Desde o último ano, um importante debate tem ganhado relevância nas sessões de julgamento do Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“Cade”) em relação à penalização de pessoa física não administradora investigada por prática de infração à ordem econômica. A discussão merece destaque, em especial, porque vai de encontro à interpretação sedimentada há anos pela autoridade em relação ao alcance dos artigos 31, 32 e 37 da Lei nº 12.529/2011, bem como porque pode representar significativa quebra de paradigma e cessação da condenação de indivíduos envolvidos em ilícitos concorrenciais.
A composição atual do Tribunal diverge em relação ao tema, de forma apertada. De um lado, os Conselheiros Sérgio Ravagnani, Paula Farani e Lenisa Prado têm entendido – de forma reiterada nas últimas sessões – pela impossibilidade de penalização de pessoa física não administradora, caso essa não seja representante de empresa investigada.
De outro, os Conselheiros Luiz Hoffmann e Luis Braido se contrapõem a essa interpretação, argumentando que a lei é aplicável a todas as pessoas físicas, independentemente dos seus cargos e atribuições, na linha da jurisprudência do Cade. O Presidente Alexandre Cordeiro, recém empossado, até o momento não se manifestou diretamente sobre o tema, embora já tenha acompanhado votos em que foram condenadas pessoas físicas não administradoras.
Em breve síntese, o entendimento do Conselheiro é de que a atual interpretação dada pela jurisprudência com relação ao artigo 37, inciso II, da Lei nº 12.529/2011 – que serve de base legal para a imposição de multa isolada a pessoas físicas não ocupantes de cargos de administração – não é adequada. Isso porque tal entendimento criaria uma distorção quanto à dosimetria das multas aplicadas, tendo em vista que o Cade vem aplicando multa a administrador a partir da comprovação de culpa ou dolo, ao passo que a penalização de não administrador seria objetiva. Além disso, o Conselheiro ressaltou que, por diversas vezes, os valores de multa aplicados a não administradores são maiores que os valores aplicados a administradores, o que seria desproporcional.
Para embasar a nova interpretação dada aos incisos do artigo 37, o voto do Conselheiro Sérgio Ravagnani levantou aspectos legislativos relacionados à criação da norma para, ao final, concluir que a lei prevê a penalização de pessoas físicas não administradoras tão somente se a sua participação no conluio não está relacionada a qualquer das empresas representadas no processo administrativo. Caso o indivíduo esteja relacionado à prática anticompetitiva em nome de uma empresa representada, segundo o Conselheiro, a penalização apenas pode ocorrer se tal pessoa ocupar posição de administração, seja de direito ou de fato.
Segundo o Conselheiro Ravagnani, a opção do legislador pelo regime legal da responsabilidade objetiva como regra na apuração de infrações à ordem econômica encontra ressalva no artigo 37, III, da Lei nº 12.529/2011 que, na sua visão, comina multa por envolvimento na mesma conduta praticada pela pessoa jurídica, comprovado dolo ou culpa do administrador. Sob essa ótica, a imposição de multa à pessoa física pela Lei nº 12.529/2011 só seria permitida em dois casos, nas exatas palavras do Conselheiro:
- Se não vinculada a pessoa jurídica disposta no inc. I ou no inc. II do art. 37 da Lei nº 12.529/2011, apuração do envolvimento sob o regime legal da responsabilidade objetiva e valor da multa entre R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) e R$ 2.000.000.000,00 (dois bilhões de reais), e
- Se vinculada a pessoa jurídica disposta no inc. I ou inc. no II do art. 37 da Lei nº 12.529/2011, for dela administrador, com garantia da apuração do envolvimento sob o regime da responsabilidade subjetiva, e multa de 1% (um por cento) a 20% (vinte por cento) daquela aplicada ao ente ficto
A tese tem por fundamento a ideia de que não pode a pessoa física não administradora estar sujeita à punição mais gravosa que o administrador, na forma dos dispositivos elencados acima. O voto do Conselheiro destaca que a previsão expressa de imposição de multas a associações de entidades, sociedades não empresárias, demais tipos societários e pessoas físicas não relacionadas a empresas representadas surgiu apenas com a inclusão do inciso III no artigo 23 da Lei nº 8.884/94, correspondente ao artigo 37, II, da lei antitruste vigente.
Nesse sentido, Ravagnani conclui, por meio de minuciosa análise do histórico legislativo da norma, que o legislador teria expressamente deliberado e rejeitado “a hipótese de sanção pecuniária recair sobre controlador, dirigente, gerente, acionista ou sócio controlador de empresa”.
A despeito de tais argumentos, prevalece historicamente, na jurisprudência do Cade, o entendimento de que a Lei de Defesa da Concorrência permite, sim, a condenação de pessoas físicas não administradoras. Nas ocasiões em que a divergência surgiu, alguns pontos foram ressaltados pelos Conselheiros partidários desse entendimento no sentido de resguardar o posicionamento consolidado pela autoridade.
Em voto-vista proferido no Processo Administrativo nº 08700.000066/2016-90, o Conselheiro Luiz Hoffmann rebateu a tese de Ravagnani, também por meio da análise do histórico legislativo da norma, para concluir que “não vislumbro nos documentos legislativos que amparam a Lei nº 8.884/1994 qualquer menção do legislador de excluir as pessoas físicas não administradoras (…) da aplicação da lei, bem como do rol de agentes passíveis de sanção pecuniária”. Em seu voto, o Conselheiro traz ainda tabela comparativa entre a Lei nº 8.884/94 e a Lei nº 12.529/2011, destacando as diferenças em relação aos agentes passíveis de sanção, e reputa que “a Lei nº 12.529/2011 é de inequívoca aplicação a todas as pessoas jurídicas e físicas (art. 31)”.
No mesmo sentido foi o entendimento do então Conselheiro Maurício Bandeira Maia no Processo Administrativo nº 08012.001183/2009-08, apontando que pessoas físicas não administradoras seriam puníveis por ilícito antitruste tendo em vista que (i) os funcionários não administradores de uma empresa podem praticar condutas que contribuam para a prática do cartel; (ii) sendo o ilícito administrativo concorrencial de cartel também ilícito penal, deve ser aplicado ao direito administrativo uma punibilidade com igual alcance; (iii) a ausência de sanção a não administradoras poderia, em sua visão, diminuir incentivos à participação com os institutos de colaboração, tais como os programas de leniência e os termos de compromisso de cessação de prática (TCCs).
A eventual alteração da postura antitruste dependerá, ainda, de debate entorno da compatibilidade desse posicionamento com o intuito da norma, especialmente em relação à preservação do interesse público e da utilização da punição estatal como medida de coerção a pessoas sem poderes de administração.
No contexto da apertada diferença entre o número de votos do Tribunal que se dá a cada uma das interpretações sobre essa matéria e considerando as mudanças da composição do Tribunal para o próximo ano (i.e., o mandato da Conselheira Paula Farani se encerrará em fevereiro de 2022 e muito provavelmente dois novos conselheiros serão nomeados), certo é que a discussão merece atenção e promete novos capítulos.