
Arce, Stone, Afya e XP são companhias brasileiras que optaram por abrir o capital nos Estados Unidos. Dentre as justificativas para não acessar o mercado de capitais brasileiro aparece um motivo jurídico: manutenção do poder de controle com os fundadores mediante a utilização de ações com voto plural – o que o sistema jurídico brasileiro proíbe. Tal vedação está em processo de revisão legislativa, com grande probabilidade de cair nos próximos dias com a sanção presidencial da nova redação da Medida Provisória nº. 1.041/2021 (conhecida como “MP do Ambiente de Negócios”), já aprovada pelo Senado e pela Câmara dos Deputados.
A definição do mercado de listagem para a adoção de ação com voto plural não é uma questão exclusiva de empresas brasileiras. Em 2012, Manchester United optou por Nova Iorque e não por Singapura. Em 2014, Alibaba listou na NYSE, depois de Hong Kong ter negado o IPO fora do padrão “uma ação, um voto”. No mesmo ano, Chrysler-Fiat acessou o mercado de ações na Holanda em detrimento do mercado italiano.
Esse movimento dos emissores revelou uma competição regulatória para atrair ofertas iniciais (IPOs). Essa situação é diferente das reformas do final da década de 1990 e início dos anos 2000, período no qual os mercados competiam para sinalizar maior proteção aos investimentos. A competição regulatória em torno do voto plural segue com olhar predominantemente para os novos emissores. Nesse sentido, a Itália permitiu o voto plural. Hong Kong e Singapura passaram a aceitar ações com mais de um voto com algumas restrições.
Apesar de o sistema jurídico brasileiro vedar o voto plural no artigo 110 da Lei nº. 6.404/1976, não seguimos a regra “uma ação, um voto”. É possível a formação do poder de controle estável com diversos mecanismos, tais como: a participação minoritária no capital social com a emissão de ações preferenciais ou mesmo “super-preferenciais”, a utilização de estruturas piramidais, os acordos de acionistas e/ou as denominadas poison pills.
A despeito disso, tanto o Senado quanto a Câmara dos Deputados aprovaram, na última semana, a proposta de emenda nº 17 à Medida Provisória nº. 1.040/2021, que prevê a inclusão de dispositivos na Lei nº 6.404/1976 a fim de permitir o voto plural – matéria que não estava originalmente prevista na redação da MP. A medida, agora, segue para sanção presidencial.
Se sancionadas as novas normas, a Lei 6.404/1976 passa a permitir a criação de ações ordinárias com voto plural com uma série de limites e regras específicas. Uma das restrições previstas está na necessidade de observar a limitação de até dez votos por ação e também no prazo de vigência de até sete anos, prorrogáveis por igual período, tanto em companhias fechadas quanto em companhias abertas. Em empresas listadas, a emissão de ações com voto plural deve ocorrer antes da negociação de ações e valores mobiliários em mercado organizado. Há várias outras normas aplicáveis a esta nova classe de ação ordinária que merecem uma análise cuidadosa em um texto futuro para a nossa coluna.
Fato é que com a permissão de ações com voto plural, o sistema jurídico brasileiro passa a admitir mais uma forma de concentração de poder nas mãos de quem não é titular da maioria do capital social da companhia. Este tipo de estrutura de capital tem especial relevância em alguns setores como os de tecnologia, moda e mídia.
Esse movimento, contudo, merece reflexão. Além de ser possível questionar a adoção de tal instrumento via medida provisória (sem ter havido um amplo debate sobre suas vantagens, desvantagens e justificativas de suas disposições), sob o ponto de vista teórico, a principal crítica ao voto plural encontra fundamentos econômicos na teoria da agência. Seriam altos os custos de agência para incentivar o titular das ações com voto plural a tomar decisões no interesse da companhia e não para obter benefícios particulares. Aqui estão em jogo as já bem conhecidas situações de conflito de interesses e abuso do poder de controle.
Para enfrentar o argumento econômico contrário à adoção do voto plural e pensar a sua adequação ao mercado brasileiro, a pergunta que segue é se são efetivas as regras que limitam o poder de controle e a atuação em conflito de interesses.
Em relação aos instrumentos jurídicos de efetiva proteção dos investidores e forte mitigação dos abusos no exercício deste poder concentrado, seria preciso termos um sistema de enforcement eficaz – capaz de inibir eventuais atuações do acionista com controle concentrado – bem como nos aproximarmos dos benefícios mencionados pelos defensores desta forma de capitalização das empresas em outros mercados. Em suma, teríamos que ter um forte controle, ex ante e ex post, das potenciais situações de conflito de interesses pelo regulador, pelo Poder Judiciário ou em arbitragem.
No âmbito da Comissão de Valores Mobiliários, a variação de interpretações sobre o conflito de interesses – formal ou substancial – gera incertezas sobre a possibilidade de um controle ex ante de situações em conflito. Por outro lado, na via punitiva, talvez a aplicação da nova dosimetria possa ser capaz de sinalizar as condutas reprováveis em relação ao abuso do poder de controle e conflito de interesses, existindo ainda a necessidade de jurisprudência firme para dar os contornos concretos dos conceitos jurídicos previstos em lei.
Na via litigiosa, os desafios já são bem conhecidos. No Judiciário, o tempo longo para uma decisão final, eventual falta de especialização e ausência de conjunto robusto de decisões que promovam segurança jurídica colocam em dúvida se a jurisdição estatal seria a esfera para se apostar no respeito aos limites do poder de controle. Em arbitragem, a questão está no custo, em especial se não houver dano direto envolvido. A isso se acrescenta que os resultados e efeitos da decisão arbitral também são desconhecidos, tendo em vista a confidencialidade.
Juntando as incertezas sobre o controle de conflito de interesses e abuso do poder de controle, demora e falta de especialidade na prestação jurisdicional estatal ou custo de procedimentos arbitrais e opacidade de decisões, no mínimo, coloca-se em xeque a aptidão do nosso sistema jurídico em inibir atuações abusivas de uma nova modalidade de controle concentrado em uma atuação ex post.
Diante dessa situação, poderia aparecer a tradicional resposta de que há sempre a possibilidade de os acionistas que não estiverem satisfeitos com a gestão ou decisões dos controladores alienarem suas ações no mercado. Contudo, sobre a opção de desinvestimento, vale lembrar que historicamente o Brasil enfrenta problemas com falta de liquidez de ações de muitas companhias.
Em conclusão, seja pela dúvida sobre o nosso sistema de enforcement, seja pela baixa liquidez no nosso mercado acionário, é provável que a adoção do voto plural não nos colocará em igualdade de competição com mercados mais robustos. Trazer o voto plural para o nosso mercado exige não só uma comparação de utilização de instrumentos de captações, mas também atenção às dúvidas sobre a capacidade do nosso sistema em impor limites aos abusos no exercício do poder de controle e em situações de conflito de interesses.