Quando o mundo se deparou com a chegada do novo coronavírus e as fronteiras se fecharam, dificultando mais ainda a aquisição de produtos essenciais, um problema há tempos enfrentado no Brasil se escancarou: a alta dependência do mercado internacional para produtos de saúde. Diante da dificuldade de obtenção de itens essenciais, como luvas, máscaras e respiradores, arranjos foram realizados às pressas.
Era a constatação prática da importância de se discutir alternativas para integrar a cadeia de produção na saúde. Se é impossível uma completa autonomia no mundo globalizado, ao menos ter um papel importante neste mercado.
A necessidade de o Brasil ter maior desenvoltura nessa área já havia permeado discussões nos anos 1990, quando o país buscava garantir aos pacientes portadores de HIV tratamento com medicamentos eficazes e com menor efeito colateral. O tema ganhou fôlego no momento em que as Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDP) começaram a ser feitas, mas aos poucos perdeu a relevância inicial.
A recente redução de casos graves de Covid-19 e a falta de produtos baratos, mas essenciais, para o tratamento de alguns problemas de saúde fizeram com que o tema ganhasse novamente maior espaço. O complexo industrial da saúde tem se tornado, por exemplo, rotina nas manifestações públicas do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga.
A pasta quer reformular as políticas de incentivo do complexo. A ideia é fazer uma reavaliação das parcerias feitas até o momento entre laboratórios públicos e privados e dar continuidade aos contratos considerados de fato importantes.
As mudanças já são tema de reuniões realizadas entre a Saúde e os ministérios da Economia e da Ciência, Tecnologia e Inovações. Entre os tópicos centrais estão as as PDPs. Atualmente, muitas das propostas destas parcerias estão em compasso de espera. A redução na velocidade da concretização dos acordos foi atribuída às exigências de órgãos de controle e também à pandemia. A pausa, no entanto, também deu força à ideia de reavaliação.
“As PDPs são instrumento de fomento da indústria nacional. Não podem ser confundidas com reserva de mercado para medicamentos sem licitação e a um preço mais alto”, resumiu em entrevista ao JOTA Rodrigo Cruz, dias antes de deixar a secretaria-executiva do Ministério da Saúde.
A ideia é fazer uma análise dos acordos e descartar os considerados desnecessários. Além da avaliação dos contratos, a reformulação envolverá o estudo das regras que norteiam o setor. Há, por exemplo, a intenção de se revisar o Decreto 9.245/2017, que instituiu a Política Nacional de Inovação Tecnológica da Saúde.
Cruz informou ainda haver um esforço para identificar outras estratégias que possam incentivar a produção, além das PDPs. “Há outros arranjos, como encomendas tecnológicas, que já se mostraram muito eficazes. Por que não pensar nas demais alternativas?”, disse Cruz. O desenvolvimento de vacinas é um exemplo.
Além dos instrumentos usados para incentivar o complexo industrial, o governo quer discutir quais as áreas primordiais para atuação. “O que é importante? Medicamentos biológicos ou produtos sintéticos? O que devemos fomentar? Será que não seria importante fomentar medicamentos de baixo custo que eventualmente não tenham interesse comercial e faça sentido para laboratório público? Isso merece uma reflexão”, afirma Cruz.
Em entrevista ao JOTA, o professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e ex-secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde, Denizar Vianna, afirma ser essencial o investimento no complexo industrial da saúde. A exemplo de Cruz, ele também considera importante uma revisão da estratégia adotada nos últimos anos.
A começar pela forma como os projetos foram escolhidos. Vianna critica, por exemplo, as iniciativas pulverizadas. “É essencial eleger prioridades, investir de forma objetiva. Mas o que assistimos é que parte das pesquisas é feita de forma segmentada.”
A falta de objetividade se repete também nas parcerias. Como exemplo, Vianna cita investimentos realizados no desenvolvimento de biossimilares. Para ele, não faz sentido assumir a produção de mais de um biossimilar com indicações terapêuticas semelhantes, para incentivar a concorrência.
“Isso gera um problema enorme na assistência farmacêutica. Porque, embora possam até ter indicação para a mesma doença, não há intercambialidade imediata. Diferentemente de outros medicamentos, uma pessoa que usa o remédio biológico A não pode substituí-lo pelo B de forma imediata, automática, apenas porque a disponibilidade é maior.”
Vianna avalia ainda ser necessária a adoção de metas mais ambiciosas. “Hoje, o foco está na produção de determinados medicamentos. Mas precisamos mirar na pesquisa e na inovação. Precisamos investir no desenvolvimento de produtos e tecnologia. Se formos apenas produtores, esse ciclo de dependência nunca será rompido.”
O professor cita a Embraer e a Embrapa. “São exemplos de união da pesquisa, da indústria e do mercado. Essa triangulação é importante, é bem-sucedida.” Na saúde, contudo, não há essa articulação. Para Vianna, tal salto se dará também com a mudança da governança. “A atividade não deveria ficar vinculada a uma pasta. Vários setores estão envolvidos, é um tema estratégico, que extrapola uma área específica. Deveria ser tratada como uma política de Estado.”
Nesse raciocínio, laboratórios públicos assumirem a produção de itens considerados pouco atrativos para o setor privado teria um papel relevante. Mas, ao mesmo tempo, arriscado, avalia o professor. Deixar sob responsabilidade exclusiva de laboratórios públicos produtos com pouco lucro é reduzir muito a possibilidade de essas instituições alcançarem objetivos mais ambiciosos. Mais do que isso, é praticamente decretar o sucateamento dessas instituições. O ideal seria um equilíbrio entre produção de remédios essenciais, mas pouco lucrativos, com investimentos em áreas mais rentáveis. Pensar nas drogas para doenças negligenciadas, mas também nas inovadoras. Esse balanço não é simples. Respostas imediatas são tentadoras, mas dificilmente trazem bons resultados.