
No último dia 16, a Comissão de Juristas criada pelo Ato do presidente do Senado Federal (ATS) 3/2022 – para a atualização da Lei 1.079/1950, que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento – entregou ao presidente do Senado o anteprojeto elaborado após oito meses de funcionamento.
Como sabido, sob a presidência do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, participaram dessa comissão: Fabiane Pereira de Oliveira, o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogério Schietti, o ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) Antonio Anastasia, Heleno Taveira Torres, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, Luiz Fernando Bandeira de Mello Filho, Fabiano Augusto Martins Silveira, Maurício de Oliveira Campos Júnior, Carlos Eduardo Frazão do Amaral, Gregório Assagra de Almeida e Pierpaolo Cruz Bottini. São 12 notáveis, grandes e ilustres juristas.
A coluna de hoje tecerá alguns comentários preliminares sobre o anteprojeto apresentado, registrando que nada do que será afirmado adiante é uma crítica pessoal ou desmerece o trabalho dos membros da comissão. Quem acompanhou a comissão sabe do intuito legítimo de aprimorar a legislação e dos esforços envidados.
Da leitura do documento, observa-se uma clara preocupação em conferir tipos mais claros, menos vagos, com a redação separada por autoridades. Além de a proposta contemplar a jurisprudência do STF, apresenta um texto que simplifica o procedimento, com pretensão de funcionar como norma geral.
O rol dos sujeitos à lei está sendo ampliado. O artigo 2º do anteprojeto propõe incluir o vice-presidente e os ministros do TCU, por exemplo, que não eram citados na Lei 1.079/1950, embora estivessem mencionados na CF (o primeiro no artigo 52, inciso I, e os últimos no artigo 102, inciso I, alínea c).
Foram acrescentados os crimes de responsabilidade que podem ser cometidos especificamente pelos Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica (no artigo 13, com destaque para o inciso III: “expressar-se por qualquer meio de comunicação a respeito de assuntos político-partidários ou tomar parte em manifestações dessa natureza”) e pelos membros do CNJ e do CNMP (artigo 18), que tampouco existiam na Lei 1.079/1950.
Corrigiu-se a menção aos magistrados (artigo 14) e membros do Ministério Público (artigo 17), já que a Lei 1.079/1950 se limitava a listar os crimes dos ministros do STF (artigo 39) e do PGR (artigos 40 e 40-A).
Os tipos também foram agrupados por assunto. Aqui, uma das principais novidades está na parte que trata dos crimes contra as instituições democráticas, a segurança interna do país e o livre exercício dos poderes constitucionais. O artigo 7º traz novas condutas típicas em relação ao atual artigo 6º da Lei 1.079/1950. Merece destaque, por exemplo, o inciso V, pelo qual constitui crime de responsabilidade “divulgar, direta ou indiretamente, por qualquer meio, fatos sabidamente inverídicos, com o fim de deslegitimar as instituições democráticas”.
Por mais que a expressão “fatos sabidamente inverídicos” já tenha sido incorporada na legislação (por exemplo, Código Eleitoral, artigo 323), e venha sendo utilizada em diversas decisões judiciais como sinônimo de fake news, seu problema é que não oferece padrões de definição claros e objetivos, abrindo margem para interpretações subjetivas sobre esse elemento do tipo.
Em uma comparação com a Lei 1.079/1950, a redação do anteprojeto de forma geral é mais abrangente, retirando o dolo específico ou especial motivação de agir de diversos tipos. Compare-se, por exemplo, o artigo 6º, 2, da Lei 1.079/1950, em face do artigo 7º, incisos II e III, do anteprojeto. As novas redações propostas são bem mais abarcantes que a atual. Sem prejuízo, o anteprojeto define que o crime de responsabilidade sujeito ao impeachment é exclusivamente doloso.
Entre os aperfeiçoamentos mais importantes, está a parte dedicada ao processo e julgamento, a partir do artigo 20.
O anteprojeto cuidou de prever os legitimados para oferecer a denúncia por crime de responsabilidade (artigo 26), adicionando a previsão expressa de que também podem fazê-lo: partido político com representação no Poder Legislativo, a OAB, entidade de classe ou organização sindical, de âmbito nacional ou estadual, conforme a autoridade denunciada, desde que legalmente constituída e em funcionamento há pelo menos um ano, sempre mediante autorização específica de seus órgãos deliberativos.
Entretanto, se hoje é permitido a qualquer cidadão denunciar o presidente da República ou ministro de Estado junto à Câmara dos Deputados (Lei 1.079/1950, artigo 14), agora o anteprojeto muda radicalmente a legitimidade dos cidadãos, passando a exigir que a petição preencha os requisitos da iniciativa legislativa popular federal, estadual ou distrital.
Ou seja, se até agora isso poderia ser feito individualmente, em breve será necessário reunir, no caso de pedido contra autoridade federal, por exemplo, a assinatura de no mínimo 1% do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco estados, com não menos de 0,3% dos eleitores de cada um deles (Lei 9.709/1998, artigo 13). Com se vê, se aprovada, a proposta tende a retirar o instrumento de impeachment do alcance de qualquer um do povo.
Por outro lado, andou bem o artigo 28, §1º, ao prever claramente que a denúncia não poderá ser recebida caso o denunciado, por qualquer motivo, tiver deixado definitivamente o cargo. O ponto é objeto de controvérsia nos Estados Unidos e a discussão se reacendeu quando do segundo pedido de impeachment contra o então presidente Donald Trump, já prestes a sair do cargo.
De um lado, estava a posição pela inconstitucionalidade de um impeachment contra um ex-presidente. De outro lado, havia quem defendesse a possibilidade de que o processo avançasse após o fim do mandato, como Lawrence H. Tribe. No caso de Trump, a dúvida continuou sem ser dirimida, pois o processo começou nos últimos dias de seu mandato, embora o julgamento no Senado tenha ocorrido quando já tinha deixado o cargo.
Seja como for, a redação do artigo 28, §1º não é clara sobre uma das controvérsias no último impeachment: a possibilidade ou não de a denúncia versar sobre fatos anteriores ao atual mandato, em caso de reeleição nos termos do artigo 14, §5º, da CF. Ademais, a redação é sobreinclusiva, pois veda a denúncia sobre fatos relacionados a cargo pretérito, no caso de nova posse da autoridade em cargo diverso (por exemplo, um ministro do STJ que se torna ministro do STF).
Um dos dispositivos mais importantes é o artigo 29 do anteprojeto, com o qual se pretende estabelecer que a denúncia seja apreciada no prazo de até 30 dias úteis. O presidente da Casa Legislativa competente poderia fazê-lo preliminarmente em decisão monocrática, desde que necessariamente motivada. O decurso do prazo em silêncio passaria a implicar indeferimento tácito, com o consequente arquivamento da denúncia (§1º).
Se aprovada, a previsão a um só tempo encerraria diversas polêmicas, como a da suposta falta de base normativa para a competência monocrática dos presidentes das Casas Legislativas para receber ou não as denúncias, a qual vinha sendo sustentada basicamente pelo entendimento jurisprudencial do STF, por exemplo, no MS 30.672-AgR.
Também poria fim à controvérsia tratada em coluna passada, quando se comentou sobre o pedido formulado no MS 38.034, cujos impetrantes pretendiam a aplicação analógica do prazo de 30 dias previsto no artigo 49 da Lei 9.784/1999 para que fosse suprida a suposta omissão ilegal por parte do presidente da Câmara dos Deputados na análise dos pedidos de impeachment contra o presidente da República.
Como sabido, a ministra Cármen Lúcia acabou negando seguimento ao writ, sob o argumento de que “O ato de resposta do Presidente da Câmara dos Deputados não é vinculado (verificação dos requisitos formais do requerimento) nem há de ser adotado necessariamente, menos ainda em algum prazo” (página 7). Decisão semelhante foi tomada nos MIs 7.358 e 7.362. Se a proposição for aprovada, a nova lógica mudaria o desfecho da ADPF 867, sobre o mesmo assunto, ainda pendente de julgamento.
A atribuição de efeitos jurídicos no caso de transcurso do prazo in albis cumpre um papel importante para que não se crie mais um prazo impróprio. A intenção louvável encontraria arrimo na necessidade de conferir celeridade ou duração razoável dos processos, nos termos do artigo 5º, inciso LXXVIII, da CF, bem como segurança jurídica, evitando a situação de “limbo jurídico” dos pedidos pendentes de apreciação, cuja não decisão impede um recurso.
No entanto, na prática, é sabido que o dispositivo cumprirá muito mais o papel do prazo constitucional para apreciação das medidas provisórias (artigo 62, §3º, da CF): uma saída “fácil” para que os parlamentares não precisem apresentar razões para certas decisões que tomam. Já se pode antever que haverá muito mais decisões tácitas do que expressas de indeferimento.
Ainda no pacote das novidades, revertendo a jurisprudência do STF assentada, por todos, no MS 34.592-AgR, e também para evitar a concentração de poderes na figura do presidente da Casa Legislativa, o artigo 29, §2º, passa a prever que caberá recurso para a Mesa, no prazo de dez dias úteis, contado a partir da publicação da decisão de arquivamento ou do decurso de prazo do arquivamento tácito, a ser interposto por um 1/3 da composição da respectiva Casa, ou por líderes que representem este número.
Tal recurso deverá ser incluído na pauta de reunião da Mesa convocada em até 30 dias úteis, para deliberação, podendo o denunciado oferecer manifestação por escrito no prazo de cinco dias úteis (§3º). Decorrido tal prazo para deliberação da Mesa, ou se esta arquivar a denúncia, caberá novo recurso ao plenário, mediante requerimento da maioria dos membros da Casa ou de líderes que representem esse número, para que delibere por maioria simples quanto ao seu prosseguimento.
Como se vê, as novidades propostas, se por um lado diminuem a legitimidade dos cidadãos, por outro privilegiam a colegialidade, retiram o superpoder do presidente das Casas Legislativas como veto player quase exclusivo e conferem marcha às denúncias, cujo número tenderia a diminuir.
Ainda pelo artigo 29, caput, o conteúdo da decisão do presidente da Casa Legislativa competente só pode ser: 1) determinar o arquivamento liminar da denúncia, por não preencher os requisitos jurídico-formais; ou 2) submeter denúncia à deliberação da Mesa. Não terá cabida, portanto, a concessão de oportunidade para emenda da denúncia ou outro tipo de encaminhamento.
Digno de nota é o costume que se formou na Casa Alta de o presidente ouvir, antes de decidir, a Advocacia do Senado Federal, que se manifesta mediante parecer. A nova lei de impeachment seria uma oportunidade para que essa competência salutar figurasse de modo expresso para todas as casas legislativas.
O anteprojeto mais uma vez incorpora legislativamente a jurisprudência do STF no artigo 45, fixando no Senado Federal a decisão sobre o afastamento do presidente da República. Esse foi o procedimento adotado em razão da ADPF 378-MC, garantindo que a Casa Alta realize um segundo juízo de admissibilidade da denúncia.
O artigo 68 do anteprojeto também oficializa a interpretação legislativa dada no último impeachment, que permitiu o destaque da votação e a possibilidade de separação das penas de perda do cargo e de inabilitação para o exercício de função pública por até 8 anos. Como novidade, o §1º insere os critérios que devem nortear o prazo da inabilitação: antecedentes, a personalidade e a conduta social do acusado, bem assim os motivos, as circunstâncias e as consequências do crime de responsabilidade.
A proposta contraria a literalidade do artigo 52, parágrafo único, da CF (cujo texto conta com a preposição “com” e o prazo de 8 anos fixo). Mas não seria surpreendente que o dever dos legisladores de atender à proporcionalidade por ocasião da fixação de penas – reconhecido pelo próprio STF por ocasião do julgamento do Tema nº 1.003 da Repercussão Geral (RE nº 979.962) – acabe prevalecendo sobre o texto constitucional, o qual receberia uma interpretação “evolutiva”.
Sem mais espaço para seguir com os comentários sobre o anteprojeto da coluna de hoje, caminha-se para o encerramento com uma última reflexão. Nos últimos tempos vem-se avolumando uma grande quantidade de pedidos de impeachment, especialmente contra o presidente da República na Câmara dos Deputados e dirigidos a ministros do STF no Senado Federal.
Como a quase totalidade desses pedidos costuma demorar a ser apreciada, ou é arquivada liminarmente por não preenchimento dos requisitos, diversos cidadãos, no uso de seu direito de petição (artigo 5º, inciso XXXIV, da CF), vêm apresentando uma enxurrada de petições contra o modus operandi adotado nas Casas Legislativas, ora pedindo que se dê andamento aos pedidos, ora para que sejam anulados os arquivamentos monocráticos etc.
O anteprojeto não esclarece se suas disposições seriam ou não aplicáveis às denúncias em curso (fazendo algo semelhante ao artigo 14 do CPC). Seja como for, parece difícil que a nova lei, sobretudo em razão das travas que está colocando, vá atender aos que estão sedentos por ver processos de impeachment efetivamente votados.