
O que é atribuição exclusiva do médico? Quem imaginava que o tema se esgotaria com a edição da lei do ato médico, de 2013, enganou-se. As discussões saíram do Congresso e hoje estão na Justiça. Somente o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) propôs 33 ações judiciais contra resoluções ou normas editadas por conselhos de fiscalização de outras profissões da área de saúde, por suposta invasão de competência. Tais conselhos regulamentam atividades que, na avaliação de associações médicas, são inerentes à profissão.
A polêmica não está apenas em São Paulo. É um problema corporativo? Afeta a segurança do paciente? Ou é uma barreira aos serviços de saúde?
Não há uma resposta única a essas perguntas e isso fica estampado nas próprias decisões da Justiça. Há, sim, abusos, sobretudo de profissionais que gostariam de explorar o inesgotável mercado de procedimentos estéticos. Mas, ao mesmo tempo, muitas barreiras apresentadas pelas associações médicas são consideradas exagero.
Um exemplo claro é a acupuntura. A classe médica, que por anos questionou a técnica, hoje garante que, sim, ela pode ser eficaz. Mas sustenta: apenas médicos podem usá-la, por ser um procedimento invasivo. Por muito tempo, essa restrição foi classificada por profissionais de outras áreas de saúde como uma apropriação indevida. Por que, de um dia para o outro, uma técnica milenar torna-se atribuição exclusiva de uma classe que por anos duvidou de seu potencial?
A discussão ganha agora um novo capítulo. O Cremesp preparou e já enviou ao Palácio do Planalto uma proposta de decreto para restringir a edição das normas e resoluções de outras classes profissionais. O texto propõe que conselhos deverão observar os limites da legislação da profissão sujeita à fiscalização.
“Muitas portarias, resoluções destes conselhos acabam dando guarida a atividades que não são inerentes à classe profissional. Estão extrapolando a competência”, afirmou o secretário do Cremesp, Angelo Vattimo. Os últimos detalhes do texto foram acertados em uma reunião realizada há poucos dias. Vattimo contou que o encontro teria tido a participação do advogado do presidente Jair Bolsonaro, Frederick Wassef. “Acreditamos que o tema está bem adiantado.”
A minuta de decreto traz um texto curto. “Não se trata de reserva de mercado. Mas cada profissional tem sua área de atuação. Para procedimentos invasivos, a formação médica é indispensável. Assim como o diagnóstico terapêutico”, completou o secretário do Cremesp. Ele argumenta ainda que, quanto maior é a ocorrência dessa prática por outras categorias profissionais, maior o risco de cirurgias e tratamentos mal sucedidos.
Para defensores da minuta do decreto, a lei do ato médico é genérica, o que acaba abrindo espaço para abusos de outras classes profissionais. “O que estamos propondo pode também ajudar o Judiciário a nortear suas decisões”, disse Vattimo.
O secretário do Cremesp cita alguns exemplos do que considera exagero, como a regulamentação que permite a enfermeiros fazer ultrassonografia. Ou a harmonização orofacial, um conjunto de procedimentos para garantir a funcionalidade e a estética facial. Os dois temas foram discutidos na Justiça.
Recentemente, a Justiça Federal do DF julgou improcedente um pedido de anulação da resolução 198/2019 que reconhece a harmonização orofacial como especialidade odontológica. O pedido para anulação havia sido feito por uma sociedade de especialidade médica.
O Conselho Federal de Odontologia comemorou a decisão na Justiça, argumentando que a participação de dentistas nesta área é histórica. Citou ainda o fato de que no atendimento a pacientes acidentados no rosto, muitas vezes o dentista é chamado.
Vattimo avalia que a proposta de decreto feita pela entidade não limita o direito das demais classes profissionais.
O fato é que a assistência à saúde evolui, é feita por equipes multidisciplinares em que a busca do consenso deveria ser parte do cotidiano. E tal consenso deveria também ser buscado nas regulamentações. Enquanto a discussão ficar restrita à Justiça – e a edição de um decreto dificilmente vai reduzir a judicialização –, poucas são as chances de um consenso. Mais ainda, maior o risco de que os problemas reais, como a falta de acesso a tratamentos e a atuação de maus profissionais (qualquer que seja a formação) fiquem sem solução.