Pandemia

As concessões federais de infraestrutura portuária

Análise jurídica das medidas adotadas para o enfrentamento da pandemia – Parte I

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No último artigo da série que trata do setor de infraestrutura de transportes federal em época de pandemia[1], pretende-se, em um primeiro momento, explorar as características, peculiaridades e como se dão as análises de reequilíbrio econômico-financeiro no âmbito das concessões federais de infraestrutura portuária. Após, na segunda parte, serão exploradas as medidas legais tomadas para o enfrentamento da pandemia, que acabaram resultando, também, em evoluções regulatórias no setor.

No Brasil, o modelo predominante de exploração de portos assemelha-se ao que se costuma denominar Landlord Port, em que a administração do porto é exercida por uma entidade pública, mas os terminais portuários são explorados por empresas privadas. Entre nós, esse modelo é implementado mediante a celebração de contratos de arrendamento portuário, que guardam semelhanças com contratos de concessão.

Foi a partir da Lei nº 8.630, de 1993, que o processo de desestatização de terminais portuários ganhou fôlego. Dada a necessidade de equipamentos específicos, os terminais portuários são normalmente especializados em determinados perfis ou tipos de carga: granéis sólidos vegetais ou minerais, combustíveis, contêineres, veículos, celulose, entre outros. Os maiores portos chegam a ter dezenas de terminais portuários explorados por diferentes arrendatárias, muitas delas competindo entre si.

Até o advento da Medida Provisória nº 595, de 2012, competia à entidade responsável pela administração do porto celebrar os contratos de arrendamento portuário. A partir de então, essa competência foi centralizada diretamente na União, que, por sua vez, pode delegá-la à administração do porto[2].

Estão em vigor cerca de 121 contratos de arrendamento portuário[3], a maioria deles celebrada antes da MP nº 595, de 2012, pelas entidades responsáveis pela administração dos portos organizados, genericamente denominadas “companhias docas”. Esses contratos mais antigos não seguem um padrão único. Ao contrário, são bem diferentes uns dos outros. Em geral, esses contratos contêm disposições bastante singelas a respeito dos riscos assumidos pelas partes. Com a centralização da competência para celebrar os contratos, passou-se a adotar disposições contratuais mais modernas, incluindo uma alocação mais clara dos riscos entre as partes.

Portanto, no que diz respeito a eventual reequilíbrio de contratos de arrendamento portuário em razão dos efeitos da pandemia, há dois aspectos importantes a considerar: (i) a diversidade de modelos contratuais que foram adotados desde meados da década de 1990; e (ii) que os terminais portuários são geralmente dedicados a perfis ou tipos de carga específicos.

Tratando-se o reequilíbrio econômico-financeiro de mecanismo que, em essência, busca dar efetividade à matriz de riscos contratual, a grande diversidade de modelos contratuais no setor portuário faz com que seja imprudente tentar dar uma resposta única a respeito dos processos que cuidam do tema, haja vista, ainda, os diferentes impactos observados, como se verá adiante.

Os terminais portuários lidam com tipos de carga específicos e que foram atingidos de modo bastante diverso pela crise gerada pela pandemia do novo coronavírus. De acordo com dados do Ministério da Infraestrutura, aproximadamente 25% dos terminais são dedicados a combustíveis, outros 25% movimentam granéis sólidos vegetais, 21% trabalham com carga geral, 12% são terminais de contêineres, 8% são especializados em granéis minerais e outros 8% são dedicados a outros tipos de carga[4].

Como se sabe, o Brasil é um grande exportador de commodities agrícolas e minerais. Portanto, os terminais de granéis sólidos vegetais e minerais dependem preponderantemente do fluxo de exportações. Os contêineres em geral são utilizados para o transporte de mercadorias de maior valor agregado. Desse modo, os terminais especializados em carga conteinerizada dependem mais do fluxo de importações. Por seu turno, o nível de atividade nos terminais de combustíveis depende bastante do consumo interno de derivados de petróleo, que, por sua vez, guarda íntima relação com o desempenho da economia doméstica.

Mesmo no caso dos terminais dedicados à exportação de commodities, eventuais impactos decorrentes da pandemia podem ter sido bastante diferentes a depender da mercadoria movimentada. No caso das commodities agrícolas, o volume da movimentação portuária depende em boa medida de fatores sazonais e climáticos que influenciam a produção do campo. Por sua vez, os terminais voltados à movimentação de granéis minerais são bastante dependentes da demanda internacional por minério de ferro, fortemente influenciada pelo consumo chinês.

Segundo dados da Antaq[5], o setor portuário movimentou 538 milhões de toneladas no primeiro semestre de 2020, o que representa um crescimento de 4,4% em relação ao primeiro semestre do ano passado. Em relação aos tipos de carga, houve crescimento no primeiro semestre deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado de 2,2% na movimentação de granel sólido e de 15,5% na movimentação de granéis líquidos. Já a movimentação de contêineres e de carga geral solta apresentaram queda, respectivamente, de -1% e de -6,2% em relação ao mesmo período de 2019.

Outra característica peculiar dos terminais portuários arrendados em comparação aos demais empreendimentos do setor de transporte é que, na maioria dos casos, os contratos garantem ao arrendatário a prerrogativa de fixar livremente seus preços. Isso porque boa parte dos terminais portuários operam num ambiente razoavelmente competitivo. Desse modo, flutuações de custo que afetem de modo generalizado todo o setor tendem a ser naturalmente repassadas ao usuário do serviço sem necessidade de intervenção do regulador. Esse aspecto dos contratos de arrendamento agrega mais um fator a ser considerado nos processos de reequilíbrio econômico-financeiro, para além dos já citados no primeiro artigo desta série.

Nesse contexto, a pandemia motivou requerimentos de suspensão de obrigações contratuais, como o pagamento do valor de arrendamento e do valor de outorga, prazos para a conclusão de obras, entre outras, sob a justificativa de que tais medidas seriam necessárias para assegurar a continuidade do serviço público prestado.

Diante de todas as razões apresentadas, pode-se afirmar que cada um desses pleitos deve ser analisado individualmente, considerando a alocação de riscos prevista em cada contrato e as peculiaridades da dinâmica econômica relacionada ao perfil ou tipo de carga movimentado no terminal, de modo a aferir se eventual queda de movimentação decorreu de fato da pandemia em curso. Além disso, para avaliar o eventual impacto econômico-financeiro do evento, torna-se necessário considerar a liberdade de ajuste de preços de que dispõem a maioria dos arrendatários de instalações portuárias.

Por fim, ainda a respeito do reequilíbrio de contratos de arrendamento portuário, é importante mencionar uma questão mais estrutural, que diz respeito ao reposicionamento da agência reguladora em tais processos, como consequência da Portaria MINFRA nº 530, de 2019.

No setor portuário, diferentemente dos demais setores de transporte, a própria União exerce as funções principais de poder concedente, sendo que as atribuições de regulação e de fiscalização dos contratos competem à Antaq (art. 16 da Lei nº 12.815, de 2013, e art. 27 da Lei nº 10.233, de 2001). Até o advento da Portaria nº 530, de 2019, entendia-se que caberia ao poder concedente decidir se determinado evento justificava ou não o reequilíbrio, competindo à Antaq apenas calcular o montante do desequilíbrio.

No entanto, partindo de uma releitura do papel fiscalizatório da agência, o art. 86 da Portaria nº 530, de 2019, estabeleceu que compete à Antaq “decidir fundamentadamente sobre a pretensão de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro de contrato de arrendamento portuário apresentada por qualquer das partes e definir o montante do desequilíbrio contratual”. Em outros termos, a função de fiscalizar o contrato, exercida pela agência, deve se aplicar para ambas as partes.

Vale mencionar que as agências possuem maior autonomia em relação às demais autarquias justamente para poderem atuar de modo técnico e independente de motivações políticas. Quando devido, o reequilíbrio é uma obrigação do poder concedente. Então, em seu papel fiscalizador, cabe à Antaq atuar para que essa obrigação seja cumprida, o que passa por decidir se o arrendatário ou o poder concedente têm ou não direito a reequilíbrio e, em caso afirmativo, calcular o respectivo montante.

Caberá ao poder concedente apenas avaliar o mérito da forma de reequilíbrio que melhor atenda ao interesse público, mas observando o montante de desequilíbrio calculado pela agência. Claro que, durante o processo, deve a Antaq analisar a manifestação de ambas as partes.

Em síntese, a repartição de competências no setor portuário atribui à Antaq a competência para decidir sobre a pretensão de reequilíbrio de qualquer das partes e calcular o montante do eventual desequilíbrio, cabendo ao Ministério da Infraestrutura a competência de promover as alterações contratuais e decidir a forma como se dará o reequilíbrio.

Dessa forma, orientada por parâmetros objetivos, com vistas a mitigar a assimetria de informações, a análise será realizada nos termos da Resolução Antaq nº 3.220, de 2014, da Portaria MINFRA nº 530, de 2019, da matriz de risco contratual e da legislação de regência.

Merece destaque a flexibilidade das medidas de reequilíbrio que podem ser adotadas, combinada ou isoladamente, tais como a ampliação ou redução das obrigações financeiras previstas no contrato de arrendamento, a modificação das obrigações contratuais do arrendatário, a extensão ou redução do prazo de vigência do contrato de arrendamento e o pagamento de indenização.

Por fim, a longa duração dos contratos de arrendamento portuário permite que a análise sobre eventual desequilíbrio contratual seja realizada em momento oportuno, pós-pandemia, o que não impede que medidas cautelares sejam adotadas para mitigar impactos negativos, caso se verifiquem elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo[6]. Deve-se, nesse caso, além de se observar a devida motivação e proporcionalidade da medida, caracterizar a instrumentalidade (a cautelar não é um fim em si mesma), a provisoriedade (não é também definitiva) e a vinculação ao procedimento principal, qual seja, o referente ao reequilíbrio.

O tema sobre as concessões federais de infraestrutura portuária certamente demanda mais aprofundamento, mas vale a reflexão no âmbito das medidas que podem ser discutidas para o enfrentamento da pandemia, juntamente, ainda, àquelas adotadas em nível legal, objeto da segunda parte deste artigo.


Episódio desta semana do ‘Sem Precedentes‘, podcast sobre STF e Constituição, analisa a judicialização precoce da vacinação contra a Covid-19 no STF. Ouça:

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[1] Vide: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/equilibrio-de-contratos-de-concessao-federal-de-infraestrutura-de-transportes-02062020. Os demais artigos encontram-se em: setor aéreo – https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/concessoes-federais-de-infraestrutura-aeroportuaria-e-desafios-da-pandemia-26062020 e https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/concessoes-federais-de-infraestrutura-aeroportuaria-e-efeitos-da-pandemia-07072020; setor de transportes terrestres – https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/as-concessoes-federais-de-infraestrutura-de-transportes-terrestres-parte-i-24072020; https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/as-concessoes-federais-de-infraestrutura-de-transportes-terrestres-04082020; e https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/infra/transporte-rodoviario-coletivo-interestadual-e-internacional-de-passageiros-28082020.

[2] A União pode explorar os portos organizados direta ou indiretamente. A exploração direta pode ocorrer de forma: (i) centralizada, quando executada por órgão da Administração Pública federal direta; (ii) descentralizada, quando houver sido atribuída a uma entidade da Administração federal indireta; ou (iii) por delegação a outro ente federativo (art. 241 da Constituição; Lei nº 9.277, de 1996; art. 6º, § 2º, da Lei nº 12.379, de 2011; art. 10, § 1º, “b” do Decreto-Lei nº 200, de 1967). Já a exploração indireta dos portos organizados pode se dar por concessão do próprio porto organizado ou ainda por arrendamento de instalações portuárias nele localizadas (art. 1º, § 1º, da Lei nº 12.815, de 2013).

[3] Existem ainda algumas dezenas de terminais portuários que operam com base em contratos de transição (26) ou com base em decisões liminares (31).

[4] Essa informação diz respeito apenas aos terminais públicos localizados nos portos organizados.

[5] Disponível em: < http://portal.antaq.gov.br/index.php/2020/08/18/movimentacao-de-cargas-do-setor-portuario-cresce-44-no-primeiro-semestre/>. Acesso em 15 de outubro de 2020.

[6] De acordo com Flávio Garcia Cabral, “as medidas cautelares de cunho administrativo demandam a verificação de dois pressupostos fundamentais, quais sejam, o periculum in mora e o fumus boni iuris. É o que se extrai das palavras de José dos Santos Carvalho Filho, inclusive, para quem a tutela preventiva se pauta nesses dois pressupostos, sendo o primeiro (perigo da demora) aquele referente ao risco de dano irreparável ou de difícil reparação a que o titular do direito está sujeito a sofrer e o segundo (aparência do bom direito) condizente à exigibilidade de que o direito ameaçado possua um mínimo de plausibilidade jurídica, sendo razoável a um primeiro exame do intérprete” (CABRAL, Flávio Garcia. “Os pilares do poder cautelar administrativo”. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 18, n. 73, p. 115-139, jul./set. 2018. DOI: 10.21056/aec.v18i73.921).