, dois importantes problemas para o direito do trabalho cuja solução não me parece fácil: a introdução de métrica variável para os princípios do direito do trabalho, cujo conteúdo deveria ser, no entanto, essencialmente universal, e a quase impossibilidade de produzir critérios objetivos e claros para definir o que seja vulnerabilidade no caso concreto.

É preciso voltar no tempo para evidenciar o sentido da segunda tendência. Em sua exposição de motivos, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi apresentada como uma ferramenta normativa para a cooperação de classes no melhor espírito positivista comtiano.

Contudo, ao longo das décadas subsequentes, ela jamais conseguiu arrefecer o confronto de classes entre capital e trabalho, até porque este é um conflito estruturante da sociedade. Malgrado a perenidade dessa circunstância e o fomento à melhoria proporcionada pela legislação trabalhista, esta última foi, ao longo das décadas pós-CLT, objeto de fortes e sucessivas críticas quanto à sua artificialidade (ou inadequação à realidade brasileira), quanto ao seu impacto na produtividade dos trabalhadores e na competitividade internacional e, finalmente, quanto aos obstáculos que ela enseja no enfrentamento à crise econômica.

Por último, chamada de vetusta e inadequada, ela supostamente necessitaria ser modernizada para fomentar uma relação mais harmoniosa, menos antagônica entre capital e trabalho.

Entretanto, nenhuma dessas críticas consegue esconder que, no fundo, se trata de uma disputa de sentidos, além de obviamente monetária, em torno da apropriação do trabalho realizado por terceiros.

Essa disputa de sentidos ganhou contornos dramáticos com a pandemia, pois ela paralisou as economias, cuja preservação parece ter se transformado em elemento determinante para interpretação do alcance das normas. Exit o projeto constitucional de 1988, apesar de todas as suas incompletudes (e contradições), pois um direito da emergência requer uma jurisprudência da emergência.

Em outras palavras, a economia colonizou a vida por completo e teria passado a ser o grande vetor hermenêutico do direito, sempre com a preocupação em dar conta da (quase permanente) crise econômica e contribuir para o crescimento econômico, ainda que sem uma reflexão consistente sobre as exigências sociais de distribuição da riqueza.

Chegamos, enfim, à terceira tendência: a institucionalidade judiciária homogênea. Ora, no sistema judicial brasileiro, o controle de constitucionalidade das leis é realizado tanto de forma concentrada pelo STF quanto difusa pelo conjunto da magistratura.

Nesse sentido, é forte o risco da produção de decisões contraditórias decorrentes da submissão da mesma controvérsia a diferentes jurisdições. Conquanto o controle concentrado seja fundamental para produzir homogeneização, sua ocorrência por vezes algo tardia amplifica a polifonia oriunda da divergência manifestada por meio do fragmentado controle difuso.

É um risco sistêmico de difícil superação, pois ele está inscrito na arquitetura do sistema judicial. De fato, na ausência de uma manifestação decorrente do controle concentrado, a revisão no âmbito do controle difuso só se efetuaria após o transcurso de todas as etapas processuais.

Contudo, a partir da promulgação da Emenda Constitucional 45/2004, verifica-se um esforço de transformação paradigmática buscando ampliar a coerência interna do sistema normativo e assim assegurar segurança jurídica, isonomia e eficiência.

Esse câmbio substantivo operou-se pela diminuição da porosidade do controle difuso mediante a introdução de mecanismos vinculantes e a possibilidade de reclamação diretamente ao STF em caso de decisão contrária à jurisprudência dominante.

Esse mecanismo espraiou-se, inclusive, para as decisões proferidas em sede provisória, em consonância com o traço paradigmático pós-EC 45/2004. No final das contas, divergência virou insegurança jurídica, cuja eliminação foi entregue à cúpula.

Como essas tendências foram hiperbolizadas pela urgência do momento, ficaram mais evidentes tanto o seu caráter estruturante quanto a sua importância para a estrutura normativa e/ou o sistema de justiça que parece se desejar para a sociedade brasileira.

Esquece-se, entretanto, que elas contribuem significativamente para a institucionalização de um mercado de trabalho cada vez mais perverso, repleto de agentes individuais desprotegidos e entregues à própria sorte; para uma comoditização do trabalho, transformado em mercadoria e despido de qualquer humanidade; e, por fim, para a domesticação da divergência, doravante reiteradamente acusada de proporcionar insegurança jurídica.

Outro caminho é possível, como assinalam os cinco mil signatários do manifesto “Trabalho: Democratizar, Desmercantilizar, Remediar”, cuja publicação ocorreu simultaneamente na imprensa de mais de trinta países.

Aqui mesmo no JOTA, outra pista é sugerida por Rodrigo Carelli ao propor a necessidade de um “Direito Ecológico do Trabalho”. Não são caminhos divergentes na medida em que ambos reforçam a necessidade cada vez mais premente de um direito do trabalho que reflita as exigências de solidariedade e compromisso coletivo, dois traços fundamentais para o esforço de superação da pandemia.

Entre o apego à ideia ingênua de uma tomada de consciência global e um mundo necessariamente melhor pós-pandemia (por não ser supostamente possível prosseguir com os mesmos erros) e a tentação de um retorno à normalidade (cuja familiaridade produz algum conforto, além de uma frágil e ilusória segurança), é necessário resistir e enfrentar a exigência imperiosa de existir e emprestar um sentido comunitário à vida. Enfim, a urgência de ontem virou a necessidade de hoje para que o amanhã ainda seja um dia de esperança.

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