
O ano de 2020 foi marcado por uma judicialização do direito ambiental perante o Supremo Tribunal Federal (STF). Dois casos emblemáticos em tramitação na corte permitem extrair iniciais traços representativos do desenvolvimento da justiça ecológica no país.
A incorporação da proteção ao meio ambiente na Constituição Federal de 1988 foi fruto de um contexto anterior, principalmente desenvolvido nas décadas de 60 e 70, quando a questão ambiental tornou-se um grande tema global, em um momento em que houve a descolonização da África – cujo período de dominação revelou alta degradação ambiental –, culminando na Conferência Internacional sobre o Meio Ambiente Humano, a Conferência de Estocolmo, realizada em 1972.
No transcurso histórico de afirmação do direito ao meio ambiente, releva notar a adoção, em 17 de novembro de 1988, do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – Protocolo de San Salvador –, que prevê, no seu art. 11, o direito a um meio ambiente sadio.
Após a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro em 1992, houve uma aceleração dos mecanismos de adoção e entrada em vigor de normas internacionais e de realização de Conferências das Partes, com a assinatura de Convenções-Quadro, pondo em marcha uma engenharia de soft law.
A temática não atingiu a maturidade no plano das relações internacionais contemporâneas, em razão da fragilidade da regulamentação, ainda muito descumprida. Cabe, por isso, o reforço da proteção ambiental no âmbito de cada país, para proporcionar a efetividade das normas de direito ambiental, em busca de minorar o déficit ecológico de abrangência planetária[1].
Diante da fragilidade ou da eficácia relativa da proteção internacional do meio ambiente, passa-se, em perspectiva prescritiva, do global ao local globalizado.
E aqui surge a importância da litigância estratégica, traduzida na provocação de tribunais domésticos para obter decisão sobre questões relevantes, a exemplo da relativa à mudança do clima – litigância climática.
O direito ao meio ambiente está no epicentro da agenda e das preocupações internacionais e, também, da pauta do Supremo Tribunal Federal. Cabe aos Estados nacionais implementar a proteção efetiva, esta, sim, com base no direito ambiental como direito fundamental que envolve a coletividade à luz do princípio da solidariedade, como já afirmado em 1995 pelo STF, ao julgar o Mandado de Segurança (MS) nº 22164/SP[2], processo relatado pelo ministro Celso de Mello, decano que em 2020 deixou a Corte.
Já em 20 de abril do ano passado, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal declarou que “a reparação do dano ao meio ambiente é direito fundamental indisponível, sendo imperativo o reconhecimento da imprescritibilidade no que toca à recomposição dos danos ambientais”.
A imprescritibilidade da reparação do dano ambiental foi assentada no Recurso Extraordinário (RE) nº 654833[3], com a fixação da seguinte tese de Repercussão Geral: “É imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental”.
Justiça ecológica: perfil metodológico inicial no Brasil
Incumbe aos países, como o Brasil, efetivar a justiça ecológica, que envolve não apenas considerar os aspectos sociais resultantes dos impactos ambientais decorrentes da ação humana, mas, de forma indubitavelmente complexa, gerir os efeitos destrutivos advindos e, a um só tempo, examinar os aspectos econômicos, biológicos e interculturais envolvidos na solução dos problemas oriundos da relação entre seres humanos e meio ambiente.
O que muda também é a localização do conflito: as relações sociais associadas à justiça ambiental são enfrentadas sob uma perspectiva ecossistêmica. Há uma disfuncionalidade estrutural originada das dinâmicas travadas entre as atividades humanas e o que lhes circunda. Por isso, verificam-se, hoje, litígios estruturais, além da já reconhecida dimensão global do conflito.
Vê-se como uma ação que ocorre em um lugar pode condicionar um efeito em outra localidade: estrutura que precisa de soluções globais; não exclusivamente locais. No entanto, enquanto desenlaces globais não são erigidos com eficiência, quais os atuais contornos do exercício da justiça ecológica que se delineia no Supremo Tribunal Federal?
Para a resposta, tomemos como exemplo dois emblemáticos casos em curso na Corte quanto a recursos financeiros, o Fundo Clima e o Fundo Amazônia, apreciados, respectivamente, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 708, de relatoria do ministro Roberto Barroso, e na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 59, cuja relatora é a ministra Rosa Weber.
O primeiro caso, da ADPF 708, é sobre o inadequado funcionamento do Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) com consequências sobre o direito ao meio ambiente saudável. Em decisão monocrática, o ministro Barroso reconhece que os fatos descritos na petição inicial, uma vez confirmados, podem revelar a configuração de um estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental[4].
A audiência pública realizada nos dias 21 e 22 de setembro de 2020 promoveu um amplo debate no STF, com a participação de representantes de órgãos públicos, organizações sociais, institutos de pesquisa, academia e atividades empresariais.
Na ADO 59, alega-se a omissão inconstitucional da União devido à ausência de medidas para a suspensão da paralisação do Fundo Amazônia. Na audiência pública que teve lugar em 23 e 26 de outubro de 2020, inaugurou-se uma metodologia com um “espaço deliberativo” após as exposições, para resposta a questionamentos, inclusive com a possibilidade de os participantes formularem perguntas aos demais, com a devida justificativa[5].
O desenvolvimento processual das duas ações constitucionais referidas permite identificar, até o momento, três aspectos preliminares reveladores das características da justiça ecológica em curso:
a) Recurso ao direito comparado: em decisões monocráticas inicialmente proferidas na ADPF 708 (então ADO 60)[6] e na ADO 59[7], os relatores valeram-se de referências a casos enfrentados por Cortes não brasileiras. O ministro Roberto Barroso citou o julgamento que envolveu as Comunidades Indígenas Miembros de La Associación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) Argentina perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Referiu-se novamente ao sistema americano ao invocar a Opinião Consultiva nº 23/2017. A ministra Rosa Weber ilustrou a complexidade, a multipolaridade e a urgência da tutela do meio ambiente com a alusão a julgados de tribunais de países como Paquistão, Colômbia, África do Sul, Reino Unido, Holanda, além do caso Comunidades Indígenas Miembros de La Associación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) vs. Argentina, julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Tais referências já revelam a atuação do direito comparado no (reforço do) convencimento do órgão judicial, como função auxiliar ou ulterior da comparação jurídica[8], mormente considerando, quanto ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, que o seu papel é complementar à proteção dos ordenamentos nacionais, à luz do princípio da complementariedade ou da subsidiariedade.
Diante de controvérsias jurídicas atinentes à justiça ecológica, a experiência do Brasil na citação de precedentes estrangeiros e, mais precisamente, daqueles oriundos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, pode indicar a formação ou o fortalecimento da construção dialógica, com a potencialidade de culminar em uma bilateralidade que configure o verdadeiro sentido da cross judicial fertilization[9]na jurisprudência constitucional emanada pelo STF em relação à tutela dos direitos fundamentais;
b) Reconhecimento da interdependência entre os direitos: a análise da marcha processual até o momento demonstra a preocupação com o problema jurídico como capaz de gerar impacto em um plexo de direitos fundamentais, tais como vida, saúde, identidade cultural, segurança alimentar, água potável, além da consideração dos efeitos sobre as comunidades tradicionais, como as indígenas, quilombolas e outras populações.
Como destaca Silvia Bagni, “la cosmovisión indígena conduce a la necesidad de interpretar con un criterio intercultural, tanto el parámetro como el objeto del juicio por parte de los tribunales constitucionales. Por eso, releva el aspecto de la conformación del órgano”[10]. O STF parece, assim, inclinar-se a dar especial importância à interculturalidade e à convivência harmoniosa[11];
c) Utilização da ferramenta da audiência pública: releva notar a realização de audiências públicas como um verdadeiro espaço de participação democrática na jurisdição constitucional, a proporcionar o pluralismo do debate interdisciplinar. Trata-se de técnica processual que combina constitucionalismo judicial e político, como conclui Mark Tushnet[12].
O seu uso permite ao Supremo, também, empreender uma interpretação histórica a partir da colheita de registros fidedignos do que se deu no passado, nas palavras do Ministro Roberto Barroso: “(…) as Cortes Constitucionais – assim como as Cortes Internacionais – podem desempenhar um papel informativo no espaço público: promovendo o esclarecimento de fatos, a espécie de relato oficial sobre o que efetivamente está ocorrendo em um país. Esse relato oficial contribui para o registro fidedigno do que se deu no passado, do que está ocorrendo no presente e, nessa medida, abre caminho para o diagnóstico de problemas, a identificação de soluções e a atribuição de responsabilidades”[13].
Um desenho de abertura e interdisciplinaridade
Constata-se, do acompanhamento ações constitucionais apresentadas, a aplicação de uma metodologia de abertura constitucional por meio de diálogo e debate em prol do aprofundamento do conhecimento da amplitude do problema jurídico posto perante o Supremo Tribunal Federal.
Vislumbra-se um desenho da justiça ecológica em desenvolvimento não apenas sob o prisma específico dos aspectos financeiros envolvidos, mas também com enfoque na interdependência entre os direitos e na interdisciplinaridade do tema, em busca de soluções de tipo sistêmico baseadas em uma visão de abrangência tanto sincrônica quanto diacrônica.
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
[1] CARDUCCI, Michele. Le Premesse di una “Ecologia Costituzionale”. Veredas do Direito, Belo Horizonte, v.17, n.37, janeiro/abril de 2020, p. 92-93.
[2] STF, MS 22164, Tribunal Pleno, rel. min. Celso de Mello, j. 30.10.1995.
[3] STF, RE 654833, Tribunal Pleno, rel. min. Alexandre de Moraes, j. 20.04.2020.
[4] STF, ADO 60, decisão monocrática, rel. min. Roberto Barroso, DJe 30.06.2020.
[5] Cf. STF, ADO 59, decisão monocrática, rel. min. Rosa Weber, DJe 02.10.2020.
[6] STF, ADO 60, decisão monocrática, rel. min. Roberto Barroso, DJe 30.06.2020.
[7] STF, ADO 59, decisão monocrática, rel. min. Rosa Weber, DJe 01.09.2020.
[8] PEGORARO, Lucio; RINELLA, Angelo. Sistemi costituzionali comparati. Torino: G. Giappichelli Editore, 2017, p.33.
[9] GROPPI, Tania; PONTHOREAU, Marie-Claire. Introduction. The Methodology of the Research: How to Assess the Reality of Transjudicial Communication? In: GROPPI, Tania; PONTHOREAU, Marie-Claire (edit.). The Use of Foreign Precedentes by Constitutional Judges. Oxford: Hart Publishing, 2014, p. 5-7.
[10] BAGNI, Silvia. Hitos de Democratización de la Justicia Constitucional: propuestas desde América Latina. In: ACHURY, Liliana Estupiñán; HERNÁNDEZ, Carlos Arturo; JIMÉNEZ, William Guillermo (edit.). Tribunales y Justicia Constitucional: Homenaje a la Corte Constitucional colombiana. Tomo I. Bogotá: Universidad Libre, Universidad de Bolonia, 2017, p. 154.
[11] WILHELMI, Marco Aparicio. Rumo a uma justiça social, cultural e ecológica: o desafio do Bem Viver nas constituições do Equador e da Bolívia. Meritum, Belo Horizonte, v. 8. n. 1, jan./jun. 2013, p. 318.
[12] TUSHNET, Mark V., New Institutional Mechanisms for Making Constitutional Law. Harvard Public Law Working Paper, New York, n°. 15-08, April 2, 2015, p. 16-17.
[13] STF, ADO 60, decisão monocrática, rel. min. Roberto Barroso, DJe 30.06.2020.