Em julgado de 15 de junho de 2021, alguns anos após a resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos que requereu ao Estado brasileiro o cômputo em dobro da pena dos internos no Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em referência à resolução da Corte Interamericana de 22 de novembro de 2018 e à obrigação de controle de convencionalidade, confirmou habeas corpus para que seja contado em dobro o período que o paciente cumpriu pena na unidade prisional[1].
O artigo 63.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conforme desenvolvido pela jurisprudência da Corte Interamericana, permite que o Tribunal, diante de casos de extrema gravidade e urgência e para evitar danos irreparáveis às pessoas, determine medidas provisórias, impondo aos Estados-Partes a obrigação de adotar as ações necessárias para a proteção das pessoas beneficiárias e de informar sobre o seu cumprimento.
As medidas provisórias, ainda que não contenham prejulgamento ou declaração de responsabilidade internacional, atendo-se a análise do tribunal aos requisitos para sua concessão, são requerimentos de ação ao Estado demandado e, beneficiando-se do princípio do pacta sunt servanda, são dotadas de obrigatoriedade[2].
A prerrogativa da Corte Interamericana de conceder medidas provisórias inclusive em assuntos que ainda não tenham sido submetidos à sua consideração pelo sistema de petições, por solicitação da Comissão Interamericana, é característica do instrumento convencional que cria um amplo espaço para a atuação do tribunal internacional no controle de políticas públicas na região, por vezes, até mesmo em concomitância com os tribunais locais.
O notável potencial para influência da Corte Interamericana no controle de políticas públicas dos Estados-Partes através da concessão de medidas provisórias se faz sentir, ademais, com a possibilidade de serem as medidas concedidas em benefício de uma coletividade , abarcando a proteção de pessoas determináveis e identificáveis que se encontrem em situação de grave risco em razão de pertencerem a um determinado grupo, tais como as pessoas privadas de liberdade em unidades prisionais ou socioeducativas.
As medidas provisórias são instrumentos potentes à disposição da Corte Interamericana para o exercício de influência nas políticas públicas em âmbito regional, não se submetendo à lógica da subsidiariedade que guia, em regra, a atuação do Sistema Interamericano.
Não obstante, importante não olvidarmos que os tribunais internacionais têm nos aliados ou parceiros internos uma estratégia central[3] para a implementação das suas decisões, em especial dos Poderes Judiciais nacionais, possivelmente os mais efetivos mecanismos de efetivação do direito internacional[4]. A abertura dos atores internos para convergir com a decisão internacional é peça fundamental na definição dos resultados a partir do cumprimento.
Uma vez determinadas as medidas provisórias pela Corte Interamericana, o tribunal inicia o monitoramento do seu cumprimento pelos Estados demandados.
A etapa de cumprimento envolve um processo, normalmente longo, de interação entre Estado, beneficiários ou seus representantes, Comissão Interamericana e Corte Interamericana, com a apresentação de relatórios e observações periódicos sobre o cumprimento. Em tal interação, é possível que novos aliados internos surjam em suporte da efetivação da decisão internacional.
Ultrapassados os aspectos introdutórios, para os fins dessas reflexões importa observar que a Corte Interamericana tem determinado medidas provisórias em distintas situações carcerárias, em proteção da pluralidade de pessoas identificáveis e determináveis que se encontrem em situação de grave perigo durante a privação de liberdade.
No contexto, por meio de resolução de 22 de novembro de 2018, no assunto do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho[5], a Corte Interamericana passou a requerer a tomada de ações pelo Estado brasileiro inovadoras no que tange à execução penal.
Ao analisar a situação de lotação no referido presídio, a Corte Interamericana, considerando em perspectiva comparada decisões sobre casos judiciais em que foram consideradas as condições de encarceramento e lotação prisional proferidas pela Corte Constitucional da Colômbia, pela Suprema Corte dos EUA, pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos e pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro (RE 641.320/RS e Súmula Vinculante nº 56), adotou perspectiva inovadora, criando uma alternativa para a redução populacional da unidade prisional.
Considerando que as pessoas privadas de liberdade no instituto penal monitorado poderiam estar cumprindo pena que lhes imporia sofrimento maior que aquele que seria inerente à privação da liberdade, concluiu o tribunal internacional que seria justo reduzir seu tempo de encarceramento de forma proporcional ao sofrimento experimentado.
Desta forma, em relação à unidade prisional, a Corte determinou que o Estado passasse a computar em dobro cada dia de privação de liberdade cumprido, com exceção das pessoas privadas de liberdade nos referidos presídios por imputação ou condenação por crimes contra a vida, a integridade física ou de natureza sexual.
Em tais casos, a redução conforme o cômputo proposto deveria ser analisada caso a caso, sujeita a exame ou perícia técnica por equipe de profissionais constituída por psicólogos e assistentes sociais.
Após quase três anos de monitoramento das medidas provisórias concedidas pela Corte Interamericana no assunto do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, o STJ, apoiando-se em compreensões de convergência em relação ao direito internacional, aplicando o princípio pro personae, não fazendo distinção entre sentença internacional e resolução de medidas provisórias, expressou que, ao sujeitar-se à jurisdição da Corte Interamericana, o país alargaria o “espaço de diálogo com a comunidade internacional”.
Assim, afastou o argumento do agravante de que a medida outorgada pela Corte Interamericana em novembro de 2018 teria natureza de medida cautelar provisória e não poderia produzir efeitos retroativos.
O caso do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho, cuja medida cautelar foi requerida à Comissão Interamericana de Direitos Humanos pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, sendo a medida provisória solicitada pela Comissão à Corte Interamericana subsequentemente, bem ilustra o potencial de influência contido no instrumento das medidas provisórias.
A concessão das medidas e seu monitoramento assíduo pela Corte Interamericana desde 2018 logrou, mesmo na ausência de uma declaração de responsabilidade internacional, gerar influência concreta na execução penal da coletividade de privados de liberdade no instituto, através da expansão do conjunto de atores internos aliados para o cumprimento da decisão internacional – uma situação que anteriormente estava sob os cuidados de apenas uma instituição interna (Defensoria Pública) passou a ser vista e cuidada por outras instituições internas, notadamente pelo Poder Judiciário.
As decisões da Corte Interamericana nas medidas provisórias atualmente em monitoramento em relação a unidades prisionais e socioeducativa nacionais bem ilustram as possibilidades desse instrumento, que caminha ao largo do iter processual típico do sistema de petições e casos, permitindo uma intervenção contemporânea pelo tribunal internacional em relação às situações jurídicas controvertidas, para o controle de políticas públicas na região.
[1] Superior Tribunal de Justiça (STJ). Quinta Turma. AgRg no RECURSO EM HABEAS CORPUS Nº 136.961, rel. min. REYNALDO SOARES DA FONSECA, julgado em 15 de junho de 2021.
[2] BURGORGUE-LARSEN, Laurence; TORRES, Amaya Úbeda de Torres. The Inter-American Court of Human Rights: Case Law and Commentary. Oxford University Press, 2011. p. 202-204.
[3] Ximena Soley; Silvia Steininger. Parting ways or lashing back? Withdrawals, backlash and the Inter-American Court of Human Rights. MPIL RESEARCH PAPER SERIES No. 2018-01. p. 20-21.
[4] Doreen Lustig and J H H Weiler, ‘Judicial review in the contemporary world—Retrospective and prospective’ (2018) 16 International Journal of Constitutional Law, 315-372.
[5] Corte Interamericana de Direitos Humanos. Assunto do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho. Medidas Provisórias. Resolução de 22 de novembro de 2018.