Análise

Concessões federais de infraestrutura aeroportuária e desafios da pandemia

Análise sobre os impactos e disciplina contratual

Crédito: Pixabay

O setor aéreo passa por uma crise sem precedentes. Nesse cenário, é importante entender, para além dos impactos observados em um setor tão importante à sociedade e também à economia mundial, os mecanismos já existentes nos contratos de concessão federal de infraestrutura aeroportuária e nas normas da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) que possibilitam o enfrentamento da pandemia COVID-19.

Em continuidade à publicação de 02 de junho de 2020[1], busca-se, nesse momento, adentrar nas especificidades do setor aéreo e esclarecer a disciplina incidente sobre a temática do equilíbrio em tais contratos, no intuito de explorar alternativas para solucionar os problemas trazidos pela pandemia no setor.

A premissa de que a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro é fundamental nos contratos de longa duração (prazo máximo de 35 anos[2], no caso dos aeroportos) mostra-se cada vez mais imperiosa em tempos atuais. Essa afirmação contém em si uma racionalidade implícita de que a manutenção do equilíbrio inicial dos contratos, além de ser uma preocupação permanente das partes, é também, atualmente, o impulso para que ambas se debrucem tempestivamente[3] sobre os efeitos da pandemia e as eventuais medidas de reequilíbrio.

Os contratos de concessão de aeroportos mais recentes[4] estabelecem que são quatro os mecanismos para se preservar[5] o equilíbrio econômico-financeiro inicial, presumidamente mantido sempre que respeitada a alocação contratual de riscos.

Dos quatro mecanismos mencionados, o reajuste[6] não interessa para a presente análise, já que a sua natureza ordinária expressada pela anualidade e forma de cálculo indicam claramente que o objetivo é preservar atualizado o contrato ao longo dos anos da concessão, sem considerar os efeitos ou eventos extraordinários.

Outro mecanismo existente é a proposta apoiada. Apesar de não se mostrar vocacionado para a resolução da problemática ligada aos efeitos da pandemia, é uma forma de flexibilização regulatória que permite alterações na receita teto, teto tarifário ou modificações relativas à oferta de infraestrutura e serviços no aeroporto, bem como obrigações ligadas a esta infraestrutura, proposta que deverá conter o apoio das empresas aéreas.

A terceira ferramenta para a manutenção do equilíbrio é a revisão dos parâmetros da concessão (RPC). A previsão legal que fundamenta o instituto está escorada na prestação adequada do serviço (art. 6º da Lei n. 8.987/95), combinada com o art. 29, incisos V e X, da mesma lei. A sua disciplina nos contratos de concessão de aeroportos abrange a determinação, a cada cinco anos, de índices de qualidade de serviço, metodologia de cálculo de fatores de qualidade e eficiência, e estabelecimento da taxa de desconto aplicável ao fluxo de caixa marginal.

Em que pese os efeitos da pandemia possam repercutir nas futuras revisões de parâmetros das concessões de aeroportos, não é por meio direto desse instituto que se espera mitigar eventuais problemas de fluxo de caixa e reestabelecer o equilíbrio inicial potencialmente afetado pela crise atual.

Resta assim, de interesse para a presente análise, abordar a revisão extraordinária e sua disciplina contratual, sendo este o instituto mais apropriado para recompor o equilíbrio econômico-financeiro inicial dos contratos de concessão de aeroportos afetados pelos efeitos da pandemia.

Como mencionado, no transporte aéreo, dados preliminares indicam que os impactos da pandemia foram brutais, atingindo praticamente todas as ramificações deste importante setor da economia.

Segundo a International Air Transport Association (IATA), associação que representa mais de 290 companhias aéreas, as quais totalizam mais de 82% do tráfego aéreo global, projeções recentes apontam prejuízos estimados em US$ 314 bilhões, comparativamente a 2019, e uma redução de demanda de até 80% em comparação ao mesmo ano[7].

Já a Airports Council International (ACI), associação que representa 668 operadores de mais de 1900 aeroportos em 176 países, revela uma projeção de queda de 4,6 bilhões de passageiros durante o ano de 2020, relativamente aos 9,1 bilhões de passageiros que se movimentaram pelos aeroportos analisados no ano de 2019. O impacto global da redução de receita nos aeroportos, segundo a ACI, será de cerca de US$ 97 bilhões[8].

Os dados da Associação Brasileira das Empresas Aéreas (ABEAR) indicam que a queda no transporte aéreo de passageiros no Brasil foi de 93,09% em abril[9] se comparado com abril de 2019. Segundo a mesma fonte, o transporte de passageiros para o exterior caiu 98,13% em março de 2020, se comparado com março de 2019, e a retração no mercado de cargas no país foi de 66,86 % em relação a março de 2019.

Não há dúvidas, assim, de que a crise associada à pandemia COVID-19 tem impactos atuais e futuros que ameaçam a sobrevivência de companhias aéreas e de administradores de infraestrutura aeroportuária, no Brasil e no mundo.

A discussão que se impõe, e insta ser enfrentada com brevidade, diz respeito à forma como o poder público tratará da difícil tarefa de analisar os prejuízos decorrentes da crise, enquadrar os fatos nas matrizes de risco dos contratos, avaliar quantitativamente os impactos e, de forma tempestiva, ultimar as medidas tendentes à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão de infraestrutura aeroportuária.

Rememorando as quatro etapas para a aferição adequada do desequilíbrio, temos: (i) constatação da ocorrência de algum evento com potencial para afetar o equilíbrio inicial; (ii) a verificação quanto à responsabilidade, à luz das disposições contratuais, pelo risco associado ao evento ocorrido; (iii) a avaliação do impacto do evento, tomando como parâmetro o critério de apuração do equilíbrio; e (iv) a escolha da medida mais adequada e eficiente para recompô-lo.

Definitivamente, não é qualquer evento que tem o potencial de desequilibrar o contrato. Para qualificar a primeira dessas etapas, estabeleceu-se, nos contratos mais recentes[10], a denominada “cláusula de relevância”, que considera como alteração relevante o evento que causar impacto superior a 1% da receita bruta anual média da concessionária[11].

O tema instiga discussões não apenas no setor aéreo, seja pela adequação ou não de um “corte” seja pelo método utilizado para tal. De acordo com Farias[12], em estudo sobre cláusulas de relevância no âmbito de contratos de concessão, os resultados apontam, no tocante à aplicação da regra supracitada aos contratos do setor aéreo, que 40% dos pleitos foram descartados, contudo, não interferiram sensivelmente no valor global requerido, uma vez que representariam apenas 1,26% do total, podendo-se afirmar, segundo o autor, que há grandes chances de que a maioria do valor futuro pleiteado não seria prejudicado em face da nova regra da ANAC. Entretanto, conforme ressalta o autor, deve ser estudada a possibilidade de revisão da receita bruta como variável para deflagrar o reequilíbrio considerando cenários de prejuízos operacionais negativos recorrentes e o impacto no VPL do projeto.

Sem adentrar, no momento, no mérito das discussões sobre o tema, o qual, certamente, merece uma reflexão mais aprofundada, o que se pode afirmar é que o evento ensejador da revisão extraordinária deve impactar no fluxo de caixa da concessionária.

Passa-se, então, ao enquadramento do evento na matriz de riscos do contrato (que literalmente é o capítulo contratual dedicado à descrição de condutas e eventos e da alocação de responsabilidades diante de sua ocorrência).

Nem todos os eventos, ainda que relevantes para os custos e as receitas das concessionárias, são enquadráveis na matriz de riscos como ensejadores de revisão extraordinária. A técnica utilizada nos contratos de concessão de aeroportos foi listar exaustivamente os eventos que serão suportados pelo Poder Concedente, estabelecendo, por outro lado, um rol exemplificativo de riscos sob exclusiva e integral responsabilidade da concessionária, que responde também por aqueles não alocados ao primeiro.

Todos os contratos de concessão de aeroportos[13] possuem a mesma previsão quanto aos eventos relacionados à força maior ou caso fortuito. Nos termos dos contratos, constitui risco do Poder Concedente a ensejar a revisão extraordinária, desde que impliquem alteração relevante de custos ou receitas da Concessionária, “a ocorrência de eventos de força maior ou caso fortuito, exceto quando a sua cobertura possa ser contratada junto a instituições seguradoras, no mercado brasileiro, na data da ocorrência ou quando houver apólices vigente que cubram o evento”.

O enquadramento dos efeitos jurídicos decorrentes da pandemia COVID-19 foi objeto de considerações estabelecidas recentemente em parecer da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Infraestrutura, em consulta em tese formulada pela Pasta. De modo geral, concluiu-se que a pandemia pode ser classificada como evento de “força maior” ou “caso fortuito”, observados a alocação de riscos e os impactos em cada contrato específico.

Da matriz de risco dos contratos de concessão de aeroportos, importa destacar ainda a previsão de que o evento que configura “força maior” ou “caso fortuito”, para ser alocado ao Poder Concedente, não pode ter cobertura por instituições seguradoras existentes no mercado brasileiro. A redação da cláusula peca em exatidão, mas é clara quanto ao sentido, já que o que se buscou afastar da matriz de riscos alocados ao Poder Concedente foi aquele evento que, em que pese decorra de força maior ou de caso fortuito, já era listado dentre os costumeiramente “seguráveis” no momento de sua ocorrência.

Portanto, haverá um ônus adicional de ambas as partes, quando da análise das eventuais revisões extraordinárias, de se consultar o mercado de seguros sobre infraestrutura de transportes concedida, ou mesmo os órgãos de regulação dos seguros, para, de fato, se constatar se os efeitos decorrentes da pandemia não estavam dentre os riscos ordinariamente ou habitualmente segurados nos contratos de seguro até então comercializados[14].

Superadas as etapas dedicadas à constatação de evento com potencial para afetar o equilíbrio inicial e do seu enquadramento na alocação de riscos do contrato, caberá ainda quantificar o impacto no âmbito do contrato e estabelecer a forma mais eficiente de seu restabelecimento.

Importante, nesse sentido, analisar a norma interna da ANAC que disciplina a forma e o procedimento em que se discutirão os aspectos da revisão extraordinária dos contratos de concessão federal de infraestrutura aeroportuária, objeto do próximo artigo, que também abordará os mecanismos já existentes sobre solução alternativa de conflitos no setor aéreo, este, certamente, um dos que mais sofre em virtude da pandemia COVID-19.

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[1] Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/equilibrio-de-contratos-de-concessao-federal-de-infraestrutura-de-transportes-02062020.

[2] O Decreto n. 7.624/11, que dispõe sobre as condições de exploração pela iniciativa privada da infraestrutura aeroportuária por meio de concessão, estabelece o prazo máximo de 35 anos, já considerada uma eventual prorrogação de até no máximo 5 anos para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro.

[3] A tempestividade das medidas de restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro será aferida considerando vários fatores, que vão desde a iniciativa dos interessados à comprovação documental dos pleitos, além da eficiência da Administração Pública. Estabelecer um prazo no qual deverão ser decididos os processos de reequilíbrio, ou considerar em mora a Administração por não fazer em determinado prazo, é desconsiderar a dialética processual necessária e subestimar a realidade dos contratos e das concessões de aeroportos, especialmente diante da complexidade dos processos e do montante dos valores envolvidos.

[4] Exemplo é o Capítulo VI – Do Equilíbrio Econômico-Financeiro do Contrato n. 001/ANAC/2019 – Nordeste, leiloado em março de 2019 e assinado em 05 de setembro de 2019. O mecanismo “proposta apoiada” surge na quinta rodada de concessões de aeroportos.

[5] A Lei n. 8.987/95 estabelece em seu art. 9, parágrafo 2º, que os contratos poderão prever mecanismos de revisão das tarifas para se manter o equilíbrio econômico financeiro.

[6] A previsão de cláusula sobre o reajuste é considerada essencial na Lei n. 8.987/95, conforme art. 23, inciso IV, e art. 7, parágrafo 2º, do Decreto n. 7.624/11.

[7] Disponível em: https://www.iata.org/en/pressroom/pr/2020-04-21-01/. Acessado em 20.06.2020.

[8] Disponível em: https://aci.aero/news/2020/05/05/predicted-global-impact-of-covid-19-on-airport-industry-escalates/. Acessado em 20.06.2020.

[9] Disponível em: https://www.abear.com.br/imprensa/agencia-abear/noticias/transporte-aereo-de-passageiros-no-pais-tem-queda-de-9309-em-abril/. Acessado em 20.06.2020.

[10] A “cláusula de relevância” é uma das novidades da quinta rodada de concessões de aeroportos.

[11] Conforme previsto na cláusula 6.23.1 dos contratos da quinta rodada, a referência da média toma por base os 3 anos anteriores ao início do processo de revisão extraordinária.

[12] FARIAS, André Luiz de Albuquerque. CLÁUSULA DE RELEVÂNCIA EM CONTRATOS DE CONCESSÃO: Um estudo de caso no setor aeroportuário. Brasília: ENAP/ISC, 2019, p. 33-36.

[13] Todos os contratos de concessão de aeroportos estão disponibilizados no sítio eletrônico da Agência Nacional de Aviação Civil, acessível em www.anac.gov.br.

[14] De acordo com Caldeira (2020), constatou-se “a inexistência do produto ofertado pelas seguradoras no Brasil para eventos classicáveis como de caso fortuito ou força maior, entre os quais os decorrentes de calamidades ou pandemias. As apólices preveem perda de direito de indenização nas hipóteses de caso fortuito ou força maior, o que não impede que esse produto seja desenvolvido em momento futuro, caso haja demanda e a partir de limites a serem explorados pelas seguradoras”. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/riscos-reequilibrios-forca-maior-e-covid-19-em-contratos-de-concessao-20042020. Acessado em 20.06.2020.