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‘O golpista do Tinder’ e o crime de estelionato sentimental

Documentário narra a história de estelionatário que conquista mulheres para fazê-las custear sua vida de luxo

O Golpista do Tinder
Crédito: Reprodução/Facebook/Netflix Brasil

Sucesso na Netflix, o documentário “O golpista do Tinder” está dando o que falar desde que foi lançado no começo de fevereiro. O enredo é digno de filmes de ficção e narra a história de Shimon Hayut, israelense envolvido em diversas fraudes que importaram na subtração de mais de US$ 10 milhões pertencentes a mulheres de diversos países, iludidas pelas relações afetivas que estabeleciam com o golpista. Spoiler: ele foi preso, mas não pelos diversos estelionatos sentimentais, e já se encontra livre.

O documentário é baseado em reportagem do jornal norueguês Verdens Gang (VG), após corajosa denúncia de uma das vítimas de Hayut — que adotou, entre outros, o nome de Simon Leviev. A fraude se iniciava no aplicativo de relacionamentos Tinder, em que Leviev ostentava vida de luxo e viagens caras. Após conquistar a confiança das mulheres, impressionava-as em encontros com direito a viagem de jatinho, restaurantes caros e badalados, esbanjando sua aparente riqueza.

O golpe milionário era arquitetado em esquema de pirâmide para que pudesse manter sua vida de luxo. Assim, uma mulher cobria os custos dos luxos pagos à próxima vítima, certa de que estava ajudando o amado, que dizia estar sendo perseguido por seus inimigos.

Simon — ora herdeiro do ramo de diamantes, ora do ramo de armas — enviava fotos e vídeos de seu segurança particular gravemente ferido e dizia à namorada da vez não poder usar seu próprio cartão de crédito para que não fosse rastreado por seus oponentes. Sensibilizadas com o risco que o namorado corria, emprestavam cartões, faziam empréstimos e transferiam valores altíssimos para resguardar a sua segurança.

Envolvente como todo vigarista desta estirpe, enviava às mulheres comprovantes falsos de transferências bancárias, em valores a maior do que o devido, para fortalecer sua credibilidade junto às vítimas, iludindo-as mais uma vez. Os empréstimos se sucediam até a vítima perceber que jamais receberia os valores de volta, e o estelionatário mudava radicalmente de postura e de humor. O amoroso e gentil Simon dava lugar à sua real personalidade, agressiva e ameaçadora.

Narra o documentário que assim o golpista se fez, desde o fim da adolescência. Após a denúncia ao jornal VG, feita por uma norueguesa que perdeu mais de US$ 250 mil com as fraudes de Simon, a equipe jornalística conseguiu reunir outras vítimas e esteve em Tel Aviv – onde descobriram seu nome verdadeiro, e também que era um foragido da polícia.

A farra acabou de vez quando a última namorada, uma holandesa, acidentalmente se deparou com a reportagem, após 14 meses de namoro. Ela planejou então uma verdadeira vingança e conseguiu entregar Simon para a polícia. Preso em 2019, foi deportado para Israel, e cinco meses depois, está solto.

Na internet, a publicação da reportagem abriu margem para que as vítimas recebessem toda sorte de xingamentos e julgamentos nas redes sociais. Atribuir culpa à vítima não é raro em crimes contra mulheres, infelizmente. Chamadas de ingênuas e interesseiras, viram suas vidas virar de cabeça para baixo, enquanto o agressor se via livre de qualquer consequência.

A verdade é que o chamado estelionato sentimental não escolhe vítimas. Mulheres fortes ou frágeis, carentes ou autossuficientes, bem-sucedidas ou não, todas estão sujeitas a golpes dessa natureza. O agressor é sempre alguém interessante e envolvente, capaz de iludir as vítimas através de seus sentimentos. Mas precisamos dizer o óbvio: a vítima não tem culpa.

A sedução e o luxo utilizados como artifícios de Simon enganam. Um homem bem-sucedido que diz tudo que suas vítimas sempre quiseram ouvir em uma relação amorosa acaba por envolver, e o primeiro alerta demora a ser ativado.

No Brasil, induzir alguém em erro, mediante qualquer artifício, para obter vantagens indevidas é crime capitulado no artigo 171 do Código Penal, que tipifica o estelionato. O uso de sentimentos envolvendo a questão afetiva e emocional é uma condicionante, chamada de estelionato sentimental, termo surgido em decisão de 2015 de um magistrado de Brasília, que condenou o réu ao ressarcimento de valores à ex-namorada. Na ocasião, sustentou o juiz:

“Embora a aceitação de ajuda financeira no curso do relacionamento amoroso não possa ser considerada como conduta ilícita, certo é que o abuso desse direito, mediante o desrespeito dos deveres que decorrem da boa-fé objetiva (dentre os quais a lealdade, decorrente da criação por parte do réu da legítima expectativa de que compensaria a autora dos valores por ela despendidos, quando da sua estabilização financeira), traduz-se em ilicitude, emergindo daí o dever de indenizar” (Processo n. 0012574-32.2013.8.07.0001).

Mais recentemente, em decisão unânime, a 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais do Distrito Federal concluiu que a parte autora foi vítima de estelionato sentimental e determinou que seu ex-companheiro pague indenização por danos materiais e morais, diante do uso de sentimentos afetuosos da mulher para a obtenção de vantagens econômico-financeiras.

O caso se assemelha à fraude retratada no documentário “O golpista do Tinder”, conforme trecho da decisão do 5º Juizado Especial Cível de Brasília:

“[…] o réu se valeu dos sentimentos da autora, envolvendo a vítima com declarações, e da confiança amorosa típica de um casal, além de promessas, como a de um futuro casamento, a induziu e manteve em erro, com o intuito de obter vantagens, praticando assim estelionato afetivo”[1].

Decisões reconhecendo a conduta ilícita do estelionato sentimental no âmbito cível têm sido frequentes. A questão ganha outro tom na esfera penal: trata-se de crime condicionado à representação da vítima, por inovação legislativa do Pacote Anticrime (Lei 13.964/2019) no art. 171, §5º. A vítima tem o prazo máximo de seis meses para denunciar a possível prática delitiva às autoridades.

A investigação do delito esbarra na disposição das vítimas em denunciar, temerosas por sua segurança diante de uma imprevisível reação do denunciado. Embora muito já tenha sido feito, ainda falta estrutura de espaços físicos e de profissionais preparados para o primeiro acolhimento de relatos de mulheres e providências pertinentes para resguardar a segurança física e psíquica das vítimas.

Além do medo de possíveis represálias de seus ex-companheiros, temem também as críticas e julgamentos que podem receber de quem ouve seus relatos, muitas vezes sentindo-se culpadas e envergonhadas em alguma medida. A misoginia estrutural que avassala nossa sociedade explica tal confusão de sentimentos. Não falta quem duvide de suas narrativas, lhes atribua a culpa e lhes digam que “mereciam” ser vítimas do crime.

Não fosse o bastante, ainda mais difícil é reunir as provas em tão curto espaço de tempo. Nem sempre a vítima consegue se dar conta de que está sendo induzida a erro por uma pessoa que detém a sua total confiança e demora a reunir elementos que demonstrem o ilícito para que as autoridades consigam dar continuidade à investigação. Não raro, o que se tem são apenas trocas de mensagens afetuosas. A dificuldade da investigação prejudica a responsabilização adequada do criminoso.

O documentário “O golpista do Tinder” retrata exatamente esta situação. Simon Leviev ficou impune dos diversos estelionatos sentimentais que praticou contra mulheres em diversos países. Apenas uma única de suas vítimas conseguiu reaver parte do prejuízo — a holandesa Ayleen Charlotte, que o entregou à polícia grega.

As iras da Justiça, contudo, não alcançaram os múltiplos estelionatos sentimentais praticados pelo israelense. Sua única punição por estes crimes, até então, parece ter sido seu banimento do aplicativo de relacionamentos Tinder.

As falcatruas milionárias após os diversos “matchesque surpreenderam a todos seguem sem a devida responsabilização penal. O magnata já voltou a ostentar sua vida de luxo em Israel, ao lado de uma nova namorada. E na realidade brasileira, será que Simon seria responsabilizado? Ou suas vítimas brasileiras também seriam culpadas pela opinião pública?

Muito já se fez, mas ainda há muito o que se fazer. Até quando? Quantos Simon Leviev há a solta por aí?


[1] https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/noticias/2022/janeiro/turma-mantem-indenizacao-a-vitima-de-estelionato-sentimental

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