Análise

Pandemia se resolve com lei?

Acesso aos representantes ficou mais restrito e limitado a redes de contato previamente estabelecidas

Crédito: unsplash

No dia 27 de setembro, a declaração de pandemia da Covid-19 pela OMS completou 200 dias. As primeiras medidas de isolamento social no Brasil surgiram nesse mesmo período. Não há dúvidas sobre a relevância de políticas públicas para orientar aspectos diversos relacionados a essa situação e suas consequências. Muitas dessas ordens requerem formalmente normatizações por meio de diferentes instrumentos, sejam leis, decretos, portarias, resoluções e até mesmo emendas constitucionais, em todas as esferas federativas: federal, estaduais e municipais.

Sem adentrar na análise sobre o que é ou deveria ser competência dos Poderes Executivos ou Legislativos ou até mesmo sobre a polêmica em torno dos limites da competência de cada nível federativo, tema que foi debatido pelo STF, no âmbito da ADI 6341, o que este artigo se propõe a analisar é a quantidade e qualidade de algumas das propostas apresentadas durante os últimos sete meses.

Digno de nota o fato de que o Senado Federal brasileiro despontou mundialmente como a primeira casa legislativa federal a estabelecer procedimento de realização de deliberações virtuais. Na sequência, a Câmara dos Deputados também promoveu adaptações para garantir a efetiva tramitação de proposições legislativas apresentadas nos primeiros momentos da pandemia no Brasil.

Foram aprovadas por meio desses sistemas proposições relevantes como o Orçamento de Guerra, a regulamentação da telemedicina, normas excepcionais sobre o ano letivo escolar e o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda. Antes da pandemia, no Brasil, apenas a Câmara Municipal de São Paulo havia implementado sistema de deliberação virtual, em maio de 2019. Contudo, até então, as votações nesse modelo se restringiam a projetos de menor repercussão.

Logo em seguida, parlamentos estaduais e municipais por todo o país definiram também seus novos ritos e procedimentos. Todas as Assembleias Legislativas passaram a deliberar de forma remota, algumas inclusive por meio de aplicativos como WhatsApp. Aos poucos, houve retorno parcial de atividades presenciais, mas na maioria dos casos ainda está proibido o acesso ao público externo. Em relação às Câmaras de Vereadores, algumas optaram num primeiro momento por implementar um período de recesso antecipado, outras passaram a deliberar em formato híbrido, com o Presidente da Casa comparecendo às sessões e os demais vereadores votando à distância ou com calendário reduzido de sessões ainda presenciais.

Não demorou muito tempo para a criatividade de proposições legislativas influenciadas pelo contexto excepcional começar a ganhar cada vez mais expressão nos parlamentos. Considerando-se adicionalmente os embates políticos a respeito de insuficiência da atuação dos ocupantes dos Poderes Executivos, diversas foram as propostas apresentadas sem maior grau de reflexão sobre seus impactos sobre o setor produtivo, estudantes, estruturas familiares, trabalhadores de diversos segmentos, o setor de saúde público ou privado ou a situação orçamentária e fiscal.

Em termos de volume, pôde-se perceber aumento significativo da proposição de novas normas por parlamentares. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, foram introduzidos 2.793 novos projetos de lei ordinária em abril de 2020, número expressivamente maior que a média nos demais meses deste mesmo ano, bem como no ano de 2019, que circulava em torno de 450 a 500 projetos de lei.

Interessante também ressaltar que, em março foram apresentados 747 PLs na Câmara, sendo 190 deles ainda na primeira quinzena e 557 na segunda quinzena, quando os efeitos da pandemia estavam mais presentes. No Senado Federal, embora a diferença na quantidade de novos PLs seja menos significativa comparativamente com 2019, na primeira quinzena do mês de março de 2020 foram 31 projetos de lei ordinária apresentados por senadores, enquanto na segunda quinzena o número foi de 149.

Nos legislativos estaduais e municipais[1], também houve aumento de mais de 80% nas proposições legislativas de março a setembro de 2020, em relação a 2019. Nos Executivos, em 2020, o aumento de atos normativos foi de mais de 300% no mesmo período, sendo a grande maioria ligada ao coronavírus. Já no que diz respeito à qualidade dos conteúdos das propostas e ao seu processo de discussão, seguem nos parágrafos seguintes exemplos interessantes.

Viu-se por todo o país surgirem propostas no mínimo pouco pensadas, como a classificação de trabalhadores domésticos como serviço essencial, ou a garantia de acesso a vacina (inexistente ainda) para caminhoneiros, a redução compulsória de valores de mensalidades de academias de ginástica e instituições de ensino, sem qualquer estudo de impacto econômico sobre os estabelecimentos, ou a obrigatoriedade de ampla distribuição gratuita de equipamentos como máscaras ou sanitizantes, sem considerar como essas operações seriam logisticamente efetuadas sem gerarem aglomerações.

Houve, também, proposta para que compras online feitas por consumidores idosos fossem entregues em no máximo 48 horas, sem avaliação dos diferentes tipos de produtos e logísticas envolvidos nessa ampla classificação.

O famoso e necessário auxílio emergencial instituído pela Lei nº 13.892, de 2020, foi aprovado no Congresso por meio de carona em um PL que já tramitava na Câmara há mais de dois anos, que tratava originalmente de alterações no Benefício de Prestação Continuada (BPC). Na sequência de sua votação, senadores decidiram discutir um outro PL para “aprimorar” as regras do benefício (PL 873/2020, sancionado posteriormente como Lei nº 13.988, de 2020).

Tratou-se de arranjo para evitar que o primeiro PL tivesse que retornar à Câmara, atrasando sua sanção e início dos repasses. Porém, ao se analisar o conteúdo desse segundo projeto de lei, percebe-se que uma das melhorias propostas consistiu na inclusão de dispositivo para elencar “outras categorias profissionais” que fariam jus ao recebimento do benefício. Ocorre que o primeiro projeto não mencionava em nenhum dispositivo categorias profissionais específicas. Previa apenas regras de enquadramento geral, como ter mais de 18 anos, não possuir vínculo formal de emprego, limites de renda familiar, entre outros.

Ao arrepio da boa técnica legislativa, o segundo PL trazia dispositivo que descrevia rol não taxativo (“sem prejuízo de outras categorias profissionais”) de dezenas de atividades cujos profissionais seriam também beneficiários do auxílio emergencial, tais como artistas, guias de turismo, fisioterapeutas, mototaxistas, motoristas e entregadores de aplicativos, diaristas, feirantes, baianas do acarajé, cabeleireiros.

Ao ler a lista, a primeira ideia que pode vir à mente é por que não incluíram também, por exemplo, paisagistas, porteiros de edifícios ou massagistas? Não há aqui qualquer julgamento ou demérito aos profissionais descritos ou não na lista do PL 873/2020. O ponto é que todas essas pessoas já estavam legalmente autorizadas a requerer o benefício com a redação do primeiro PL transformado em lei em abril, desde que cumprissem os requisitos de enquadramento.

A aprovação desse dispositivo do segundo PL era absolutamente desnecessária em termos legais. Por que então gastar tempo da atividade legislativa para se discutir isso? A explicação mais plausível é a criação da narrativa política de que determinado parlamentar trabalhou para garantir a atenção a determinada categoria.

Para além do mau uso do tempo da atividade legislativa, relevante destacar como consequência negativa dessa proposta que, ao final, o dispositivo em questão foi vetado pelo Presidente da República, o que gerou ainda mais confusão para os leitores desatentos ou que não compreendem o fundamento jurídico de fundo. Para alguns desses profissionais, restou, em meados de maio, quando do advento do veto, a equivocada impressão de que estavam agora impedidos de acessar o benefício. Mas, muito pelo contrário, eles sempre puderam requerer ao auxílio emergencial, assim como qualquer outro profissional de qualquer área, desde que se enquadrassem nos critérios gerais previstos na primeira Lei.

Outra proposição a ser destacada foi o PL 1179/2020, que estabeleceu o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET). Primeiramente, vale ressaltar que entre a apresentação do projeto pelo Senador Antônio Anastasia e sua votação no Senado decorreu-se um prazo de apenas quatro dias.

Mesmo que a proposição original tenha contado com a contribuição técnica de Ministros de STF e STJ e com a análise feita pela relatora, Senadora Simone Tebet, e ainda considerando que o objetivo da proposição era de fato trabalhar com um sistema transitório que demandava certa celeridade, há que se ponderar até que ponto é factível, em tão curto espaço temporal, a realização das análises necessárias pelos legisladores, a respeito de um rol variado de temas como direito sucessório, usucapião, regime societário, sistema concorrencial e locação de imóveis.

Embora a Câmara dos Deputados tenha tomado prazo maior para apreciação do PL, transformado na Lei nº 14.010, de 2020, pouco mais de dois meses após a primeira votação no Senado, não se pode considerar surpresa que quase 40% do projeto tenha sido objeto de veto presidencial, o que indica o grau de controvérsia a respeito da forma como esses temas foram debatidos no Congresso Nacional.

Ademais, o mecanismo de votações remotas apresenta também problemas de outras naturezas. Corriqueiras são as reclamações de parlamentares sobre a dinâmica das sessões virtuais em relação a aspectos como a efetiva realização das discussões somente após a votação da matéria em si, a permissividade para manifestações que furam a fila por meio do mau uso do mecanismo “pela ordem”, a exacerbada concentração de poderes nos líderes e presidentes das casas e a mitigação dos recursos regimentais disponíveis para minorias impedirem ou retardarem votações.

Da mesma forma, o sistema virtual tem prejudicado em parte a participação social nos processos. O Congresso sempre foi local de ampla circulação para grupos de pressão realizarem de maneira legítima o exercício da defesa de interesses.

Por mais que sejam diversos os parlamentares disponíveis para a realização de reuniões por videoconferência, o acesso aos representantes ficou mais restrito e limitado a redes de contato previamente estabelecidas, afetando a necessária contribuição da sociedade civil em discussões de temas que a afetam. Nos estados e municípios, as dificuldades preexistentes em relação ao acesso à informação e transparência foram agravadas pelo fechamento das casas legislativas e transmissão parcial das sessões.


O Sem Precedentes desta semana analisa surpreendente indicação de Kassio Nunes Marques, hoje desembargador do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1), para o Supremo Tribunal Federal (STF). Ouça:

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[1] Consideram-se aqui todos os estados e 100 municípios com população acima de 200 mil habitantes.