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Coronavírus e o compliance da saúde pública internacional

Quais são as normas e regulamentos que autoridades responsáveis devem seguir?

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Equipe médica na estação ferroviária de Wuhan durante o surto de coronavírus. Crédito: China News Service/ wikimedia commons

As páginas dos jornais estão repletas de informações sobre o “novo coronavírus 2019”, um tipo de mutação viral que, segundo pesquisadores chineses, provavelmente passou a atingir humanos a partir do contágio proveniente de cobras1. A nova cepa de coronavírus tem se espalhado rapidamente pela China e corre grande risco de sair do controle mundialmente.

O comunicado oficial de imprensa contido na página na Internet da Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que “em 31 de dezembro de 2019, a OMS foi alertada sobre vários casos de pneumonia na cidade de Wuhan, província de Hubei, na China”. O vírus reportado não combinava com nenhum outro vírus conhecido. Isso causou preocupação porque, quando um vírus é novo, não sabemos como ele afeta as pessoas. Uma semana depois, em 7 de janeiro, as autoridades chinesas confirmaram que haviam identificado um novo vírus.

O novo vírus é um coronavírus, uma família de vírus que inclui o resfriado comum e vírus como SARS e MERS. Este novo vírus foi temporariamente nomeado “2019-nCoV”. A OMS tem trabalhado com autoridades chinesas e especialistas globais desde o dia em que fomos informados, para saber mais sobre o vírus, como ele afeta as pessoas que estão doentes, como podem ser tratadas e o que os países podem fazer para responder. Por se tratar de um coronavírus, que geralmente causa doenças respiratórias, a OMS aconselha as pessoas sobre como se proteger e às pessoas ao seu redor contra a doença”2.

De acordo com os últimos dados, são 132 mortos e 6.000 infectados3, sendo que especialistas alertaram que cerca de 100.000 pessoas já poderiam estar infectadas globalmente4. Conforme informações publicadas no jornal The New York Times, a Tailândia registrou 14 casos de infecção; Hong Kong tem 8; os Estados Unidos, Taiwan, Austrália e Macau têm 5 cada; Cingapura, Coréia do Sul e Malásia reportaram 4; O Japão tem 7; A França tem 3; Canadá e Vietnã têm 2; e Nepal, Camboja e Alemanha têm 1. Ainda não há notícias de mortes fora da China5. O último relatório de situação, emitido em 28 de janeiro pela OMS, retrata a seguinte realidade:

OMS – RELATÓRIO DE SITUAÇÃO Nº 86.

De acordo com o glossário da própria OMS, epidemia é “a ocorrência em uma comunidade ou região de casos de uma doença, comportamento específico relacionado à saúde ou outros eventos relacionados à saúde claramente acima da expectativa normal. A comunidade ou região e o período em que os casos ocorrem são especificados com precisão. O número de casos que indicam a presença de uma epidemia varia de acordo com o agente, tamanho e tipo de população exposta, experiência anterior ou falta de exposição à doença e hora e local da ocorrência”7.

O Prefeito de Wuhan (cidade epicentro da epidemia) e o secretário do Partido Comunista da China na cidade ofereceram suas renúncias devido ao fato de assumirem publicamente erros na divulgação de informações e no gerenciamento da crise de saúde pública. Além disso, a própria OMS admitiu erro na formulação em um relatório anterior que classificava o risco de contágio como “moderado”. Sendo que o novo relatório de 27 de janeiro, estabelece o risco de contágio com o vírus como “elevado”.

Devidos aos erros e confusões no plano de ação das autoridades, fica a pergunta:

Quais são as normas e regulamentos que autoridades responsáveis pela higidez do sistema de saúde pública internacional devem seguir?

A Constituição da OMS8, nos artigos 21 e 22, confere plena autoridade à Assembleia Mundial da Saúde para adotar regulamentos, nos seguintes termos:

Artigo 21

A Assembleia da Saúde terá autoridade para adotar os regulamentos respeitantes a:

a) Medidas sanitárias e de quarentena e outros procedimentos destinados a evitar a propagação internacional de doenças;

b) Nomenclaturas relativas a doenças, causas de morte e medidas de saúde pública;

c) Normas respeitantes aos métodos de diagnóstico para uso internacional;

d) Normas relativas à inocuidade, pureza e ação dos produtos biológicos, farmacêuticos e similares que se encontram no comércio internacional;

e) Publicidade e rotulagem de produtos biológicos, farmacêuticos e similares que se encontram no comércio internacional.

Artigo 22

Os regulamentos adotados em conformidade com o artigo 21 entrarão em vigor para todos os Estados membros depois de a sua adoção ter sido devidamente notificada pela Assembléia da Saúde, exceto para os Estados membros que comuniquem ao diretor-geral a sua rejeição ou reservas dentro do prazo indicado na notificação.

Daí é que emerge o documento que guia as ações das autoridades em casos envolvendo a saúde pública internacional, o International Health Regulations9 ou Regulamento Sanitário Internacional, que decorre da responsabilidade histórica e central da (OMS) relacionada com a gestão do regime global pelo controle da propagação internacional de doenças e de sua autoridade na matéria, conforme indicado em sua própria constituição.

O Regulamento Sanitário Internacional, prevê no artigo segundo que o seu objetivo e o escopo são “prevenir, proteger contra, controlar e fornecer uma resposta de saúde pública à propagação internacional de doenças de maneira proporcional e restrita aos riscos à saúde pública e que evitem interferências desnecessárias no tráfego e comércio internacional”.

O documento foi adotado pela Assembleia Mundial da Saúde em 1969, e inicialmente cobriu seis “doenças em quarentena”. No entanto, devido a mudanças do quadro geral de doenças, foi alterado em 1973 e 1981, principalmente para reduzir o número de doenças cobertas de seis para três (febre amarela, peste e cólera) e para marcar a erradicação global da varíola.

O regulamento exige que os Estados membros da OMS desenvolvam a capacidade de detectar, avaliar, notificar e relatar eventos. Sendo que, após a notificação o Estado Parte continuará a comunicar à OMS informações oportunas, precisas e suficientemente detalhadas sobre saúde pública à sua disposição no evento notificado, sempre que possível, incluindo definições de casos, resultados laboratoriais, fonte e tipo de risco, número de casos e mortes, condições que afetam a propagação da doença e as medidas de saúde empregadas; e relatar, quando necessário, as dificuldades enfrentadas e o apoio necessário para responder à potencial emergência de saúde pública de interesse internacional (artigo 6.2 do Regulamento).

Em 1 de abril 2001, na 54ª Assembleia Mundial de Saúde, foi elaborado o Relatório de Segurança global da saúde sobre alertas e respostas à epidemias. Este evento atualizou diversas orientações em razão de a globalização de doenças infecciosas não ser um fenômeno novo, mas devido ao fato de ter aumentado “movimentos populacionais, seja através do turismo ou da migração ou como resultado de desastres; crescimento em comércio internacional de alimentos e produtos biológicos; mudanças sociais e ambientais ligadas à urbanização, desmatamento e alterações climáticas; e mudanças nos métodos de processamento de alimentos, distribuição e hábitos de consumo reafirmaram que os eventos de doenças infecciosas em um país são potencialmente uma preocupação para o mundo inteiro”.10

No relatório estão demarcadas as orientações e linhas gerais de ação para o gerenciamento de crises de saúde.

Assim a OMS já em 2001 deixou claro qual era “o status atual do alerta e resposta epidêmicos globais e da revisão do Regulamento Sanitário Internacional, a estrutura legal para alerta e resposta global e sugere medidas adicionais necessárias para enfrentar os desafios atuais e futuros”.11No documento estão também detalhadas as diretrizes para um sistema para gestão de eventos epidêmicos globais, a criação da figura do “núcleo de competência técnica para alerta e resposta à epidemia em nível nacional, e portanto, para fortalecer os mecanismos globais de vigilância e alerta”.12

O objetivo deste artigo não é esgotar o tema regulatório da saúde pública internacional até porque o cenário jurídico relacionado ao assunto envolve muitos documentos, diretrizes, regulamentos e acordos internacionais. Dentre eles:

  • Convenção Sanitária Internacional de 1926;

  • Convenção Sanitária Internacional para Navegação Aérea de 1933;

  • Acordo Internacional para dispensa de Bills of Health de 1934;

  • Acordo Internacional para dispensa de vistos consulares em projetos de saúde de 1934;

  • Convenção que altera a Convenção Sanitária Internacional de 1938;

  • Convenção Sanitária Internacional, 1944, que modifica o Código Sanitário Internacional;

  • Convenção Sanitária Internacional para Navegação Aérea, 1944;

  • Regulamentos Sanitários Internacionais, 1951, e Regulamentos Adicionais de 1955, 1956, 1960, 1963 e 1965;

  • Regulamento Sanitário Internacional de 1969 e as emendas de 1973 e 1981;

  • O Código Sanitário Pan-Americano de 1924

O que se pretende é ressaltar, como mencionado na própria introdução do Relatório da OMS sobre Segurança global da saúde, “a necessidade de cooperação internacional em alerta e resposta a epidemias é ainda mais crucial agora do que quando a ideia foi discutida na primeira Conferência Sanitária Internacional em 1851. Essa cooperação é continuada pela OMS desde a sua criação em 1948”.

Neste sentido, o compliance da segurança da saúde pública em âmbito internacional requer, além de regras bem definidas e regulamentos claros que já existem, uma cultura global de integridade, de cumprimento aos deveres de notificação, transmissão de informação precisa e atualizada previstos na normativa.

Tanto as falhas das autoridades chinesas como dos representantes da OMS demonstram que além de criar regras de resposta e planos de ação, se faz necessário incumbir os responsáveis do senso moral e ético de cumprimento às normas e cooperação internacional.

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1 Infecção de Humanos por novo coronavírus pode ter começado em cobras. Estado de São Paulo.

https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,infeccao-de-humanos-por-novo-coronavirus-pode-ter-comecado-em-cobras-indica-estudo,70003169334

4 Coronavirus in the US: how many people have it and how serious is the risk? The Guardian. 28/01/2020. Disponível em: https://www.theguardian.com/science/2020/jan/28/coronavirus-in-the-us-risk-cdc-health

5 NYT. Death toll exceeds 100 as number of infections skyrockets. Acesso em 28/01/2020 as 15:30. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/01/28/world/asia/china-coronavirus.html?action=click&module=Top%20Stories&pgtype=Homepage

10 Global health security – epidemic alert and response. Report by the Secretariat. Texto Completo em Inglês disponível em: https://apps.who.int/medicinedocs/documents/s16357e/s16357e.pdf

11 Idem.

12 Ibidem.

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