Coluna Fiscal

Orçamento em guerra: o processo orçamentário e a disputa pelo Poder

Como expresso por Victor Hugo, “o orçamento é um enorme monstro, um peixe em direção ao qual todos lançam o anzol”

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Crédito: Unsplash

Le budget, monstre énorme, admirable poisson, à qui de toutes parts ont jette l’hameçon (Victor Hugo)

Vemos dias agitados para o Direito Financeiro. E, por óbvio, para a definição de questões fundamentais para a sociedade, a administração pública e o país.

Na segunda-feira (23/08) foi publicada, com vetos, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) da União para o exercício financeiro de 2022 (Lei 14.194, de 20.8.2021). Com atraso, já que deveria ter sido aprovada até o final do mês de junho, estando, portanto, praticamente dois meses além do prazo constitucionalmente estabelecido. O que, infelizmente, está se tornando uma regra, apesar das rígidas normas que estabelecem as datas para sua apresentação, tramitação e aprovação.

A LDO, por previsão constitucional, tem funções extremamente importantes, sendo a principal orientar a elaboração da lei orçamentária anual e fixar as metas e prioridades da administração pública (CF, art. 165, § 2º)[1], para o que mostra importante sua aprovação tempestiva.

Atualmente, no entanto, essas funções têm sido bastante ampliadas, sendo acrescidas várias delas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (art. 4º, principalmente), como a inclusão do anexo de metas fiscais, onde se definem as metas de resultado nominal e primário e montante da dívida pública, o que tem balizado a execução orçamentária do exercício financeiro subsequente. E muitas outras que agregam competências e ampliam a abrangência e importância da LDO.

Às vezes até de modo questionável, seguramente em face da necessidade de suprir lacunas na legislação que regulamenta a elaboração e execução dos orçamentos públicos, em vigor há mais de 50 anos (Lei 4.320, de 1964). É o que se pode notar nessa acirrada disputa de poder que tem sido observada nos últimos anos, muitas vezes com indesejável esgarçamento nas relações entre os Poderes constituídos. E, como não poderia deixar de ser, o orçamento ocupa posição central nessa verdadeira guerra. Que, registre-se, não é nova, nem exclusividade nacional, não sendo exagero considerá-la permanente e mundial. Como expresso por Victor Hugo há mais de um século, na frase epigrafada nesse texto, “o orçamento é um enorme monstro, um peixe em direção ao qual todos lançam o anzol”.

Veja-se a recente promulgação da LDO federal, na qual duas questões chamaram a atenção da mídia: o chamado “fundão eleitoral” e o “orçamento secreto”, sobre o qual já nos referimos em textos anteriores nessa Coluna Fiscal.

No caso do “fundão eleitoral”, que acabou tendo vetado o dispositivo, houve a inserção, no projeto de LDO, quando cuida da estrutura e organização dos orçamentos, de regra balizadora das fontes de financiamento do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (mais conhecido como “fundão eleitoral”), o que poderia dar margem a um substancial aumento nos recursos do fundo[2]. Uma disposição não típica da LDO, que pouca relação tem com os princípios que a orientam, de dar as diretrizes ao orçamento e fortalecer o sistema de planejamento orçamentário.

No entanto, vê-se ter sido meio utilizado para viabilizar aumento de recursos para fins políticos, “engordando o caixa” para o financiamento das campanhas eleitorais, em uma evidente tentativa de apropriação de recursos públicos para atender interesses dos parlamentares. Uma evidência clara de uma das armas utilizadas nessa “guerra orçamentária”.

Outro exemplo está na polêmica do “orçamento secreto”[3], ainda em debate na mídia, em razão de dispositivos também inseridos na LDO, que foram mantidos[4]. Nesse caso, a questão de fundo envolve uma antiga polêmica em matéria de processo orçamentário: as emendas parlamentares, que podem ser consideradas as mais antigas “armas” na “guerra orçamentária”.

Igualmente uma questão de menor relevância para os propósitos da LDO, as emendas parlamentares, cuja função é permitir a participação efetiva do Poder Legislativo na formação da lei orçamentária anual, apareceram nas últimas leis de diretrizes orçamentárias. E a razão dessa recente inserção obscurece o mesmo propósito: tentar assegurar mais recursos diretamente relacionados a interesses dos parlamentares.

Desde quando ficaram bastante conhecidas, especialmente em razão do escândalo que resultou na “CPI dos anões do orçamento”, no início da década de 1990, as emendas parlamentares têm sofrido alterações importantes em seu regime jurídico.

As várias emendas que trataram do “orçamento impositivo”, especialmente a partir da emenda constitucional 85, de 2015, impuseram maior rigidez na execução orçamentária das referidas emendas, mitigando a discricionariedade que sempre dava margem a negociações nem sempre republicanas para a liberação dos recursos. Uma poderosa arma largamente utilizada na disputa pelo poder por meio da guerra orçamentária, que não só é antiga, mas também disseminada em toda a federação e de natureza suprapartidária, sem coloração ideológica.

Mesmo assim, ajustes nas modalidades de emendas e respectivos regimes jurídicos fez nascer e ampliar a abrangência das “emendas de relator-geral”, do tipo RP 9[5], com potencial de alocar recursos de forma menos transparente, e alargar o campo para práticas não republicanas, mantendo em funcionamento essa poderosa arma de cooptação política.

E traz à tona outro evento de grande importância para o Direito Financeiro que se materializará nos próximos dias: a apresentação do projeto de lei orçamentária anual federal, que deverá ocorrer até o próximo dia 31 de agosto, em cumprimento às disposições constitucionais (ADCT, art. 35, § 2º, II).

Durante o processo de apreciação pelo Poder Legislativo do projeto de LOA que se iniciará logo após a apresentação, as emendas parlamentares a que se fez referência, que deveriam ser instrumentos, transformam-se em verdadeiras “armas” de negociação política na elaboração da lei orçamentária.

Aqueles que não conseguiram ver os interesses que defendem serem contemplados durante a fase administrativa de elaboração do projeto de lei orçamentária, agora transferem sua luta para o Congresso Nacional, o que muda o campo de batalha, mas sem alterar substancialmente as regras do jogo e a natureza dos interesses em disputa.

Infelizmente essas polêmicas acabaram deixando de lado aspectos mais relevantes da LDO, cujo debate ficou obscurecido. É o caso, por exemplo, da previsão de meta de déficit primário de quase 4,5 bilhões de reais (art. 3º da LDO), o que é péssimo para as contas públicas, que não conseguem ser superavitárias desde 2014, nos deixando próximos de completar uma década sem conseguir manter equilíbrio fiscal.

Pouca ou nenhuma importância se deu para as prioridades e metas para 2022, função principal da LDO recém aprovada, e que deveria estar no centro das atenções. Destaco até para que se tenha ciência: a) agenda para a primeira infância; b) despesas do Programa Casa Verde e Amarela; c) Programa Nacional de Imunização – PNI; e d) investimentos plurianuais em andamento.

Ou ainda as diretrizes referens à dívida pública, às despesas com pessoal e as prioridades estabelecidas no anexo III, que elenca as despesas não contingenciáveis. Sem esquecer dos anexos de metas e riscos fiscais, bem como os objetivos das políticas monetária, creditícia e cambial. Pontos sem dúvida mais importantes sobre os quais a nova LDO traz informações e decisões relevantes.

Fato é que nos próximos meses a guerra vai continuar, e possivelmente se intensificar, como ocorre todos os anos. A parte mais relevante da disputa pelo poder certamente terá na lei orçamentária as batalhas mais importantes. É fundamental que a sociedade esteja atenta e atuante, pois nesse caso o que está em jogo é sempre o dinheiro e o futuro de todos.



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[1] Como já nos referimos nos textos “LDO é instrumento eficiente para a administração pública” e “Decisões financeiras fundamentais são tomadas na Lei de Diretrizes Orçamentárias”, ambas no livro Levando o Direito Financeiro a sério – a luta continua (São Paulo: Blucher, 2019), páginas 151-154 e 155-160, respectivamente.

[2]  ‘Fundão eleitoral’, LDO e dever de transparência nos gastos públicos (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/fundao-eleitoral-ldo-e-dever-de-transparencia-nos-gastos-publicos-29072021).

[3] Orçamento secreto (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/orcamento-secreto-federal-27052021).

[4] A polêmica centra-se nas chamadas “emendas de relator-geral”, previstas no art. 7º, § 4º, II, “c”, item 4 da LDO 2022 (Lei 14.194/2021).

[5] Sobre as emendas parlamentares, veja-se a recente Coluna Fiscal de Marcus Abraham sobre o tema: Entendendo as emendas parlamentares orçamentárias (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/entendendo-as-emendas-parlamentares-orcamentarias-12082021). Referência ao tema também na Coluna Fiscal de minha autoria: Disputa por recursos e poder gera nova crise orçamentária (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-fiscal/disputa-por-recursos-e-poder-gera-nova-crise-orcamentaria-15042021).

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