Concorrência

A aplicação da teoria do declining market em tempos de crise

Um instrumento útil à política de defesa da concorrência para enfrentar um cenário de crise excepcional

Crédito: Pixabay

Nos últimos meses, os reflexos da crise sanitária e econômica decorrente da pandemia de Covid-19 provocaram mudanças significativas nas condições de mercado e nas estratégias empresariais adotadas pelos diferentes agentes econômicos. Para enfrentar essas alterações, autoridades concorrenciais imergiram em um grande exercício de reavaliação, mesmo que temporária, de suas políticas de defesa da concorrência para uma adaptação adequada a esse novo cenário. São exemplos desse exercício a criação de novos protocolos de avaliação de cooperação entre concorrentes feitos pelas autoridades europeia, peruana e brasileira.

Apesar dessas fundamentais iniciativas, em cenários de grandes choques econômicos como o atual, a situação de grave crise financeira pode não ser particular a determinado agente, tampouco ser superada pela formatação de arranjos cooperativos. Assim, a mera formulação de quadro normativo para lidar com o desenvolvimento de acordos entre concorrentes pode se mostrar insuficiente para lidar com desafios mais complexos.

Diante disso, com o intuito de contribuir com um exercício coletivo de repensar os instrumentos que a política de defesa da concorrência pode lançar mão para lidar com os efeitos de uma reestruturação dos mercados, recuperaremos os fundamentos e o histórico de aplicação da teoria do declining market para, assim, oferecer indicativos sobre a possibilidade de aplicação dessa teoria interpretativa na atual crise.

Na literatura antitruste, os declining markets (ou mercados em declínio) são aqueles nos quais há uma restrição constante da demanda, cuja reversão é improvável, seja em razão da introdução de novas tecnologias, seja em razão de mudanças no comportamento do consumidor, ou qualquer alteração perene da demanda.

Ao longo das últimas décadas, em importantes trabalhos como o de Malcom Coate e Andrew Kleit[1], argumentou-se que, em atos de concentração realizados nesses mercados em declínio, as autoridades concorrenciais devem realizar uma análise antitruste menos rigorosa, principalmente em relação aos níveis de concentração de mercado. Isso porque, em razão da crise estrutural em determinado setor, qualquer exercício de poder de mercado torna-se improvável, pois condutas nesse sentido podem acelerar a extinção do modelo de negócios das firmas existentes e, por conseguinte, o próprio mercado.

Partindo dessas premissas, o Cade aplicou a teoria do declining market em pelo menos 5 oportunidades nos últimos anos.

Nas análises empreendidas, a autoridade buscou compreender (i) se de fato tratava-se de um mercado em declínio; (ii) a partir dessa constatação, apurou-se se, não obstante o aumento de posição dominante da parte adquirente, não seria provável o exercício de poder de mercado; (iii) se os efeitos líquidos da operação seriam socialmente desejáveis.

O ato de concentração percursor desse debate no Brasil foi a operação em que a empresa Amadeu Rossi vendeu seu negócio de armas para a empresa Munições Forja Taurus, julgada em 2008[2]. O conselheiro relator, Olavo Chinaglia, destacou que, em um mercado que enfrenta um cenário de contínua retração da demanda, ao mesmo tempo em que há uma baixíssima probabilidade de entrada de agentes, há a eliminação de qualquer incentivo para o exercício abusivo de poder de mercado, como a adoção de estratégias de elevação supracompetitiva dos preços, independente da participação de mercado do agente.

Em 2012, o reconhecimento de que se tratava de um declining market foi aspecto central para a aprovação de uma nova operação envolvendo a indústria armamentista, envolvendo as empresas CBC (Companhia Brasileira de Cartuchos), Amadeu Rossi e Metal Craft Metalúrgica.

Neste caso paradigmático sobre o tema, relatado pelo então conselheiro Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, decidiu-se pela aprovação sem restrições do ato de concentração que, embora estivesse possibilitando a monopolização de um mercado, apresentava características de uma indústria em declínio. O conselheiro relator destacou que:

Ao estabelecer uma politica mais flexível para mercados que se encontram em situação de declínio, a autoridade estará permitindo uma melhor racionalização dos ativos e da produção naquele mercado. Essa racionalização pode ser materializada por meio da utilização dos ativos mais eficientes de ambas as requerentes, adequação de métodos produtivos, e outras adaptações que só poderiam ser alcançadas por meio da operação. Em síntese, indústrias em declínio e, consequentemente, com capacidades ociosas crescentes, permitem ajustes mais amplos do que em mercados estagnados ou com demanda crescente, pelo simples fato de que, nesses últimos, não há a possibilidade de, ao menos no curto prazo, abrir mão de ativos produtivos em favor de uma maior eficiência[3].

Na análise do caso, verificou-se que o mercado estava enfrentando uma significativa e persistente redução da demanda, provavelmente em razão de mudanças de hábito dos consumidores e alterações legislativas. Somado a isso, observou-se a não ocorrência de entradas nos 5 anos anteriores. Desse modo, concluiu-se que se tratava efetivamente de um mercado em declínio, afastando a hipótese de que a tendência de recessão seria temporária.

O avanço da análise demonstrou que, ainda que a operação estivesse reforçando a posição dominante de uma das requerentes, não eram identificados incentivos (ou condições) para a imposição de um aumento de preços – conduta que somente aceleraria o processe de declínio do mercado.

Além disso, a partir de uma análise contrafactual, extrapolando situações futuras do mercado com ou sem a operação, observou-se que o ato de concentração apresentava elementos que o tornavam socialmente desejável – manutenção dos ativos disponíveis no setor e consequentemente da capacidade instalada da indústria, aprimoramento das linhas de produção e melhor aproveitamento dos recursos; ao passo que rejeição da operação poderia trazer prejuízos superiores que uma eventual aprovação.

Seguindo o mesmo raciocínio, em três atos de concentração aprovados pelo Cade em 2016, a teoria do declining market foi mobilizada na análise de operações nos mercados de mídia física de entretenimento doméstico (DVDs e Blue-Rays)[4] e mídia física para jogos de vídeo game[5].

Constatou-se que ambos os mercados estavam em consistente processo de declínio, em decorrência da introdução e consolidação de novas tecnologias. Diante disso, a Superintendência-Geral do Cade reconheceu a reduzida possibilidade de exercício de poder de mercado como um dos fundamentos para aprovação dos atos de concentração[6].

À luz dessa breve reconstrução, pode-se observar que, em algumas oportunidades, a autoridade concorrencial brasileira aplicou a teoria do declining market para evitar a extinção de modelos de negócios de firmas que subsistem em mercados em franco processo de declínio.

Nos atos de concentração em que tal instrumento de política de defesa da concorrência foi adotado, o Cade flexibilizou seus critérios tradicionais de análise e considerou que um aumento significativo da concentração em determinados setores pode ter efeitos mais benéficos do que o possível desaparecimento de uma indústria inteira.

Mesmo diante das incertezas inerentes à crise, vislumbra-se a possibilidade de que condições de demanda de mercados inteiros sejam afetadas de forma significativa e não reversível a curto prazo, devido a mudanças de hábitos dos consumidores ou a restrições de natureza sanitária.

Diante disso, compreendemos que uma das soluções para endereçar esse desafio seja a aplicação relativizada da teoria dos declining markets. Para que seja efetiva e abranja mercados diretamente afetados pela crise atual, seria desejável que a avaliação se trata-se de um mercado em declínio seja feita a partir de um recorte temporal mais reduzido, compreendendo, assim, eventuais restrições da demanda associadas a mudanças abruptas provocadas pela pandemia de Covid-19 que, embora possam ser observadas há um curto período, podem afetar a dinâmica de determinado setor de forma permanente.

Assim, consideramos que a aplicação da teoria do declining market, a partir do manejo e flexibilização de alguns dos seus critérios, pode se revelar como um instrumento útil à política de defesa da concorrência para enfrentar um cenário de crise excepcional em que a concentração de empresas em indústrias gravemente desestruturadas pode ser vista como a única saída para a manutenção de importantes ativos produtivos no mercado.


[1] COATE, Malcolm B., and KLEIT, Andrew N. “Antitrust Policy for Declining Industries.” Journal of Institutional and Theoretical Economics (JITE) / Zeitschrift Für Die Gesamte Staatswissenschaft, vol. 147, no. 3, 1991, pp. 494. JSTOR. Disponível em: <www.jstor.org/stable/40751430>. Acesso em 19 de agosto de 2020.

[2] Ato de Concentração no 08012.008901/2008-88 (Requerentes Amadeu Rossi S.A. Munições Forja Taurus S.A.).

[3] Cade. Ato de Concentração no 08012.007520/2009-62. Voto do Conselheiro Relator Carlos Emmanuel Joppert Ragazzo, p. 21.

[4] Ato de Concentração no 08700.012599/2015-33 (Requerentes: Sony DADC Brasil Indústria Comércio e Distribuição Vídeo – Fonográfica LTDA. (“Sony DADC”); e Warner Bros. Home Entertainment Inc. (“WBHE”)).

[5] Ato de Concentração no 08700.005689/2016-59 (Requerentes: Warner Bros. Home Entertainment Inc. (“WBHE”) e Sony DADC Brasil Indústria Comércio e Distribuição Vídeo-fonográfica Ltda. (“Sony DADC”)); e Ato de Concentração no 08700.006315/2016-51 (Requrentes: Warner Bros. Home Entertainment Inc. (“WBHE”) e Sonopress-Rimo Indústria e Comércio Fonográfica S.A. (“Sonopress-Rimo”).

[6] Cade. Ato de Concentração no 08700.006315/2016-51. Parecer no 272/2016/CGAA5/SGA1/SG.