Diante da ampla aceitação da tríade inicial de artigos da série “Dosimetria da pena em crimes contra as mulheres” pelos leitores desta coluna, seguiremos nesta semana com o estudo da aplicação da reprimenda penal pelos membros do Poder Judiciário em duas das formas aviltantes de violações de direitos humanos de meninas e mulheres: os crimes contra a dignidade sexual e o delito de feminicídio.
Assim como em outros tipos penais cometidos em contexto de violência contra a mulher, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem desempenhando importante papel na construção de uma jurisprudência que dá concretude à aplicação da perspectiva de gênero no momento de realização da dosimetria da pena pelo(a) magistrado(a), sem se descurar do princípio constitucional da individualização da pena (artigo 5º, inciso XLVI da Constituição Federal de 1988).
Antes de adentrarmos às situações específicas a serem analisadas por este articulista, um último disclaimer há de ser feito: se você não leu as partes um, dois e três desta pesquisa, recomendo – antes de avançar na leitura do texto de hoje – a leitura dos referidos textos publicados aqui nesta coluna.
Feminicídio cometido contra meninas
A tenra idade da vítima em crimes contra a vida é, ao menos desde o ano de 2020, um motivo apto a autorizar a exasperação da pena segundo o Superior Tribunal de Justiça[1], e o fundamento também não é difícil de ser visualizado: crianças e adolescentes possuem uma alta expectativa de vida.
Pois bem. Em uma pesquisa recente realizada por este articulista, foi possível constatar que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem estendendo a referida interpretação também aos casos de feminicídio praticados contra meninas[2]. Até aqui, nada mais lógico do que a extensão do entendimento geral do STJ também aos casos de feminicídio contra meninas.
Ocorre que, com o advento da Lei 14.344/2022 (Lei Henry Borel), promulgada em 24 de maio deste ano, foi introduzida no Código Penal uma nova qualificadora ao crime de homicídio: quando praticado contra pessoa menor de 14 anos. Logo, uma indagação há de ser feita aos leitores desta coluna: o clássico entendimento do STJ que permite a exasperação da pena base quando o crime contra a vida – incluindo o feminicídio – é praticado contra vítima criança ou adolescente continuará a ser aplicado? A resposta é: depende.
Na opinião deste articulista, o intérprete deverá possuir como ponto de partida a idade da vítima. Se ela possuía menos de 14 anos, haverá a incidência da qualificadora introduzida pela Lei Henry Borel. Neste caso, não será possível a exasperação da pena base em razão da idade da vítima, e o motivo é simples: a qualificadora e a exasperação da pena base possuem como ethos a idade tenra da vítima. Assim, a aplicação em conjunto de ambas as situações jurídicas resultaria na violação do princípio do ne bis in idem. Por outro lado, se a vítima possuía entre 14 e 18 anos à época do fato, a possibilidade de exasperação da pena base continua plenamente possível. Em síntese: vítima menor de 14 anos; homicídio qualificado; vítima maior de 14 anos e menor de 18 anos: pena base exasperada pela idade tenra da vítima. Todo esse raciocínio também se aplica em casos de feminicídio cometido contra meninas.
Feminicídio, iter criminis e incidência da majorante prevista no artigo 121, §7º, inciso III do Código Penal
A Lei 13.771/2018 introduziu no Código Penal Brasileiro duas situações que majoram a pena de um terço até a metade quando o feminicídio é praticado: a) em contexto de descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e II do artigo 22 da Lei Maria da Penha; e b) quando praticado na presença física ou virtual de descendente ou ascendente da vítima. Em relação a esta última hipótese, questionamento interessante e de suma importância para o objeto deste estudo chegou até o Superior Tribunal de Justiça: é necessário que os descendentes presenciem todo o iter criminis para a incidência da majorante? A conclusão do Tribunal da Cidadania foi negativa, no sentido de ser desnecessária, para a incidência da majorante, que os descendentes presenciem todas as fases do iter criminis[3]. Parece-nos razoável e até mesmo lógico o desfecho da questão proposto pelo STJ, afinal, exigir que os descendentes de vítimas de feminicídios – na grande maioria dos casos crianças e adolescentes – presenciem todo o caminho criminoso percorrido pelo autor do delito esvaziaria, ao fim e ao cabo, a própria incidência da majorante.
Ainda sobre este tema, vale lembrar que, recentemente, o Superior Tribunal de Justiça passou a autorizar a exasperação da pena base em infrações penais cometidas em contexto de violência contra a mulher na presença dos filhos menores de idade da vítima[4] (v. g.: ameaças, lesões corporais, vias de fato etc.), ressalvados os casos de feminicídio, nos quais haverá a incidência isolada da majorante específica, sob pena de violação do princípio do ne bis in idem (artigo 14 do PIDCP).
Conjunção carnal não consentida (estupro ou estupro de vulnerável) e vítima virgem
Embora o crime de estupro – independentemente se cometido na forma ordinária ou contra vítima vulnerável – seja classificado como delito que pode ser praticado por e contra qualquer pessoa, a sua consumação mediante conjunção carnal não consentida, uma das formas mais corriqueiras – e aviltantes – de violência sexual contra mulheres e meninas, possui uma especificidade: a vítima sempre será mulher.
Nessa perspectiva, a despeito de toda e qualquer forma de estupro configurar grave violação de direitos humanos, caracterizando, inclusive, modalidade de tortura para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no âmbito internacional[5], o STJ vem entendendo que, em casos nos quais a vítima era virgem à época dos fatos, justifica a exasperação da pena base a partir do vetor “consequências do crime”[6].
Concordamos na íntegra com o posicionamento do Tribunal da Cidadania nesse caso. Parece-nos lógico concatenar um raciocínio no sentido de que a prática do crime de estupro (ou estupro de vulnerável), mediante conjunção carnal não consentida e envolvendo vítima virgem (na grande maioria dos casos, meninas com terna idade), extrapola – e muito – as elementares dos tipos penais encartados nos artigos 213 e 217-A do Código Penal. Nesse sentido, a posição do STJ, nessa situação específica, materializa nova expressão da perspectiva de gênero em crimes cometidos contra mulheres.
É possível notar, portanto – e ao longo desta série de quatro artigos sobre a temática da dosimetria da pena em crimes contra mulheres –, a análise de diversas situações que ilustram como os tribunais – em especial, o STJ – vêm delineando contornos e conferindo especialidade ao momento de aplicação da pena pelo Poder Judiciário em crimes contra mulheres, mediante a aplicação do ethos da perspectiva de gênero, ainda que sem mencioná-la expressamente.
Espero que tenham gostado! Até a próxima!
[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp n. 1.851.435/PA. Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Terceira Seção, j. 12/8/2020, DJe de 21/9/2020.
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC n. 704.196/SP. Rel. Min. Laurita Vaz, Sexta Turma, j. 14/6/2022, DJe de 21/6/2022.
[3] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no RHC 189.088. Primeira Turma, j. 03.08.2021
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AREsp 1.964.508-MS. Rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 29/03/2022.
[5] CORTE IDH. Caso do Presídio Miguel Castro Castro, par. 448 a 450; Caso Velásquez Paiz e outros; Caso Cosme Rosa e Genoveva e outros (Favela Nova Brasília) vs. Brasil; etc.