Pandemia

O inimigo mora ao lado: ‘orçamento de guerra’ exige controle e responsabilidade

Facilidades que abrem para a solução da crise são as mesmas que os oportunistas aproveitam para seus malfeitos

Foto: Waldemir Barreto/Agência Senado

A pandemia do coronavírus trouxe, além de óbvias questões de saúde, muita discussão na área do Direito Financeiro, tendo em vista a urgente necessidade de instrumentos que viabilizem a alocação dos recursos públicos para fazer face à crise.

A maior novidade foi a proposta de “orçamento de guerra”, apresentada por meio da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 10/2020.

O sistema orçamentário brasileiro prevê, para cada ente da federação, três leis de natureza orçamentária: o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) – o orçamento propriamente dito.

Este último, onde estão definidas para o exercício financeiro as previsões de receita e a alocação das despesas públicas, é materializado em lei única, e anual, que se divide em três partes: o orçamento fiscal (que compreende os Poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público), o orçamento de investimento das estatais (mais precisamente, das empresas em que o ente, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto), e o orçamento da seguridade social (que abrange todas as entidades e órgãos a ela vinculados, da administração direta ou indireta, bem como os fundos e fundações instituídos e mantidos pelo Poder Público).[1]

A leitura do texto da proposta não permite concluir, como chegou a ser divulgado, ter sido criada uma “quarta” modalidade de divisão da lei orçamentária, para ser acrescida no rol acima.

Também não se constata pela PEC ter sido constituído um fundo específico para gerenciar os recursos relacionados à pandemia, para o qual poderiam ser destinadas receitas a serem utilizadas para a finalidade de prevenção e combate à pandemia.

Prevê-se a adoção de um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações durante o estado de calamidade pública decorrente da pandemia, prevendo medidas de facilitação de contratações pelo Poder Público, flexibilização das restrições para despesas públicas, e normas excepcionais sobre execução orçamentária, endividamento e fiscalização.

O que permite concluir que, na verdade, o que se criou não foi exatamente um “orçamento de guerra”, no sentido de um “orçamento paralelo”, ainda que na forma de um fundo, para gerir os recursos a serem destinados e gastos com a excepcionalidade desta pandemia.

Constata-se, como a própria ementa da lei menciona, a criação de um “regime extraordinário” para a realização de despesas públicas, com um tratamento diferenciado e privilegiado, nos aspectos fiscais, financeiros e de contratações públicas, para o enfrentamento desta crise.

É sempre relevante destacar que excepcionalidades não são fatos desconhecidos do legislador, e no âmbito da legislação financeira há previsões de regimes de exceção, com instrumentos e regras especiais para estas situações.

É o caso de calamidades públicas, que permitem regime diferenciado nos termos do art. 65 da LRF (sobre o qual já escrevemos na coluna Direito Financeiro em tempo de coronavírus, publicada no último dia 19 de março), créditos extraordinários (Lei 4320, arts. 40, III e 44), estado de defesa, estado de sítio, entre outros.

Boa parte das disposições da PEC não dependem de alteração constitucional, e poderiam ser veiculadas por normas infraconstitucionais. Mas a gravidade da atual crise está exigindo modificação em pelo menos uma das limitações constitucionais, o que justifica a necessidade de uma PEC: mitigar os efeitos da “regra de ouro” prevista no art. 167, III, da Constituição.

A PEC, na redação que confere ao art. 115, § 7º, prevê que “será dispensada, durante a integralidade do exercício financeiro em que vigore a calamidade pública, a observância do disposto no inciso III do art. 167 desta Constituição”; permite-se assim o endividamento para financiar despesas correntes.

Abre-se, dessa forma, “espaço orçamentário” para o endividamento que, em circunstâncias normais, tenderia a levar ao descontrole das finanças públicas, risco que permanece se usada essa estratégia, o que exige especial atenção no acompanhamento da evolução dos fatos em se implementando medidas nesse sentido.

As demais disposições da PEC, bem analisadas na coluna de Marcus Abraham do último dia 9 de abril (Orçamento de guerra contra a Covid-19), evidenciam o propósito da lei, que é facilitar o endividamento e os gastos públicos, desobrigando-os de respeitar limites impostos pelas normas de gestão fiscal responsável, durante o período excepcional desta pandemia.

Estabelecer um “regime extraordinário”, como está disposto na PEC, sem um efetivo “orçamento paralelo”, ainda que na forma de um fundo, seguramente dificulta o controle e a transparência da atividade financeira relacionada aos recursos e despesas ligados à pandemia na saúde e que motivou a proposição desta emenda constitucional.

A existência de um espaço orçamentário próprio e claramente identificado, quer por meio de um “orçamento paralelo” ou fundo, para separar as receitas e despesas alocadas para uso específico e temporalmente limitado nesta excepcionalidade, seguramente daria maior transparência, e permitiria avaliar a quantidade dos recursos e pertinência das fontes de receita, bem como a destinação das despesas.

Além das disposições da PEC, já está em vigor regime especial em matéria de responsabilidade fiscal, ante a recente decisão liminar monocrática do Ministro Alexandre de Moraes, na ADI 6.357, que conferiu interpretação conforme aos artigos 14, 16, 17 e 24 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e art. 114, caput, in fine, e § 14 da Lei de Diretrizes Orçamentárias da União (LDO) 2020, e com isso “afastar a exigência de demonstração de adequação e compensação orçamentárias em relação à criação/expansão de programas públicos destinados ao enfrentamento do contexto de calamidade gerado pela disseminação de Covid-19”, o que já flexibiliza bastante o regime jurídico de gestão fiscal responsável.

Em situações excepcionais e graves, que exigem tratamento que está se equiparando a períodos de guerra, é compreensível e justificável a adoção de medidas atípicas, sem que isto importe em violar o ordenamento jurídico, que já contém instrumentos próprios para estas situações; e, se não os tiver, deve ser regularmente alterado pelas vias constitucionais e legais.

Convém lembrar que a responsabilidade na gestão fiscal pressupõe ações planejadas e transparentes, a fim de prevenir riscos e corrigir desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas (LRF, art. 1º, §1º), para o que foram criados limites de diversas naturezas, especialmente em relação a gastos com pessoal e endividamento. A imprevisibilidade dos fatos em muito prejudicou o planejamento do setor público, uma vez que agora o governo tem de agir às pressas, e possivelmente exceder-se nos gastos e endividamento além dos limites previstos para uma gestão com responsabilidade fiscal.

São razões que exigem maior atenção a aspectos como a transparência das informações financeiras e administrativas, e um especial zelo dos órgãos de fiscalização, uma vez que o necessário “afrouxamento” das regras, se de um lado é necessário para permitir a ação rápida, eficiente e tempestiva, por outro deixa espaços abertos para que se cometam irregularidades e desvio de recursos[2], o que seria por demais inaceitável em momentos como esse, em que cada centavo faz muita falta e pode salvar vidas. E já há notícias de que começaram a ocorrer (A corrupção nos tempos da Covid-19, Estadão, blog Gestão, Política & Sociedade, em 12.4.20)

Caberá neste momento aos órgãos de controle redobrar a vigilância, a fim de que o orçamento público, especialmente com este “regime de guerra”, seja otimizado e útil como instrumento para abreviar e minimizar os danos causados, realizando políticas públicas e concretizando direitos fundamentais.[3]

Roger Leal, em texto recente aqui publicado, chama a atenção ainda para a mitigação dos controles estabelecidos pela PEC, amortecendo o sistema de freios e contrapesos, o que exige cuidados redobrados, para que essa alteração constitucional em momento de crise não abra espaço para ações de cunho autoritário e o vírus acabe por contaminar a democracia.[4]

A flexibilização das regras fiscais, é importante ressaltar, não desnatura os princípios de gestão fiscal responsável, que devem permanecer hígidos, para o que se exige ainda mais responsabilidade nas ações governamentais, bem como um controle mais atento e eficiente, não permitindo que se crie “um Estado de exceção fiscal casuístico e desvigiado”, como bem expressou Doris Coutinho.[5]

A situação de calamidade ora vivenciada é transitória, espera-se que seja a mais breve possível, e não se deve permitir que as exceções virem regras e abram espaços para uma farra fiscal. Como alerta com propriedade o ex-governador Paulo Hartung (ES), “socorro não pode virar despesa permanente”.[6]

Isso exigirá dos comandantes desse processo que, durante e após a crise, saibam agir com prudência e responsabilidade. Diz o velho ditado popular que a diferença entre o veneno e o remédio é a dose, e a competência e habilidade dos médicos está justamente em saber o equilíbrio exato para o sucesso do tratamento.

As facilidades que o impropriamente denominado “orçamento de guerra” abrem para a solução da crise são as mesmas que os oportunistas aproveitam para seus malfeitos, estão sempre próximos e atentos e não costumam perdê-las.

Há que se tomar todas as cautelas, indispensáveis nesse momento para que a necessária abertura que se faz traga apenas os benefícios que dela se espera, caso contrário os prejuízos serão ainda maiores.

 


[1] Constituição, art. 165, § 5º.

[2] O que já está chamando a atenção dos órgãos de contole: Pandemia flexibiliza licitações, acende alerta de órgãos anticorrupção e leva gestões à Justiça, em Folha de S. Paulo, 10.4.2020.

[3] Como bem colocado por DANTAS, GONÇALVES, SANTOS e CORDEIRO, em “Crise e execução do orçamento público no contexto atual brasileiro” (Revista Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 20, n. 230, p. 9-19, abril 2020).

[4] Emergência, Constituição e pandemia: o caso da PEC do “orçamento de guerra”, em  10 de abril.

[5] Estado de exceção fiscal e a flexibilização do controle de execução orçamentária, em Estadão, Blog Fausto Macedo, 1º.4.2020.

[6] Não podemos misturar calamidade do coronavírus com farra fiscal, Estadão, em 9 de abril.

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