Não é de hoje que cursos de medicina são considerados pelas instituições de ensino superior como a “joia da coroa”. As vagas são disputadas, a taxa de evasão é pequena e a média da mensalidade gira em torno de R$ 8.000. Para instituições públicas, o curso ajuda a reforçar o prestígio. Para as escolas privadas, representa a garantia de retorno no investimento.
Nos últimos anos, no entanto, o cenário desse mercado bilionário se alterou. Pedidos de novos cursos ou de ampliação de vagas para medicina passaram a ser feitos por meio de liminares. A disputa ganhou tamanha dimensão que o tema é discutido no Supremo Tribunal Federal (STF). Duas ações, com pedidos opostos, foram apresentadas em menos de um mês. No centro da polêmica está a Lei do Programa Mais Médicos, em vigor desde 2013 e que regula a abertura de cursos de medicina.
A norma estabelece uma série de condições para a abertura de cursos. O processo se dá por meio de chamada pública promovida pelo Ministério da Educação (MEC). São escolhidas as cidades prioritárias para a abertura das unidades – o objetivo é garantir melhor distribuição de profissionais pelo país e, com isso, tentar reduzir os vazios assistenciais.
A lei também determinou uma série de exigências para as instituições interessadas em ingressar nessa cobiçada atividade. É preciso garantir um programa de extensão, de forma a atender a população carente, ter hospitais e redes de serviço de apoio para garantir a formação do aluno.
Quando a lei entrou em vigor, havia alguns pedidos de abertura de cursos e ampliação de vagas aguardando análise do governo. Com a nova regra, esses pedidos caíram numa espécie de limbo. Ao longo dos últimos anos, três editais foram feitos, um deles residual.
Sentindo-se preteridas, algumas instituições que já haviam depositado o pedido no MEC ingressaram na Justiça para garantir que suas solicitações fossem avaliadas. “O governo cometeu um erro. Criou uma regra, mas deixou várias lacunas. Quem havia feito o pedido antes da lei sentiu-se abandonado”, afirma Elizabeth Guedes, presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup).
As críticas não param por aí. Há quem afirme que os critérios não são transparentes, sobretudo para escolha das cidades candidatas a novos cursos de medicina.
Guedes afirma que, até 2019, havia em média 4 ou 5 pedidos de liminar. A partir de então, eles subiram de forma expressiva. “Em 2020, esse número saltou para 36. Em 2021, para 98. Neste ano já foram mais de 70”, diz ela. De acordo com a Anup, com as liminares 879 vagas foram autorizadas.
Advogado contratado pela Anup, Guilherme Valdetaro afirma que um dos argumentos usados nos pedidos de liminar é o direito à livre iniciativa. E parte dos pedidos é aceita na 1ª e 2ª instâncias. “Uma das liminares garante não apenas o pedido feito até agora, mas necessidades futuras”, afirmou Guedes.
A ampliação dos pedidos formulados é atribuída a um filão encontrado por consultorias. “Criou-se uma indústria de intermediação. O pedido é apresentado à Justiça e ganha-se uma possibilidade de avaliação. É um novo mercado”, define a presidente da Anup. Sob esse argumento, a associação ingressou com uma Ação de Declaração de Constitucionalidade (ADC) da Lei do Programa Mais Médicos. O objetivo é mostrar que a lei está em vigor e, portanto, liminares que contestem sua aplicação não devem ser concedidas.
“A lei é constitucional. A argumentação de que ela viola a livre iniciativa não é verdade”, afirmou Valdetaro. “A livre iniciativa não é um valor, um princípio absoluto. O STF já decidiu outras vezes que ela deve se vergar a outros princípios, como o da dignidade do ser humano, o do respeito ao meio ambiente e valores da sociedade”, comentou o advogado.
O receio da associação é que as liminares criem um fato consumado, vestibulares sejam realizados e instituições de ensino sem estrutura adequada passem a atuar. “Isso seria muito ruim para o aluno e para sociedade. O aluno pagaria mensalidades por um curso sem qualidade, a sociedade teria médicos sem formação adequada. É um problema duplamente perverso”, disse o advogado.
Interposta em junho, a ADC foi distribuída para o ministro Gilmar Mendes. Duas semanas depois, uma ação com pedido contrário – de declaração de inconstitucionalidade da Lei do Mais Médicos – foi proposta pelo Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras A ADI também será apreciada pelo ministro.
Representante nesta ação, o advogado Dyogo Patriota afirma que a norma prejudica instituições que já estavam no mercado, muitas com atuação na área de saúde.
De acordo com ele, a lei beneficiou grandes grupos econômicos. E isso teria começado nos critérios para seleção das instituições que poderiam participar do chamamento. “Uma nota técnica feita por uma fundação, a pedido do MEC, estabeleceu critérios de capacidade de geração de lucro, o que não é aceito pelo Tribunal de Contas da União”, argumentou. De acordo com ele, instituições que já estão no mercado muitas vezes têm imóveis, estrutura criada. “O propósito, em alguns casos, não é gerar lucro.” Esse critério teria, já de início, reduzido o número de participantes.
Patriota questiona ainda o fato de as regras serem pouco claras. “A lei deu superpoderes ao MEC. Quais critérios são usados para fazer um chamamento público? Quais critérios para escolha das cidades para ter escolas? Como é feita a análise da estrutura?”
Mais do que isso. Patriota afirma que as liminares não concedem, de imediato, o direito à abertura de vagas. “É garantido apenas o direito de que o pedido seja avaliado pelo MEC.” Em outras palavras, isso não traria o risco de uma instituição de estrutura duvidosa passar a funcionar. “As boas serão aceitas. As ruins, reprovadas”, disse.
O advogado, que também é consultor jurídico da Associação Brasileira das Instituições de Ensino Superior Comunitárias, diz que a norma trouxe uma situação muito confortável para os grupos contemplados nos primeiros editais. “A lei traz disciplina apenas para criação de cursos. Mas uma portaria do MEC autorizou que contemplados nos editais pudessem também ampliar o número de vagas. No início, a autorização era de até 100 vagas por instituição. E a regra determinava que isso ocorreria apenas uma vez”, relatou. “Mas uma nova portaria permitiu que os estabelecimentos que não tivessem ampliado em até 100 vagas tivessem uma nova oportunidade, até chegar a essa marca”, completou. Diante dos protestos, essa segunda portaria foi revogada.
Além de não haver novos chamamentos, Patriota observa que, em 2018, uma portaria suspendeu o protocolo de pedidos de vagas por cinco anos. “No passado, víamos cursos de medicina autorizados para instituições que estavam no mercado. Era uma espécie de coroação. Mas agora é uma reserva de mercado para grandes grupos.”
O advogado reconhece que há, entre os inúmeros pedidos de liminares, descolamento do interesse educacional. “Diante dessa falta de padrão, alguns veem concorrentes nadando de braçada. E querem também ingressar. Não há inocentes.” Ele observa ainda que, das instituições aceitas nos primeiros chamamentos, muitas não dispunham de estrutura necessária. “E com isso, vários estudantes precisam se deslocar 200 quilômetros para cursar os internatos. A faculdade fica em uma cidade e o centro onde ele fará a parte prática em outra. Será que o sistema funciona?”, questiona.
Procurado, o MEC não se manifestou até o fechamento deste texto.