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O preconceito não acaba com a posse de uma mulher, ele se adapta

Força do feminino será construída com uma mudança de cultura que exige muito mais que um ato assinado pelo presidente

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Foto oficial do ministério do terceiro governo Lula; mulheres comandam 11 das 37 pastas. Crédito: Ricardo Stuckert/PR

O ano começou com palco aberto para as mulheres. A ampliação da participação feminina em cargos da alta liderança do setor público ocupou boa parte do debate durante a formação do novo governo. Ponto para a diversidade? É inegável que ter um mapa da Esplanada dos Ministérios com 11 das 37 pastas comandadas por mulheres é um avanço. Isso sem falar no fato histórico de o Banco do Brasil ter sua primeira presidente em 215 anos. E a mulherada segue à frente da Caixa Econômica e de várias secretarias. Mas, nem de longe, esse quadro significa um nocaute no preconceito. Simplesmente porque ele se adapta.

Muito cuidado nessa hora. Demos um passo importante. Escancaramos algumas portas, umas ligeiramente entreabertas para o universo feminino, outras trancadas. As mulheres, nesses casos, foram convidadas a entrar, mas a festa lá dentro ainda é essencialmente masculina. A posse de todas as líderes que citei acima não mostra a “força do feminino”. Ela corrige uma distorção: a falta de oportunidades. A força do feminino será construída com uma mudança de cultura que exige muito mais do que um ato assinado pelo presidente da República.

O que é a cultura de uma empresa se não o jeito daquele grupo de pessoas fazer, juntos, as coisas acontecerem? A liderança mudou, mas a cultura ainda não. É natural do ser humano se adaptar às novas condições. Aliás, nosso cérebro tem essa função adaptativa. Mantém o radar acionado para comandar os alertas de medo, perigo, satisfação etc. A gente passa a maior parte da vida aprendendo a se encaixar em determinados lugares, em especial, quando se trata de ambientes profissionais. Mas isso não quer dizer que mudamos a nossa essência.

Assim, essas mulheres têm uma árdua missão, além de gerar bons resultados nas suas respectivas gestões: promover a mudança de cultura. Uma cultura que, agora, está mascarada pelo clima de celebração da diversidade. E atenção, porque aí todo detalhe importa.

Quer um exemplo bobo? A posse da maioria dessas mulheres foi marcada por auditórios predominantemente masculinos. Homens que, até ontem, tinham a caneta e o poder de corrigir distorções e promover a diversidade de gênero, mas não fizeram. Alguns por vieses inconscientes carregados por gerações, outros por puro preconceito. Fato é que não fizeram. E, mesmo assim, ali, naquele momento, muitos ainda faziam coro aos comentários indignados porque demoramos tanto enquanto sociedade para avançar nessa área.

O próprio presidente Lula, que reclamou como foi possível levar tantos anos para nomear uma mulher presidente do BB, poderia ter encurtado essa história em 20 anos, no seu primeiro mandato em 2003. E olha que ele estava aberto à causa e fez uma mulher presidente da República. O fato é que a ficha que caiu agora para o presidente ainda vai precisar de um empurrãozinho por aí.

Tive o privilegio de acompanhar, na última década, o desenrolar dessa temática e o desconforto de ouvir e viver de perto o preconceito em diferentes segmentos no mundo corporativo. E posso dizer que uma coisa é certa: como ele se adapta! Como ele se dilui em nuances a ponto de a mulher, em alguns momentos, se render a risinhos falsos por preguiça de ter que comprar uma briga a cada comentário inapropriado que ouvir ou por puro instinto de sobrevivência.

Sim. Muitas vezes, a gente simplesmente sucumbe ao preconceito. Diante da nova onda feminina, ele deixa de ser tão declarado. E a gente ouve coisas mais do tipo que uma amiga, profissional com um currículo invejável, comentou outro dia. Um colega, certo de que estava elogiando, saiu com a seguinte justificativa para nomeá-la representante da empresa num debate importante: “A gente precisa melhorar nossa participação feminina, então, coloque uma mulher como nossa representante”.

Na hora, ela rebateu: “Olha, a mulher tem que ser a representante por ser capacitada para isso. A ideia não é fazer favores, mas escolher competências em vez de gênero. É assim que temos que pensar”. Refletindo sobre a história, fiquei em dúvida se também teria reagido à altura ou respirado fundo e com aquele “olhar de peixe morto” pensado: “Senhor, que canseira”.

Uma outra colega, diretora de uma grande empresa, me contou que um antigo parceiro, que costuma apresentar bons projetos, falou sobre a ideia de uma ação conjunta inovadora com a temática do universo feminino, mas disse que os detalhes do conceito e as ações seriam apresentados por uma mulher da equipe dele. Isso deixou minha amiga chocada. “Como assim, até hoje ele vinha e apresentava tudo. Agora, porque é uma temática feminina tem que ser uma mulher, ele não pode defender?”, reagiu, indignada.

Coisas que podem parecer pequenas, mas que, no dia a dia, se acumulam com outros relatos mais pesados, como quando uma mulher é taxada de “bipolar” ou “louca” por ter batido de frente com homens fortes em discussões negociais. Ou quando uma liderança escreve num grupo restrito de mensagens da empresa em tom de piada que “ele é do tempo em que mulher dava a b. e não opinião”.

Um alento, como diz o colega e consultor de empresas Ricardo Guimarães, é que estamos no tempo de ressignificar as lideranças. O tradicional Chief Executive Officer (CEO) precisa se entender como Chief Evolution Officer. Na prática, segundo ele, isso significa sair do cargo de quem dirige uma empresa ancorada em hierarquia, burocracia e a visão de remuneração os acionistas, pura e simplesmente, para assumir a direção de um negócio que acontece dentro de um ecossistema onde a empresa é uma das partes e cultiva o comportamento empreendedor, de olho na sua perenidade.

E se a perenidade das empresas depende de uma estreita atenção às demandas sociais, que essas mulheres líderes que estão entrando em cena personifiquem essa evolução e nos levem a outro patamar, no qual o preconceito terá sido combatido e não escondido dentro do armário.

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