Tentou-se demonstrar até aqui que a temática da vulnerabilidade atrai uma característica especial quando utilizada no contexto dos Estados Democráticos (princípio progressivo), orientando um agir constitucional voltado à superação desta condição de risco ou fragilidade.
Viu-se, ademais, que a proteção da vulnerabilidade não encontra amparo suficiente nas políticas redistributivas (fundamentadas no direito à igualdade), sendo necessário considerar, igualmente, políticas inclusivas frente aos arranjos sociais (fundamentadas no direito à diferença).
Falta demonstrar em que medida a temática do reconhecimento, categoria científica objeto de profundos debates interdisciplinares na pós-modernidade,[1] se associa à proteção da vulnerabilidade.
Para responder a essas perguntas complexas, é preciso fazer um breve mergulho nas teorias que procuraram explicar a dinâmica do reconhecimento. O tema, longe de ser simples, exige uma reflexão profunda acerca da intersubjetividade e como ela caracteriza a experiência humana.
Na filosofia, paira certo consenso que os estudos da juventude de Hegel marcam as primeiras meditações envolvendo a temática do reconhecimento. Na obra “A fenomenologia do espírito”, é possível identificar a famosa alegoria entre o “senhor e o escravo”, escrito que retoma o caráter dialógico da construção da autoestima e da identidade.
Para o autor, a subjetividade (consciência-de-si) sempre se manifestaria em uma perspectiva interacional (intersubjetividade), só se podendo cogitar da própria identidade a partir de relações mantidas em alteridade. Nesta ótica, não existiria senhor sem escravo, nem escravo sem senhor. Seria, portanto, a partir da diferença com o outro que se edificaria a própria noção de subjetividade.
Embora tenha se debruçado sobre o reconhecimento ainda na juventude de Jena,[2] as reflexões de Hegel serviram de instigante ponto de partida para que autores mais modernos pudessem trabalhar as relações humanas sob o enfoque da intersubjetividade.
É com base nas premissas hegelianas, por exemplo, que Charles Taylor[3] insere a tônica do reconhecimento no centro das discussões políticas do multiculturalismo, revisitando o ideal de identidade prescrito na modernidade, que passa da noção de honra (formadora das hierarquias sociais) para a noção de dignidade (condição universal atribuída ao homem).
Taylor estabelece, assim, dois principais níveis de desenvolvimento do reconhecimento: na esfera íntima, em que a formação da identidade (self) decorreria de um diálogo contínuo e da luta com outros significativos; na esfera pública, em que uma política de igual reconhecimento caminharia junto a uma política de valorização da diferença, considerando a autenticidade de culturas não hegemônicas.[4]
Em sua antropologia filosófica, o autor procura ainda demonstrar a conexão existente entre o reconhecimento e a identidade política, desvendando que o não-reconhecimento do indivíduo revelaria uma forma de opressão criadora de cidadãos de segunda classe.[5] Justamente por isso, defende que políticas de diferença sejam incorporadas como metas coletivas de vida boa, ao lado dos direitos civis e políticos.
Outro filósofo contemporâneo que trabalhou a temática do reconhecimento foi Jürgen Habermas. Muito embora o assunto não integre o centro de sua teoria político-filosófica, Habermas chegou a debater o reconhecimento a partir de uma visão procedimental,[6] discordando de Taylor ao compreender que o processo democrático asseguraria efetivo respaldo às diferenças culturais.
Segundo Habermas, a interpretação de Taylor a respeito do sistema de direitos não abrange um adequado conceito de autonomia individual, afinal diferentes grupos submetidos a normas hegemônicas também compartilhariam a natureza de coautores do sistema jurídico a que submetidos. Haveria, nesse sentido, uma “equiprocedência das autonomias públicas e privadas”.[7]
Interessante observar que Habermas defende uma espécie de lealdade por parte do cidadão em relação ao Estado.[8] Para ele, toda ordem jurídica seria também expressão de uma forma de vida em particular e não apenas o espelhamento do teor universal dos direitos fundamentais. Haveria, portanto, uma concordância implícita ou explícita por parte do cidadão em dar continuidade a um projeto constitucional já existente, atendo-se à forma de vida e identidade cultural de outro país.
Apesar de acertada a crítica de Habermas, no sentido de que os indivíduos devem guardar sua liberdade de emancipação em relação à própria cultura, o pensamento do autor alemão parece não dialogar suficientemente com a gramática dos conflitos humanos.
Ao pressupor a existência de consensos livres na esfera pública, Habermas desconsidera as evidentes relações de poder presentes na esfera da ação comunicativa, prescindindo da dinâmica conflituosa em que se desenvolveriam as relações sociais. É possível perceber, portanto, um perigoso déficit sociológico na teoria habermasiana.
Este pano de fundo influenciou Axel Honneth a desenvolver uma teoria sociológica do reconhecimento.[9] Pertencente à terceira geração de pensadores da Escola de Frankfurt, o autor compreende que o processo de individuação do ser humano só pode se desenvolver intersubjetivamente, incidindo sobre um pano de fundo cultural no qual se reproduziriam lutas morais por reconhecimento.[10]
Segundo Honneth, a busca por reconhecimento se desenvolveria de três principais formas: a) pelo amor; b) pelo direito; c) pela estima social.[11]
Por amor, o autor compreende todas as relações primárias que refletem ligações emotivas (ex: parceiros sexuais, família, amizades duradouras). Ele representaria o “ser-si-mesmo no outro”, dado depender a autoconfiança individual da carência emotiva e da dedicação mantida em alteridade.
Já no plano do direito, o autor assume que só faria sentido pensar em direitos subjetivos na medida em que estivessem previstas obrigações morais em face do outro. Logo, seria por merecer o respeito alheio que as pessoas desenvolveriam a consciência de autorrespeito.
Por fim, em relação à estima social (plano da solidariedade), restariam valorizadas as diferenças pessoais de cada ser humano, elemento compartilhado intersubjetivamente na esfera do prestígio social. Logo, quanto maior o grau de cooperação comunitária para a implementação de valores comuns, maior seria o ganho em termos de estima individual.[12]
É nessa última esfera (estima social), que o autor advoga a existência de lutas por reconhecimento. Assim, para além da dependência alheia (esfera intersubjetiva), a construção da estima social variaria conforme o grau de pluralização de valores socialmente definidos. Isso moveria conflitos por reconhecimento entre diferentes grupos, o que atrairia a atenção pública e exerceria uma força simbólica sobre o panorama cultural hegemônico.
Mais importante que o desenvolvimento das três formas de reconhecimento, foi a contribuição de Honneth acerca do reconhecimento recusado na interação. Esta forma de desrespeito representaria uma injustiça não apenas por infligir danos à liberdade de ação alheia, mas, principalmente, por ferir as pessoas em uma compreensão positiva de si mesmas. Estes sentimentos negativos seriam, portanto, o combustível responsável pelas manifestações sociais, impulsionando as lutas identitárias.
Procurando oferecer um contraponto à teoria sociológica de Honneth, Nancy Fraser compreende o problema do não-reconhecimento a partir de sua dimensão política, isto é, com foco nas instituições, práticas sociais e paridade de participação.
Ao refutar a ideia de monismo econômico nas lutas sociais, Fraser compreende a existência de uma dualidade de exigências por justiça na pós-modernidade,[13] estando a primeira (redistribuição) ligada a reivindicações por igual distribuição de bens e recursos, e a segunda (reconhecimento) voltada a assegurar a inclusão de grupos excluídos.
Diferentemente da justiça redistributiva, o reconhecimento engendraria medidas de combate à injustiça cultural, visando a transformação dos padrões sociais de dominação simbólica. Em suma, a valorização da diferença e o reconhecimento identitário centralizariam as reinvindicações por justiça pós-modernas.
Outra grande contribuição de Fraser foi a introdução da noção de legitimidade nas reivindicações por reconhecimento. Ao afastar-se da noção de autorrealização subjetiva do indivíduo, a autora traz, para o plano moral, o fato de que nem toda demanda por reconhecimento é legítima no plano político-social, como, e.g., as reinvindicações de grupos antissemitas, racistas, homofóbicos etc. Esse viés normativo impede que tais discursos sejam incorporados como fonte de realização da autoestima na esfera pública.
O debate entre os autores até aqui apresentados revela-se bastante profícuo para o estudo jurídico da vulnerabilidade.
É possível concluir, inicialmente, que o reconhecimento possui tanto uma dimensão individual, que atinge a esfera subjetiva da pessoa, quanto uma dimensão intersubjetiva, que alcança a sua esfera social, ética e jurídica.
Dada à indispensabilidade da intersubjetividade para a experiência humana (Hegel), ambas essas variantes integram a noção contemporânea de dignidade da pessoa.[14]
De um lado, temos a percepção de cada um sobre a sua própria dignidade, que se revela pela autoestima e autoconsciência; de outro, há uma percepção exterior, praticada na alteridade, a qual revela a representação do outro, alcançando a dimensão do reconhecimento, reciprocidade e respeito.
Uma existência digna só ocorre quando ambas as dimensões estão equilibradas: tanto a pessoa tem condições de desenvolver uma autoestima digna de si mesma, quanto é passível de ser reconhecida dignamente na interação, destinando igual respeito aos outros.
Daí porque o constitucionalismo contemporâneo invoca a importância da proteção jurídica dirigida ao reconhecimento de grupos vulneráveis, evitando o desrespeito à dignidade, derivado da marginalização, da invisibilidade e da desvalorização de identidades.
O tema foi objeto de julgamento na Suprema Corte do Canadá, que reconheceu a importância da proteção do reconhecimento a partir da noção de dignidade (Law vs. Canadá).[15]
Doravante, com Taylor e Honneth é possível concluir que a experiência do não-reconhecimento atrai consequências drásticas não apenas à imagem ou à liberdade das pessoas, mas à própria concepção de autoestima compartilhada, introjetando nas pessoas vulneráveis um estigma degradante da autoconsciência.
Longe de um “mimimi” ou de uma invenção ideológica a respeito do “politicamente correto”, as lutas identitárias combatem justamente as experiências compartilhadas na interação por grupos que sofrem situações comuns de desrespeito, revelando uma exigência legítima de busca por reconhecimento e combate à discriminação contra formas não hegemônicas de vida.
No Brasil, a discriminação e a violência praticada contra pessoas trans é ilustrativa dos reflexos negativos oriundos dessa desvalorização identitária.
Por fim, a partir do pensamento de Fraser, é possível verificar que o não reconhecimento proporciona uma relevante discussão a respeito das práticas, normas e instituições que limitam a oportunidade de igual participação de indivíduos vulneráveis na interação, impulsionando um repensar de ambiências, estruturas e práticas a partir de políticas de inclusão.
Essa é a base não apenas para se compreender as ações afirmativas, mas também para se entender o combate a violências e discriminações enraizadas nas burocracias e no próprio modo de ser das instituições, como são exemplos o racismo estrutural e a violência na atenção obstétrica.
Em suma, ao se assumir a natureza intersubjetiva da experiência humana e o papel fundamental desempenhado pelo reconhecimento para uma vida digna, valoriza-se um igual respeito à identidade,[16] favorecendo as diferentes formas de vida e o combate à marginalização de indivíduos e grupos vulneráveis.
[1] Para uma visão geral sobre estas diferentes percepções acerca do reconhecimento, conferir: MATTOS, Patrícia de Castro. A sociologia política do reconhecimento. As contribuições de Charles Taylor, Axel Honneth e Nancy Fraser. São Paulo: Annablume, 2006; SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana – conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Fórum, 2016; AZEVEDO, Júlio Camargo de. Vulnerabilidade: critério para adequação procedimental – a adaptação do procedimento como garantia ao acesso à justiça de sujeitos vulneráveis. Belo Horizonte: Editora CEI, 2021
[2] A “juventude de Jena” costuma ser apontada como o período dos primeiros trabalhos de Hegel, época em que lecionou na Universidade de Jena, na Alemanha (1801-1806).
[3] Sobre a temática do reconhecimento, conferir as seguintes obras do autor: TAYLOR, Charles. Argumentos filosóficos. São Paulo: Edições Loyola, 2000; TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1997.
[4] TAYLOR, Argumentos filosóficos…, op. cit., p. 251.
[5] Como assevera o autor: “negar reconhecimento pode ser uma forma de opressão”. TAYLOR, Argumentos filosóficos… op. cit., p. 289.
[6] HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro – estudos de teoria política. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p. 243 e 260.
[7] HABERMAS, A inclusão do outro…, op. cit., p. 242.
[8] HABERMAS, A inclusão do outro…, op. cit., p. 265.
[9] HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. Luiz Repa. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.
[10] HONNETH, Luta por reconhecimento…, op. cit., p. 156.
[11] HONNETH, Luta por reconhecimento…, op. cit., p. 159-211.
[12] HONNETH, Luta por reconhecimento…, op. cit., p. 159-211.
[13] FRASER, Nancy; HONNETH, Axel. Redistribution or recognition? A political philosophical exchange. New York: Verso, 2003.
[14] MOLINARO, Carlos Alberto. Dignidade, interculturalidade e direitos humanos e fundamentais – uma nova tecnologia? In: BERTOLDI, Márcia Rodrigues; GASTAL, Alexandre Fagundes; CARDOSO, Simone Tassinari (org.). Direitos Fundamentais e vulnerabilidade social: em homenagem ao professor Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 25. Também nesse sentido: SARMENTO, Dignidade da pessoa humana…, op. cit., p. 241-297.
[15] Suprema Corte do Canadá. Law vs. Canadá. Minister of Employment and Immigration. 1999. 1 SCR 497.
[16] SARMENTO, Dignidade da pessoa humana…, op. cit., p. 256.