Pandemia

Impactos da Covid-19 sobre o Direito Antitruste

Breves reflexões sobre as soluções propostas pelo Projeto de Lei 1.179/2020

Cade
Sede do Cade - Crédito: JOTA imagens

Mais do que um fato imprevisível, seja em relação à sua existência, seja em relação às suas consequências, a pandemia da COVID-19 altera drasticamente as necessidades e a própria dinâmica dos mercados. Por essas razões, era de se esperar uma legislação provisória que pudesse endereçar algumas das preocupações da crise em relação ao Direito Antitruste.

É nesse contexto que o presente artigo objetiva analisar as modificações pontuais propostas pelo Projeto de Lei n 1.179/2020, já aprovado pelo Senado e agora aguardando exame pela Câmara. Em relação ao regime concorrencial, o art. 14 assim prevê1:

Art. 14. Ficam sem eficácia os incisos XV e XVII do § 3º do art. 36 e o inciso IV do art. 90 da Lei nº 12;529, de 30 de novembro de 2011, em relação a todos os atos praticados e com vigência de 20 de março de 2020 até 30 de outubro de 2020 ou enquanto durar o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.

§ 1º Na apreciação, pelo órgão competente, das demais infrações previstas no art. 36 da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, caso praticadas a partir de 20 de março de 2020, e enquanto durar o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, deverão ser consideradas as circunstâncias extraordinárias decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19).

§ 2º A suspensão da aplicação do inciso IV do art. 90 da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, referida no caput, não afasta a possibilidade de análise posterior do ato de concentração ou de apuração de infração à ordem econômica, na forma do art. 36 da Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, dos acordos que não forem necessários ao combate ou à mitigação das consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19).”

Como se pode observar, no que diz respeito ao controle de condutas, a solução principal do Projeto é suspender a eficácia de dois incisos do § 3º, do art. 36, da Lei 12.529/2011: o XV (“vender mercadoria ou prestar serviços injustificadamente abaixo do preço de custo”) e o XVII (“cessar parcial ou totalmente as atividades da empresa sem justa causa comprovada”).

Em primeiro lugar, é questionável a técnica legislativa de suspender incisos do § 3º, diante da tipicidade aberta do ilícito antitruste e da interpretação sistemática que se impõe entre os tipos previstos no mencionado parágrafo e os efeitos previstos no caput, do próprio artigo.

Com efeito, é pacífico na doutrina e na jurisprudência do CADE que a enumeração prevista no § 3º é meramente descritiva, de forma que pode haver ilícito antitruste mesmo que a conduta não esteja expressamente prevista no § 3º – desde que presentes os pressupostos gerais previstos no caput, do art. 36 – , assim como a subsunção de determinados fatos aos tipos específicos previstos no § 3º não leva necessariamente à ilicitude, sendo necessária a existência, pelo menos potencial, dos efeitos anticompetitivos previstos no caput.

Dessa maneira, a rigor, não faz muito sentido suspender a eficácia de determinados incisos do § 3º, do art. 36. A conclusão é ainda mais evidente quando se verifica que os incisos suspensos já acenam expressamente para a necessidade de que sejam confrontados com os eventuais efeitos concorrenciais. Com efeito, a prática dos chamados preços predatórios (inc. XV) não decorre da mera precificação abaixo do custo, mas apenas se configura quando tal situação for injustificada. Ou seja, havendo razões legítimas e que estejam amparadas pela racionalidade econômica, não haveria ilicitude. Da mesma forma, o inciso XVII deixa claro que apenas haverá a ilicitude quando não se comprovar a justa causa para a conduta em questão.

Portanto, os próprios incisos suspensos já são claros no sentido de que as condutas ali descritas apenas serão ilícitas a partir do exame da sua racionalidade, dos seus propósitos e dos seus efeitos sobre o mercado.

Consequentemente, é inequívoco que a prática de tais condutas em razão das novas necessidades e conjunturas decorrentes da pandemia já seria suficiente para afastar a ilicitude.

Todavia, o que mais surpreende é que apenas essas duas condutas tenham sido objeto de preocupações do legislador. Afinal, em um cenário de pandemia, inúmeras outras situações exigiriam igual cuidado. Assim, é difícil compreender o critério pelo qual o legislador revolveu “pinçar”, dentre todos os problemas concorrenciais possíveis e prováveis, apenas essas duas condutas.

Mais difícil ainda é compreender a razão pela qual o legislador deixou de fora, no tratamento das condutas, aquela que provavelmente é a maior preocupação no atual momento, que é a questão da coordenação entre agentes econômicos. Afinal, em um cenário de pandemia, muitas formas de coordenação que não seriam aceitáveis em situações de normalidade passam a ser não somente possíveis como necessárias, especialmente quando se justificam no contexto de esforços conjuntos para fazer frente às necessidades imediatas da pandemia.

Tal urgência se torna ainda mais imprescindível quando se trata de esforços conjuntos para a produção ou distribuição de bens essenciais ou diretamente vinculados ao setor de saúde. Por essa razão, era fundamental que houvesse um maior esclarecimento sobre os critérios possíveis de cooperação nesse momento.

Entretanto, a única menção à cooperação feita pelo Projeto refere-se ao controle de estruturas, ao se suspender o inciso IV, do art. 90, da Lei 12.529/2011. Ocorre que tal solução, além de ser equivocada, não atende às necessidades do momento.

Como é de saber comum, não se pode confundir cooperação com os atos de concentração previstos pelo art. 90, IV, da Lei 12.529/2011. Estes correspondem ao mais alto grau de cooperação, em que os agentes envolvidos se engajam em uma empresa comum, compartilhando os riscos e a rentabilidade da ação conjunta.

Entretanto, para além dos contratos associativos, existem inúmeras outras formas de cooperação que não atingem o grau organizativo suficiente para que sejam consideradas contratos associativos e, consequentemente, atos de concentração sujeitos ao art. 90, IV.

Por essa razão, para todas essas outras formas de cooperação, não há outra forma de endereçamento possível que não seja o controle de condutas.

É o que procurou ser feito por inúmeras autoridades antitruste estrangeiras, notadamente a norte-americana e a europeia, que procuraram delimitar, ainda que de forma exemplificativa, que tipos de cooperação, no cenário da pandemia, poderiam ocorrer, para que fins e em que medida.

Nesse ponto, nada faz o Projeto 1.179/2020. Limita-se a prever, no § 1º, do art. 14, que, em relação a todas as demais condutas, as circunstâncias extraordinárias decorrentes da pandemia deverão ser consideradas para efeitos da constatação da ilicitude.

Todavia, considerando os riscos conhecidos da cooperação entre concorrentes – notadamente o de serem considerados prática de cartel -, tal artigo oferece pouca segurança jurídica para que as empresas se engajem efetivamente em cooperações com um mínimo de tranquilidade.

Daí por que, no plano das condutas, o Projeto peca ao mesmo tempo por excesso e por falta: (i) por excesso, ao ter suspendido desnecessariamente incisos do § 3º, do art. 36 e (ii) por falta, ao não ter oferecido critérios minimamente claros para endereçar o problema mais sensível dos tempos atuais. que é a operacionalização de cooperações, especialmente quando estas não atingirem o grau de organização suficiente para que sejam consideradas contratos associativos.

Se há problemas no que diz respeito ao controle de condutas, também há no que diz respeito ao controle de estruturas, tendo em vista que a mera suspensão do inciso IV, do art. 90, da Lei 12.529/2011, sem qualquer critério, não faz nenhum sentido. Era imperioso que o legislador previsse ao menos que a suspensão estaria condicionada às necessidades e às urgências da pandemia, a fim de evitar o oportunismo excessivo. Da forma como foi feito, criou-se enorme janela de oportunidades, por meio das qual uma série de operações que não se justificam em razão da pandemia poderão ser realizadas sem qualquer escrutínio por parte da autoridade antitruste.

Verdade seja dita que o § 2º ainda tentou calibrar minimamente o problema, ao ressalvar a possibilidade de análise posterior de ato de concentração pelo CADE ou mesmo a apuração de infração à ordem econômica “dos acordos que não forem necessários ao combate ou à mitigação das consequências decorrentes da pandemia do coronavírus (Covid-19).”

Entretanto, a solução não é satisfatória porque, ao dispensar os agentes econômicos da notificação obrigatória, atribui ao CADE o ônus de identificar as operações problemáticas para submetê-las ao seu crivo. Trata-se, na verdade, de possibilidade já facultada pelo art. 88, § 7º, da Lei 12.529/2011 mas que, exatamente em razão das suas dificuldades operacionais, acaba sendo competência que não é exercida pelo CADE nem mesmo em cenário de regularidade.

Consequentemente, há poucas razões para confiar que se trate de solução eficiente e exequível para tempos de crise.

Isso sem falar no papel que a notificação obrigatória tem de possibilitar ao CADE o monitoramento dos grandes negócios e a formação de importante base de dados sobre a evolução dos mercados, mesmo em relação aos casos que não apresentam problemas concorrenciais.

Tais preocupações, somadas ao oportunismo excessivo que pode decorrer da suspensão do art. 90, IV, da Lei 12.529/2011, mostram o quanto a solução aventada é perigosamente permissiva, possibilitando a realização de inúmeras operações com efeitos anticoncorrenciais que nada têm a ver com a pandemia, mas cujos efeitos podem se projetar por muito tempo depois dela.

Não se ignora que o Projeto procura soluções para lidar com a urgência de determinadas operações, que não poderiam aguardar o tempo normalmente necessário para o controle preventivo ou, a depender do caso, nem mesmo o tempo necessário para a concessão da consumação antecipada dos efeitos da operação. Todos sabemos que o controle prévio gera altos custos de transação que, mesmo justificáveis diante da sua importância, podem ser incompatíveis com o ritmo dos acontecimentos em uma situação de crise.

Entretanto, se a questão é a urgência, isso poderia ser facilmente endereçado por meio da previsão do controle posterior nessas hipóteses, caso em que as empresas poderiam realizar seus contratos associativos, com efeitos imediatos, submetendo-os posteriormente ao CADE, a quem caberia sempre o exame de todos os atos e a palavra final quanto à sua aprovação ou não.

Uma solução como essa, se bem arquitetada, poderia assegurar as necessidades e as urgências dos tempos atuais com a necessária manutenção do escrutínio do CADE, não apenas para avaliar se os propósitos dos atos são legítimos, como também para avaliar se os meios escolhidos pelas empresas são necessários, adequados e proporcionais diante da pandemia. Afinal, são grandes os riscos de que mesmo cooperações com fins legítimos possam se utilizar de meios indevidos, de forma a propiciar contatos, trocas de informações concorrencialmente sensíveis e outros procedimentos que ultrapassem os objetivos das cooperações em regime de exceção.

E nem se afirme que isso comprometeria a segurança jurídica ou criaria desincentivos incontornáveis para os contratos associativos. Bastaria a previsão de um artigo afirmando que, diante da boa-fé das partes, o máximo que o CADE poderia fazer, na sede do controle posterior, seria determinar o desfazimento ex nunc da operação, mantendo, portanto, os efeitos passados e sem impor nenhum tipo de sanção às empresas.

Portanto, soluções existem para fazer frente ao problema sem amesquinhar o Direito Antitruste justamente em período no qual ele é ainda mais necessário.

Aliás, esta é também uma falha do Projeto pois, enquanto no mundo, a mensagem oficial ressalta a necessidade de que o Direito Antitruste seja ainda mais forte e respeitado durante a crise, não há sinalização a respeito no caso brasileiro.

Pelo contrário, da forma como está, o Projeto pode estar dando uma sinalização oposta, de indevido afrouxamento do controle antitruste, o que certamente poderá agravar ainda mais os efeitos já nefastos da crise que vivemos.

—————————

1 Vale ressaltar que o artigo foi finalizado no dia 15.04.2020, quando o projeto de lei, já tendo sido aprovado pelo Senado, aguardava a aprovação pela Câmara dos Deputados. Dessa maneira, o artigo baseou-se na redação aprovada pelo Senado, com base no parecer da Senadora Simone Tebet.

Sair da versão mobile