O número de casos de dengue no país dobrou em relação ao ano passado. A situação mais grave é enfrentada nas regiões Centro-Oeste e Sul, de acordo com o mais recente boletim do Ministério da Saúde. Em Brasília, unidades básicas de saúde se adaptam para atender casos da infecção. Mas diante do avanço da doença, o que autoridades fazem questão de repetir é: a maior porcentagem de criadouros do mosquito transmissor da doença, o Aedes aegypti, está nos domicílios.
Não é de hoje que esse discurso é repetido à exaustão. “Todos têm de fazer sua parte. Cuide do vaso de plantas. Tampe a caixa d’água.”
Sem dúvida todas essas providências são essenciais. Mas “todos” vai muito além da população. O que vem sendo feito, por exemplo, para melhorar o abastecimento de água? Com fornecimento regular, certamente pessoas não se dariam ao trabalho de encher recipientes para momentos em que a torneira estiver seca. E isso para parte da população, mais privilegiada. Há ainda famílias que dependem de água armazenada para beber e comer porque simplesmente não há abastecimento. O mesmo raciocínio vale para coleta de lixo.
“Responsabilizar a população por problemas de saúde não é uma estratégia exclusiva do Brasil. Isso ocorre em outros países. Mas, obviamente, não ajuda em nada a enfrentar de fato a crise”, afirma Cláudio Maierovitch, médico sanitarista da Fundação Oswaldo Cruz de Brasília.
O infectologista Rivaldo Venâncio, também da Fiocruz, observa que na sociedade ocidental há uma tendência de se buscar o pecador. “É como se, identificado o pecador, o problema estivesse resolvido. Mas em processos complexos sociais nunca há apenas um responsável. São vários e a contribuição de todos é importante.”
Desde que a dengue teve seu retorno confirmado no país, nos anos 1980, a estratégia para combater casos da doença segue uma lógica semelhante. Transmissor de dengue, zika e chikungunya, o Aedes aegypti prolifera-se onde há água parada, daí a importância de campanhas de conscientização para eliminar os criadouros.
“Há em muitas casas calhas que dificilmente são limpas com regularidade, sobretudo quando habitadas por pessoas de mais idade”, diz Venâncio. O aspecto pedagógico é importante. Mostrar a importância de recolher o lixo e eliminar criadouros, de forma que a população também se envolva na prevenção. “Atualmente, em muitos locais há relatos de uma postura passiva. Moradores que simplesmente aguardam a chegada de agentes de saúde para fazer coletas de objetos ou limpeza de locais com risco de se transformarem em criadouros”, afirma Venâncio.
Tal atividade, no entanto, é apenas parte da estratégia. O infectologista diz ser essencial também a coleta eficiente e regular de lixo sólido, além do fornecimento de água. “Onde o abastecimento é intermitente, no dia em que a água chega as pessoas armazenam onde é possível. Em objetos improvisados, muitas vezes desprovidos de tampas.”
Em outras palavras, além da participação da sociedade, a solução envolve políticas públicas e investimento.
“São necessárias medidas intersetoriais. Mas o fato de ser complexo não significa que o esforço deva ser deixado de lado”, avalia Maierovitch. O médico sanitarista da Fiocruz esteve à frente do departamento de Vigilância de Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde quando a emergência sanitária por causa da microcefalia foi declarada no país. Pouco tempo depois, comprovou-se que o problema estava associado à infecção das gestantes por zika.
Diante da crise, uma série de medidas para tentar reduzir os casos de dengue, zika e chikungunya começaram a ser testadas. Entre elas, o uso da Wolbachia, uma bactéria presente em boa parte dos insetos mas não no Aedes aegypti. Os trabalhos indicam que, quando implantada no mosquito, a bactéria faz com que o inseto perca a capacidade de transmitir dengue, zika ou chikungunya. Também foram testados o uso de armadilhas com larvicidas e estratégias de vigilância epidemiológica para nortear medidas de prevenção. Atividades eram concentradas, por exemplo, em locais onde a transmissão era mais intensa. O objetivo era tornar o trabalho mais eficiente.
“A ideia era testar novas abordagens e, uma vez comprovadas, adotá-las de forma associada. Dificilmente uma medida só dará conta do processo.” Mas as iniciativas perderam fôlego antes mesmo da chegada da pandemia da Covid-19.
As atividades de prevenção estão muito associadas às visitas de agentes, uso de larvicidas e fumacês – este último, por sinal, feito muitas vezes de forma inapropriada por administrações locais.
As dificuldades em avançar na prevenção tornam o país refém de um problema cíclico. Epidemias surgem de acordo com condições climáticas, a circulação de subtipos do vírus e com o número de pessoas suscetíveis à infecção. Quanto mais chuva, quanto mais pessoas suscetíveis, maior o número de casos da doença.
Mais um fator de preocupação se soma. No início deste mês, pela primeira vez, o genótipo cosmopolita do sorotipo 2 do vírus da dengue foi identificado no país. Encontrada na Ásia, no Pacífico, no Oriente Médio e na África, a variante destaca-se pela rápida capacidade de se propagar. Pesquisadores da Fiocruz descartaram até o momento a associação dessa variante com o aumento de casos da doença na região Centro-Oeste.
Maierovitch afirma não haver neste momento indícios de que essa variante cause casos mais graves da doença. Mas isso não é motivo para tranquilidade. “Há vários problemas simultâneos de saúde. Pessoas que se infectam por dengue podem ter outras doenças crônicas, muitas vezes sem controle adequado.”
Muitos já estão frágeis, sentindo-se ainda vulneráveis sobretudo diante dos riscos enfrentados ao longo dos últimos anos de pandemia. Neste momento, o que menos se espera de autoridades sanitárias é apontar culpados. Pelo contrário, o que se espera é um comprometimento para tentar reduzir o problema.