Coluna

Covid-19, compliance e discriminação

Importante avaliar normas internacionais à luz das nossas e considerar os impactos sociais que o compliance traz

Foto: Pedro Moraes/GOVBA

Em recente conversa com amigos, fui informado que algumas das pessoas que foram curadas da Covid-19 foram convocadas a doar sangue para que os agentes de saúde pudessem aplicar anticorpos dos “curados” nos pacientes com risco de morte. O objetivo seria estimular uma reação do organismo do receptor do plasma. Esta prática foi indicada pelo órgão equivalente à Anvisa nos EUA[1], em tempos de emergência de saúde pública e está sendo usada também no Brasil.

O que me chamou atenção nesta conversa informal entre amigos foi o fato relatado por um deles que um dos curados soube que esta técnica estava sendo usada no Brasil e quis doar seu plasma para colaborar com um novo tipo de tratamento que têm dado esperança de sobrevida a pacientes em estado crítico[2].

No entanto, após o cadastro inicial no hospital, a pergunta sobre a orientação sexual deste jovem levou ao seu banimento da lista de participantes da iniciativa por razões relacionadas a chamada “segurança transfusional”[3].

Basicamente, no Brasil a doação de sangue de homossexuais do sexo masculino está regulamentada pelos seguintes dispositivos abaixo:

Portaria nº 158/2016 – Ministério da Saúde

Art. 64. Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo:

[…]

IV – homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes;

RDC nº 43/2014 – Anvisa

Art. 25. O serviço de hemoterapia deve cumprir os parâmetros para seleção de doadores estabelecidos pelo Ministério da Saúde, em legislação vigente, visando tanto à proteção do doador quanto a do receptor, bem como para a qualidade dos produtos, baseados nos seguintes requisitos:

[…]

XXX – os contatos sexuais que envolvam riscos de contrair infecções transmissíveis pelo sangue devem ser avaliados e os candidatos nestas condições devem ser considerados inaptos temporariamente por um período de 12 (doze) meses após a prática sexual de risco, incluindo-se:

[…]

d) indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros indivíduos do mesmo sexo e/ou as parceiras sexuais destes;

Além disso, a Portaria de Consolidação GM/MS n° 5, de 28/09/2016 indica em um de seus anexos relacionados com informações sobre a síndrome de imunodeficiência adquirida (AIDS) e suas medidas de controle (anexo XXXIII) que classifica no mesmo grupo de risco para a doença homossexuais e bissexuais masculinos; usuários de drogas injetáveis; e hemofílicos ou politransfundidos.

A conclusão, portanto, é que a tal “segurança transfusional” vê como risco a doação de sangue realizada por homossexuais do sexo masculino porque eles, normativamente falando, estão no grupo de risco e teriam um potencial maior de infectar o receptor do seu sangue.

Considerando que a coluna trata do compliance (sistemas de cumprimento e conformidade das normas) pelo mundo, a pesquisa se seguiu para ver como o tema é regulado internacionalmente.

De acordo com o manual da Organização Mundial de Saúde (OMS), homossexuais masculinos sexualmente ativos fazem, sim, parte dos perfis de alto risco e teriam 19,3 vezes mais chances de terem o vírus HIV, mas a própria OMS indicou igualmente que suas diretrizes para o assunto não estão devidamente atualizadas.

De acordo com reportagem publicada recentemente pela BBC, “outros 15 países não fazem distinção ou estabelecem critérios específicos de exclusão de homens que mantêm relações sexuais com outros homens, como Argentina, Chile, Peru, Espanha e Itália. Além disso, lembram que esse tempo de espera (12 meses) é desnecessário, pois os exames de sangue modernos podem detectar o HIV[4].

Estados Unidos[5], Canadá[6] e Reino Unido[7] estabelecem um período de 3 meses de restrição para homens que tiveram relação sexual com outro homem. Sendo que os EUA, acabam de reduzir este tempo de 12 para 3 meses considerando a realidade emergencial de saúde pública pelo qual o planeta passa neste momento.

Saindo do campo internacional e adentrando na nossa complexa esfera nacional, atualmente está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) a ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 5543, que trata da proibição prevista nos trechos de portaria do Ministério da Saúde e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), conforme já mencionado acima.

A ação foi proposta pelo Partido Socialista Brasileiro e tramita na Corte desde junho de 2016 e está sob a relatoria do ministro Edson Fachin. No dia 9 de Abril foi protocolizada petição com pedido de prioridade na tramitação, justamente considerando a situação emergencial gerada pela Covid-19.

A petição inicial do processo – cuidadosamente elaborada pelos colegas advogados Drs. Rafael de Alencar Araripe Carneiro, Luiz Philippe Vieira de Mello Neto, João Otávio Fidanza Frota e Matheus Pimenta de Freitas Cardoso – merece muitos elogios pela sua redação impecável, pelos argumentos jurídicos que contempla e pelos dados e informações detalhadas sobre o tema[8].

Em suma, após a exposição dos argumentos históricos que levaram a esta proibição discriminatória os advogados indicam que a manutenção desta situação afrontaria a dignidade da pessoa humana (CF, art 1, III), o direito fundamental à igualdade (CF, art. 5, caput); e o objetivo fundamental da república brasileira relacionado com a promoção do bem de todos sem discriminação (CF, art. 3, IV).

No âmbito estadual, o pleno do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte ao julgar a ação de um gay que foi impedido de fazer a doação decidiu pela inconstitucionalidade da norma. Conforme artigo publicado sobre a ação:

“De acordo com o desembargador Cornélio Alves, a resolução da Anvisa fere os princípios da dignidade da pessoa humana e o dever de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, além de afrontar aos direitos fundamentais à igualdade e à saúde. O caso começou a ser julgado pelo Supremo em outubro de 2017, mas foi suspenso após pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. O relator, ministro Luiz Edson Fachin, votou pela inconstitucionalidade das normas, sendo seguido pelos ministros Luis Roberto Barroso, Luiz Fux e Rosa Weber.

 O ministro Alexandre de Moraes divergiu ao votar pela parcial, e não total procedência da ação. Para ele, é possível a doação por homens que fizeram sexo com outros homens, desde que o sangue somente seja utilizado após o teste imunológico, a ser feito depois da janela sorológica definida pelas autoridades de saúde”[9].

É impressionante mais uma vez o STF ser acionado para questões que deveriam ser endereçadas a outros Poderes. A falta de harmonia e eficiência dos Poderes Legislativo e Executivo tem gerado prejuízos imensos ao país, perdas de vidas e danos irreparáveis à sociedade brasileira.

Claro que pessoas que pretendem doar sangue precisam ter certeza de que seu comportamento sexual é seguro e não as exponha a doenças sexualmente transmissíveis, como por exemplo praticar sexo desprotegido com parceiros não confiáveis, independentemente da orientação sexual. Pois, como já bem dito pelo relator do processo, Ministro Fachin “orientação sexual não contamina ninguém, preconceito sim”.

Falar sobre a conformidade em relação aos regulamentos e normas espalhados pelo mundo e compará-los com aqueles do nosso país é o interesse deste autor. Ocorre que, ainda mais importante do que estar em conformidade com tais regulamentos é avaliá-los à luz de nossa constituição e considerar os impactos sociais que o compliance traz, afinal de contas, lembrando novamente as palavras do sábio ministro Fachin  “muito sangue tem sido derramado em nosso país em nome de preconceitos que não se sustentam”.

 


[1] US Food and Drug Administration. Dispon[ivel em> https://www.fda.gov/vaccines-blood-biologics/investigational-new-drug-ind-or-device-exemption-ide-process-cber/recommendations-investigational-covid-19-convalescent-plasma

[2] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/paulo-sampaio/2020/04/10/disposto-a-ajudar-doentes-de-covid-19-fotografo-gay-tem-sangue-recusado.htm

[3] Disponível em: https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/04/09/ministerio-da-saude-mantem-proibicao-de-doacao-de-sangue-por-gays-apesar-de-estoques-baixos-por-coronavirus.ghtml

[4] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52210094

[5]  https://www.fda.gov/news-events/press-announcements/coronavirus-covid-19-update-fda-provides-updated-guidance-address-urgent-need-blood-during-pandemic

[6] https://blood.ca/en/blood/am-i-eligible/men-who-have-sex-men

[7] https://www.gaystarnews.com/article/donate-blood-gay-bi/#gs.sW7UMAY

[8] Disponível na íntegra no site do STF: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=556188097&prcID=4996495#

[9] https://www.conjur.com.br/2018-ago-31/proibicao-gays-doarem-sangue-inconstitucional-decide-tj-rn

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