Pandemia

Concorrência e mercados em tempos de crise: impactos sobre contratos empresariais?

Distinção de condutas oportunistas e ilícitas das empresariais legítimas no embate às atuais circunstâncias

Prefeitura de Salvador vistoria supermercados da capital. Crédito: Bruno Concha/Secom

Muito tem se debatido recentemente sobre potencial onda de revisões e/ou resoluções de contratos empresariais decorrente dos atuais fatos relacionados à crise sanitária e financeira global. Paralelamente, tem-se discutido como estes mesmos fatos – extraordinários e com efeitos ainda imprevisíveis – podem afetar a estrutura e comportamento dos mercados, bem como incentivar a adoção, por agentes econômicos, de condutas anticompetitivas.

A relação entre contratos empresariais e condutas sujeitas à tutela das autoridades concorrenciais é bastante evidente, mesmo em situações normais, [1] e fica ainda mais sensível diante do cenário atual.

Pode a revisão ou extinção de um contrato ser dificultada ou proibida por seus efeitos sobre a concorrência? Pode uma parte eximir-se de cumprir obrigações contratualmente pactuadas sobre fundamentos de ordem concorrencial? Quais são os limites para que o Estado – seja pelo poder judiciário ou arbitral, seja pela autoridade de defesa da concorrência – intervenha na formação, execução ou extinção de contratos por seus potenciais efeitos sobre a competição dos mercados? São estas e outras questões que nos levam à reflexão objeto deste texto.

Em parcerias de longo prazo a revisão contratual costuma trazer à tona a antiga cláusula rebus sic stantibus – resumidamente, uma disposição implícita a relações contratuais de longa duração que sujeita o seu adimplemento e manutenção à preservação das condições existentes à época da formação contratual – ou as suas formulações mais modernas, como as teorias da base do negócio ou da causa do negócio. [2]

Trata-se de soluções voltadas à relativização da força obrigatória dos contratos (pacta sunt servanda), permitindo a repactuação das condições contratadas e sua eventual resolução, mesmo entre partes empresárias.

No entanto, mesmo com o amparo da possibilidade de flexibilização de programas contratuais diante de situações excepcionais, diversos são os desdobramentos possíveis de um processo de renegociação ou extinção contratual (seja por resilição, resolução ou rescisão).

Há casos em que estes desdobramentos levam determinados agentes econômicos à posição de “refém” de determinadas estruturas contratuais – é o que a teoria econômica costuma designar como situações de hold-up.

Trata-se de circunstâncias em que uma das partes contratantes tem desproporcional poder de barganha frente à(s) outra(s), em geral fortalecido pela existência de investimentos específicos, pelo risco de o inadimplemento gerar custos irrecuperáveis e ou por uma dependência, necessidade ou urgência em relação ao objeto contratado.

Pensemos, por exemplo, em um contrato de distribuição celebrado entre A e B, empresas do setor de alimentos, de prazo determinado e que prevê renovação automática anualmente, salvo diante de manifestação contrária de uma das partes.

Imagine-se que há muitos anos as partes não tenham se oposto à renovação e solicitado qualquer alteração das condições contratuais pactuadas, de forma que mantêm entre si uma parceria de longo prazo estruturante de seu modelo de negócios e estratégia comercial.

Pensemos então que, diante da atual crise sanitária e financeira, a empresa produtora de alimentos A, tenha enfrentado grande queda na demanda por seus produtos e testemunhado uma redução brusca de suas vendas diretas, enquanto as vendas realizadas pela distribuidora B, que atende diversos hospitais, supermercados e outros serviços essenciais, tenham se mantido estáveis e até mesmo aumentado.

Ciente que, nesse contexto, A tenha se tornado dependente do contrato de distribuição com B para escoar sua produção, B decide solicitar uma série de alterações nos termos do contrato que a favoreciam, como condição para sua renovação, de forma que A tem pouco espaço de manobra para negociar condições que considere mais vantajosas.

Situações como esta são exemplos daquelas que podem levantar questionamentos relacionados aos potenciais efeitos concorrenciais de uma alteração ou quebra contratual.

A dependência de uma parte frente à outra não só pode abrir portas para a adoção de comportamentos contratuais oportunistas, mas também criar incentivos para a adoção de condutas anticompetitivas.

Sobretudo quando a parte contrária detém poder de mercado e, portanto, consegue impor no mercado determinadas condições comerciais (por exemplo o aumento unilateral de preços) sem que seja contestada por outros agentes.

No caso do exemplo, seria a conduta de B ilícita? Poderia A alegar que B, uma empresa com posição dominante no elo da distribuição de alimentos, estaria abusando de seu poder de mercado ao impor novos termos para a renovação de seu contrato? Ou estaria B apenas estruturando uma resposta mais eficiente às novas circunstâncias fáticas, as quais fariam parte do risco do negócio das partes?

Um ponto chave é então distinguir condutas oportunistas e ilícitas de condutas empresariais legítimas e voltadas ao enfrentamento de novas circunstâncias que impactam o programa contratual e a dinâmica competitiva do mercado como um todo.

O debate certamente é complexo. Em tese, qualquer conduta empresarial pode impactar a dinâmica concorrencial dos mercados que se insere, inclusive gerando variações dos níveis de market share e criando incentivos à adoção de condutas anticompetitivas.

No entanto, a aferição de tais efeitos depende da análise de diversas circunstâncias conjunturais e estruturais e pode, inclusive, derivar de equívocos estratégicos dos agentes desse mercado. Isso tudo faz parte daquilo que se costuma chamar de livre concorrência

De um lado, parece claro que não existe um direito adquirido a um modelo de competição, o que significa que por mais relevante que seja uma estrutura contratual para a dinâmica competitiva de um mercado, salvo raríssimas e excepcionais circunstâncias, um agente econômico não estará obrigado a mantê-la sob justificativas concorrenciais.

Como regra, o que deve prevalecer é a garantia do processo competitivo e não um resultado específico, seja em termos de performance, seja em termos de estrutura, na medida em que agentes econômicos não têm obrigação legal de substituir o poder público e evitar, eles próprios, abusos e condutas anticompetitivas futuras e hipotéticas por parte de terceiros, ou superar a ineficiência de outros agentes em se adaptar a uma nova conjuntura de mercado.

A própria ideia de concorrência refere-se a um processo por meio do qual uma empresa é capaz de contestar com sucesso incumbentes de um dado mercado. A reação natural – e esperada – das empresas estabelecidas no mercado a qualquer possível mudança tende a ser o desconforto e a expulsão, afinal alterações no status quo podem exigir adaptações que os incumbentes nem sempre estão dispostos a fazer.

Por esse lado, não haveria sentido nem relevância em se debater, no âmbito de uma disputa contratual privada – por exemplo relacionada à alteração substancial ou extinção do vínculo contratual – efeitos concorrenciais difusos, ou a atribuição a um agente específico de alguma responsabilidade ou obrigação sobre o tema.

De outro, a própria noção de adaptação do programa contratual segundo a teoria da causa ou da base do negócio tutela justamente a (não) manutenção de determinadas condições de mercado como motivadora da revisão ou resolução contratual.

Tem-se formalizada, no próprio Código Civil, a determinação de que, conquanto cenários pós-contratuais distanciem-se, por exemplo, do que seria a “razoável negociação das partes” (cf. art. 113, §1º, V) ou da “alocação de riscos definida pelas partes” (cf. art. 421-A, II), a própria legislação de direito privado oferece remédios importantes que permitem a alteração ou extinção do programa contratual, inclusive com o afastamento da presunção de paridade entre as partes contratantes (cf. art. 421-A, caput), com a revisão contratual frente a situações imprevisíveis (cf. art. 317) ou resolução por onerosidade excessiva (cf. art. 478).

Nessas hipóteses, o apelo à análise concorrencial do mercado parece desejável justamente para contribuir com a avaliação das circunstâncias vigentes à época de formação do contrato.

Pretender depurar os potenciais efeitos (difusos) para a dinâmica competitiva do mercado que decorrem de questões essencialmente privadas, implicaria uma inadequada intervenção sobre a livre iniciativa.

No entanto, o direito da concorrência pode auxiliar as partes e eventual terceiro chamado a intervir na relação contratual na identificação mais apurada da causa econômica ou base do negócio, e assim elucidar parâmetros de avaliação do comportamento das partes contratantes seja em um momento de negociação consensual, seja em eventual disputa surgida entre elas. Muito embora relativamente nebuloso, esse papel nos parece um importante tema a ser explorado daqui para a frente.

 


[1] Quando se fala dos efeitos de contratos empresariais sobre a concorrência a discussão ganha contornos interessantes. De um lado, sabe-se que a celebração de contratos entre empresas é parte da política de defesa da concorrência. Sabe-se que determinados contratos, como aqueles de aquisição de participação societária e de ativos, joint-ventures, consórcios e os chamados contratos associativos podem, observados outros requisitos, configurar “atos de concentração econômica” e, portanto, estar sujeitos à aprovação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) para adquirem eficácia – é o que se costuma incluir no “controle de estruturas”.

De outro lado, outras estruturas contratuais e disposições específicas costumam chama a atenção das autoridades de defesa da concorrência por seus potenciais efeitos anticompetitivos. É o caso de obrigações de exclusividade e não-concorrência, sugestão ou fixação de preço de revenda, descontos condicionados, recusa de contratar ou limitações à contratação, entre tantas outras, que podem ser enquadradas, também observados certos aspectos, como infrações à ordem econômica – é o que costuma se incluir no “controle de condutas”.

[2] Sobre a base objetiva do negócio, o professor José Fernando Simão publicou texto recente em que discute seu emprego como norte para a intervenção judicial sobre os contratos. Citando Arnoldo Medeiros da Fonseca, indica-se por base do negócio “[…] as representações dos interessados, ao tempo da conclusão do contrato, sobre a existência de certas circunstâncias básicas para sua decisão, no caso de serem estas representações encaradas por ambas as partes como base do acordo contratual (Geschäftsgrundlage), incluindo-se, assim, em princípio, entre elas, v. g., a equivalência de valor entre a prestação e a contraprestação, considerada tacitamente querida; a permanência aproximada do preço convencionado, etc. Quando, em conseqüência de fatos sobrevindos depois da conclusão do contrato, a base do negócio desaparece, perturbando-se o equilíbrio inicial, o contrato não corresponderia mais à vontade das partes e o juiz deveria, por sua intervenção, readaptá-lo a essa vontade, fosse resilindo-o, fosse modificando-o, para que ele correspondesse ao que as partes teriam querido, se previssem os acontecimentos”.

Indica o autor, nesse sentido, que “alteração radical da base do negócio exige que se busque um reequilíbrio das prestações, se possível, ou sua resolução, se impossível”. Ver SIMÃO, J. F (2020). “O contrato nos tempos da Covid-19″. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/323599/o-contrato-nos-tempos-da-covid-19–esquecam-a-forca-maior-e-pensem-na-base-do-negocio.

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