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direito dos grupos vulneráveis

Princípio do juízo imediato e medidas protetivas de urgência

Mais um importante avanço promovido pelo STJ no combate à violência contra a mulher

Thimotie Aragon Heemann
07/08/2023|05:00
juízo imediato
Crédito: Unsplash

Introduzido no ordenamento jurídico brasileiro com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, o princípio do juízo imediato encontra-se positivado nos incisos I e II do artigo 147 do ECA[1], bem como no art. 80 do Estatuto da Pessoa Idosa[2]. Em breve síntese, a referida norma estabelece que a competência para apreciar e julgar medidas, ações e procedimentos que tutelam interesses, direitos e garantias de pessoas vulneráveis é determinado pelo foro do domicílio da pessoa vulnerável e/ou seu de seu responsável.[3] Trata-se, conforme se verá adiante, de um princípio geral do Direito dos Grupos Vulneráveis.

Embora o princípio do juízo imediato esteja atrelado ao tema da competência territorial, este ostenta natureza de competência absoluta, materializando norma cogente, que não admite prorrogação.[4] Logo, pode ser conhecido a qualquer momento, seja a pedido das partes ou ex officio pelo magistrado.

Em termos práticos, o princípio do juízo imediato afasta a regra da perpetuatio jurisdictionis prevista no art. 43 do Código de Processo Civil[5], em prol do oferecimento de uma resposta jurisdicional mais célere, eficaz e protetiva às pessoas em situação de vulnerabilidade. Permite-se a modificação da competência para o juízo que possuí a maior possibilidade de interação com a parte vulnerável em razão de sua presença.

Pois bem. No dia 8 de fevereiro deste ano, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu – acertadamente, na opinião deste autor –, de forma inédita, e mediante uma interpretação sistemática e permeada por um diálogo de fontes, a aplicação do princípio do juízo imediato também às mulheres em situação de violência doméstica quando da apreciação dos pedidos de medidas protetivas de urgência (MPUs).[6]

Segundo o Tribunal da Cidadania, a norma de abertura (ou remissiva) apta a permitir uma fertilização cruzada entre Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto da Pessoa Idosa e Lei Maria da Penha, consistiria justamente no art. 13 desta última (“Ao processo, ao julgamento e à execução das causas cíveis e criminais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher aplicar-se-ão as normas dos Códigos de Processo Penal e Processo Civil e da legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso que não conflitarem com o estabelecido nesta Lei”), fazendo nascer o que o STJ denominou de “microssistema de vítimas vulneráveis”.[7]

Este novo entendimento fortalecerá substancialmente o combate à violência doméstica e familiar contra a mulher em terras brasileiras, já que a aplicação do princípio do juízo imediato às medidas protetivas de urgências resultará em uma série de consequências positivas – e protetivas – às mulheres em situação de violência doméstica. Vejamos cada uma delas.

Facilitação do acesso à justiça às mulheres em situação de violência doméstica

Aplicar o princípio do juízo imediato e fixar a competência do juízo do domicílio da mulher em situação de violência doméstica como locus adequado para o requerimento de medidas protetivas de urgência significa fomentar a concretização do direito fundamental de acesso à justiça.

Não é incomum que mulheres e meninas em situação de violência doméstica possuam dificuldade para romper o ciclo de violência e levar ao conhecimento do Estado fatos capazes de embasar um requerimento de medidas protetivas de urgência. Deste modo, é dever do Estado tornar o acesso à justiça das mulheres e meninas em situação de violência doméstica absolutamente livre e desembaraçado, desconstituindo qualquer óbice que possa obstaculizar – ainda mais – um difícil rompimento do ciclo de violência. Vejamos um exemplo de ordem prática.

Suponhamos que “A” (mulher em situação de violência doméstica) seja casada com “B” (homem autor de violência doméstica), e que ambos residam na cidade de São Paulo/SP. “A” vem sofrendo uma série de ameaças ao longo dos últimos três meses, porém, em razão de estar imersa em um ciclo de violência, não leva os fatos criminosos ao conhecimento da autoridade policial responsável. “B” recebe uma proposta para trabalhar em Porto Alegre/RS, coincidentemente, terra natal de “A”. O casal passa a residir em Porto Alegre/RS, fixando domicílio na capital gaúcha. As ameaças por parte de “B” cessam. Porém, passados quinze dias da mudança para o Rio Grande do Sul, “A”, após ser encorajada por parentes, se dirige até a Delegacia da Mulher de Porto Alegre, narra as ameaças sofridas em São Paulo/PR e solicita medidas protetivas de urgência. As medidas protetivas de urgência só poderão ser analisadas pela justiça gaúcha, por força da aplicação do princípio do juízo imediato.

É nítido, portanto, o avanço promovido pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria de acesso à justiça às mulheres e meninas em situação de violência doméstica e familiar.

As medidas protetivas de urgência passarão a acompanhar a vítima em eventuais mudanças de domicílio

A gravitação jurídica[8] entre as medidas de protetivas de urgência e o domicílio da mulher consiste em um dos efeitos clássicos do princípio do juízo imediato, e que ganha contornos ainda mais importantes quando aplicado em matéria de combate à violência contra a mulher. Havendo mudança de domicílio por parte da mulher em situação de violência doméstica, as medidas protetivas de urgência deverão ser declinadas para o Comarca do novo domicílio, tal como ocorre em relação aos adolescentes e idosos e suas respectivas medidas de proteção.

A mudança de domicílio por parte de mulheres em situação de violência doméstica é – infelizmente – característica verificada com relativa frequência no sistema de justiça. Isso, porque muitas mulheres, mesmo após o deferimento das medidas protetivas de urgência requeridas, se veem obrigadas a deixar seu domicílio de origem e iniciar um novo capítulo de suas vidas em cidade diversa do agressor, tamanho é o medo/trauma internalizado pelo agressor.

Nesse sentido, nada mais funcional e protetivo às mulheres do que os autos de medidas protetivas de urgência em vigência sempre serem declinados ao juízo do novo domicílio da mulher. Não haveria sentido, por exemplo, uma mulher ter de voltar ao local do seu antigo domicílio – e provável local da violência anteriormente sofrida – para solicitar a renovação das medidas protetivas de urgência anteriormente deferidas. Pelo contrário, além de praticamente inviabilizar uma rápida prestação jurisdicional em favor da mulher em situação de violência, principal objetivo idealizado pelo sistema de medidas protetivas de urgência inaugurado pela Lei Maria da Penha, a referida exigência de retornar ao local dos fatos ainda traria consigo uma possível consequência deletéria: a revivência do trauma. Ainda, dois últimos detalhe de ordem prática não podem passar em branco.

Em abril deste ano, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o AgRg no REsp 1.775.341/SP, cristalizou um dos entendimentos mais importantes dos últimos dez anos em matéria de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. O Tribunal entendeu pela necessidade da oitiva da mulher em situação de violência doméstica como conditio sine qua non para a revogação das medidas protetivas de urgência anteriormente deferidas.[9] Esse entendimento, contudo, deve ser aplicado em conjunto com o outro precedente do STJ – e ponto central deste texto –, que reconheceu a aplicação do princípio do juízo imediato às medidas protetivas de urgência.[10]

Suponhamos, agora, que uma mulher em situação de violência doméstica e familiar requeira medidas protetivas de urgência em São Luís/MA, e as medidas sejam deferidas pelo juízo pelo prazo de 180 (cento e oitenta dias). Perto do escoamento do prazo e em observância ao novo entendimento do Superior Tribunal de Justiça, um dos oficiais de justiça da Comarca de São Luís se dirige até o endereço da vítima de violência com o objetivo de verificar – e posteriormente certificar – se existe o interesse na prorrogação das MPUs. Chegando ao local, o oficial de justiça é avisado por vizinhos que a vítima se mudou para a cidade de Imperatriz/MA, e certifica a informação nos autos. Neste caso, por força da aplicação do princípio do juízo imediato, a solução jurídica correta a ser adotada pelo juízo de São Luís/MA não será a revogação das medidas e tampouco a prorrogação, mas o declínio de competência dos autos de medidas protetivas de urgência para a Comarca de Imperatriz/MA, novo endereço da mulher em situação de violência doméstica.

Por fim, uma última – e não menos importante – informação diz respeito à competência criminal. A aplicação do princípio do juízo imediato no âmbito das medidas protetivas de urgência não possui o condão de modificar a competência de eventual ação penal existente pelos mesmos fatos. Esta última seguirá as regras de competência criminal previstas no Código de Processo Penal, conforme disclaimer realizado pelo próprio STJ.[11]

Maximização da efetividade das medidas protetivas de urgência requeridas

A concretização da aplicação do princípio do juízo imediato resulta, ainda, em uma maximização dos fins colimados pelas medidas protetivas de urgência, especialmente em matéria de acolhimento e proteção de mulheres e meninas vítimas de violência doméstica e familiar. Explico.

Reconhecendo-se a competência do juízo do domicílio da vítima para apreciar o pedido das MPUs, haverá necessariamente um estreitamento de laços e um encurtamento do caminho entre a mulher vítima e o Estado. Certamente, é o juízo imediato que possui as melhores condições de promover a proteção da mulher vítima de violência doméstica de forma célere e eficaz, e ainda – se for o caso –, encaminhá-la à rede de proteção local (v.g.: serviços prestados pelo próprio Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar, serviços de atendimento às mulheres prestados pelo município). A proximidade do magistrado com a rede de proteção local facilitará a customização da tutela jurisdicional às mulheres vítimas de violência, atendendo as peculiaridades do caso concreto.

Haverá, ainda, maior efetividade, não apenas para o requerimento e análise das medidas protetivas de urgência, mas também para a busca de orientações e esclarecimentos pela vítima, bem como para a comunicação de eventuais descumprimentos das medidas pelo agressor. Tão importante quanto o deferimento das medidas protetivas de urgência de forma célere, é a higidez da decisão que as decretou. Mulheres e meninas em situação de violência doméstica necessitam de um caminho livre e desembaraçado para comunicar eventuais descumprimentos das MPUs, e a aplicação do princípio do juízo imediato vai justamente ao encontro desse propósito.

Nesse sentido, suponhamos desta vez que “A”, mulher vítima de violência doméstica, tenha requerido medidas protetivas de urgência perante o juízo da Comarca de Curitiba/PR, e estas são deferidas, incluindo a proibição de contato entre noticiante e noticiado. Posteriormente, “A” se muda para a cidade de Maringá/PR, e “B”, homem autor de violência doméstica e inconformado com a mudança de “A”, passa a lhe enviar mensagens de cunho intimidatório. Caso não fosse aplicado o princípio do juízo imediato ao caso narrado, as MPUs estariam tramitando perante uma das varas dos Juizados de Violência Doméstica de Curitiba/PR, sendo este o juízo a ser comunicado em razão dos descumprimentos das medidas protetivas ocasionados por “B”. Com a aplicação da norma principiológica em estudo, as MPUs já estarão no juízo do domicílio da vítima, facilitando, inclusive, a comunicação de eventuais descumprimentos.

Percebam, queridos leitores, a importância do novo entendimento fixado pelo Superior Tribunal de Justiça. Trata-se, na modesta opinião deste articulista, de uma das principais decisões do Tribunal da Cidadania em matéria de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher.

Espero que tenham gostado.

Até a próxima.


[1] Art. 147. A competência será determinada: Art. 147. A competência será determinada: I – pelo domicílio dos pais ou responsável; II – pelo lugar onde se encontre a criança ou adolescente, à falta dos pais ou responsável. Além do art. 147 do ECA, a Súmula 383 do STJ também materializa o ethos do princípio do juízo imediato: “A competência para processar e julgar as ações conexas de interesse de menor é, em princípio, do foro do domicílio do detentor de sua guarda”.

[2] Art. 80. As ações previstas neste Capítulo serão propostas no foro do domicílio da pessoa idosa, cujo juízo terá competência absoluta para processar a causa, ressalvadas as competências da Justiça Federal e a competência originária dos Tribunais Superiores.

[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. CC 111.130/SC. Rel. Min. Nancy Andrighi, 2ª Seção, j. em 8/9/2010.

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. CC 119.318/DF. Rel. Min. Nancy Andrighi, 2ª Seção, j. em 25/4/2012.

[5] Art. 43 Determina-se a competência no momento do registro ou da distribuição da petição inicial, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem órgão judiciário ou alterarem a competência absoluta.

[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.  CC 190.666/MG. Rel. Min. Laurita Vaz, 3ª Seção, j. em 8/2/2023

[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. CC 190.666/MG. Rel. Min. Laurita Vaz, 3ª Seção, j. em 08/02/2023.

[8] A expressão “gravitação jurídica” utilizada por este autor consiste em uma analogia ao princípio da gravitação jurídica, norma principiológica com matriz de origem no Código Civil, embora aplicada também em outros ramos do direito. Pelo princípio da gravitação jurídica, o bem acessório segue a sorte do principal (acessorium sequeatur principale). Transportando o seu ethos para o combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, porém interpretando-o com um viés existencial, as medidas protetivas de urgência acompanharão a mulher em situação de violência doméstica e familiar em eventuais mudanças de domicílio. Para um aprofundamento sobre o princípio da gravitação jurídica, ver: ROSENVALD, Nelson e DE FARIAS, Cristiano Chaves. Curso de Direito Civil. Parte Geral e LINDB. v. 1. 21. Ed. Salvador: JusPodivm, 2023. p. 613; TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 13. ed. Rio de Janeiro: Método, 2023. p. 192.

[9] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.  AgRg no REsp n. 1.775.341/SP. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, 3ª Seção, j. em 12/04/2023

[10] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.  CC n. 190.666/MG. Rel. Min. Laurita Vaz, 3ª Seção, j. em 08/02/2023

[11] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça.  CC n. 190.666/MG. Rel. Min. Laurita Vaz, 3ª Seção, j. em 08/02/2023logo-jota