Pandemia

Direito Financeiro em tempos de coronavírus

Não faltam instrumentos para o setor público utilizar com o objetivo de superar momentos de crise

(Brasília – DF, 18/03/2020) Coletiva à Imprensa do Presidente da República, Jair Bolsonaro e Ministros de Estado. Foto: Marcos Corrêa/PR

A grave pandemia, decorrente da disseminação do coronavírus, que passou a ser o centro das preocupações no mundo todo nas últimas semanas, traz a oportunidade de demonstrar a importância do Direito Financeiro em praticamente todos os aspectos da vida em sociedade.

Muitas das soluções para atenuar e resolver esse problema de saúde pública passam pelo Direito Financeiro, cujos instrumentos terão de ser utilizados tanto para evitar o avanço da pandemia, quanto para resolver as questões urgentes e atenuar os efeitos dela decorrentes, e esse é o momento propício para falar sobre o tema.

Os orçamentos públicos estão materializados em leis, nas quais encontramos a previsão de receitas e a destinação dos gastos públicos para o exercício financeiro seguinte e, como tal, tem de ser cumprida, uma vez que espelha a vontade da sociedade em relação ao uso dos recursos arrecadados e disponíveis.

Sendo uma lei que precede os fatos, fica obviamente sujeita a imprecisões, uma vez que o futuro não é perfeitamente previsível, intercorrências surgem e exigem adaptações em seu conteúdo.

Por essa razão é que os orçamentos públicos são leis necessariamente dotadas de flexibilidade, característica essa elevada por muitos autores à condição de princípio[1], e os fatos atuais são o melhor exemplo dessa necessária flexibilidade da lei orçamentária.

No âmbito federal, a atual lei orçamentária (Lei 13.978), elaborada ao longo do ano de 2019 e publicada em 17.1.2020, não tinha como prever o que vemos acontecer hoje, razão pela qual terá de se adaptar à nova realidade.

São muitos os instrumentos pelos quais isso é possível, mostrando que a legislação orçamentária já prevê formas de flexibilizar o orçamento e respeitar a legalidade.

É o caso, por exemplo, dos créditos extraordinários, previstos no art.  41, III, da Lei 4.320/1964, modalidade de crédito adicional destinado a “despesas urgentes e imprevistas, em caso de guerra, comoção intestina ou calamidade pública”.

Esse instrumento foi recentemente utilizado justamente para essa finalidade, como se pode ver da Medida Provísória 924, de 13 de março de 2020, nas quais disponibilizam-se recursos da ordem de 5 bilhões de reais para programas nas áreas da saúde e educação voltadas à questão do coronavírus. Por meio da anulação de dotações para outras finalidades, foram contempladas ações orçamentárias como o “Enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional Decorrente do Coronavírus”, sob gestão da unidade orçamentária Fundo Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde, com 4,8 bilhões de reais.

É importante ressaltar que atender necessidades públicas imprevistas, urgentes e relevantes, como é o caso, não importa em agir de forma fiscalmente irresponsável, comprometendo a boa gestão das finanças públicas, uma vez que a legislação vigente já contempla instrumentos que permitem conduzir a atividade financeira do Estado de forma a acolher essas intercorrências.

O art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, por exemplo, prevê expressamente que “na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembléias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios, enquanto perdurar a situação:

I – serão suspensas a contagem dos prazos e as disposições estabelecidas nos arts. 23 , 31 e 70;

II – serão dispensados o atingimento dos resultados fiscais e a limitação de empenho prevista no art. 9º”, evidenciando, como exposto, que a responsabilidade fiscal não é incompatível com emergências, mesmo as mais graves, e não precisa ser flexibilizada nem desrespeitada, como asseveram vários especialistas no tema[2].

E o estado de calamidade pública, cujos pressupostos tudo indica estarem presentes, já foi solicitado ao Congresso Nacional[3], e permitirá a utilização de instrumentos jurídico-financeiros capazes de viabilizar as medidas necessárias na área da saúde que levem à melhor solução possível para o problema.

Outra função importante dos orçamentos públicos é a de intervenção no domínio econômico, podendo agir de forma anticíclica, e reverter tendências do comportamento dos agentes econômicos, o que pode ser extremamente relevante em épocas de crises agudas e temporárias, mitigando os efeitos danosos à sociedade. Uma função que é e sempre foi utilizada, qualquer que seja o modelo de Estado adotado, distinguindo-se tão somente pela maior ou menor intensidade das intervenções.

Em contrapartida à teoria liberal do laissez-faire de Adam Smith, momentos como este que vivemos de desaceleração econômica nos fazem recordar dos ideais da Escola Keynesiana que propõe políticas fiscais compensatórias e de aumento de déficit público e dos gastos públicos como complemento ao consumo privado em períodos recessivos. Segundo esta linha, o Estado deveria assumir uma postura mais ativa e intervencionista – com aumento de gastos em geral e sobretudo de investimentos – para movimentar a economia e superar as insuficiências de demanda do setor privado.

Cabe destacar que a OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a partir da publicação em 2015 de um trabalho elaborado pelo “SBO – Working Party of Senior Budget Officials”, no qual são apresentados 10 princípios orçamentários, com o objetivo de orientar as boas práticas sobre toda a atividade orçamentária, provendo os gestores públicos de instrumentos para aprimorar os seus sistemas orçamentários, visando causar um impacto positivo na vida dos cidadãos, nos apresenta, logo na sua primeira recomendação, a adoção de políticas anticíclicas em períodos recessivos.

Segundo a recomendação nº 1, os orçamentos públicos deverão: a) possuir mecanismos e procedimentos para apoiar, de maneira prudente, os governos na implantação de políticas econômicas cíclicas neutras ou anticíclicas; b) estar comprometidos com uma política fiscal sólida e sustentável; c) possuir regras fiscais claras, verificáveis e compreensíveis pelo cidadão; d) aplicar a gestão orçamentária com recursos para cada ano, considerando um horizonte fiscal de médio prazo, e com metas orçamentárias globais para assegurar que todos os elementos das receitas, despesas e políticas econômicas sejam consistentes e gerenciados em conformidade com os recursos disponíveis.

Nesse sentido veem-se uma ampla gama de medidas, de diversas naturezas, que podem ser úteis.

Os benefícios fiscais, com a concessão de vantagens tributárias nas suas variadas modalidades, observados os preceitos legais de responsabilidade fiscal, como isenções, anistias, remissões, diferimento no pagamento, dentre outras, permitem aos devedores do Fisco ganharem fôlego para a retomada de suas atividades, e com isso recuperar-se durante o período de crise, sem que consolidem o encerramento das atividades econômicas, com prejuízo para todos, perda de empregos, problemas sociais e até para o próprio Estado, que deixará de receber os tributos.

Benefícios creditícios, com a facilitação na concessão de empréstimos, especialmente a empresas que precisam de recursos momentaneamente para vencer a crise e continuar investindo e mantendo suas atividades, tem se mostrado desde sempre um instrumento que, se usado de forma responsável e corretamente direcionado, fomentam o desenvolvimento e retomada de economia em situações de crise, sem que importe em agir de forma fiscalmente irresponsável.

Gastos diretos também podem injetar recursos na economia e promover a reversão para ciclos virtuosos. Já se anunciam medidas nesse sentido, como adiantamento de abono salarial e ampliação do bolsa família[4], voucher para trabalhadores informais[5], dentre outras.

O ordenamento jurídico em matéria de Direito Financeiro é amplo, e nele se vê que não faltam instrumentos que o setor público pode utilizar para superar momentos de crise, por mais agudas e intensas que sejam, sem desnaturar os princípios do equilíbrio econômico e da responsabilidade fiscal. É só saber usá-los com sabedoria e sem precipitações, que é o que se espera nesse momento difícil pelo qual passa não só nosso país, mas o mundo todo.

 


[1] Vide José Afonso da Silva, Orçamento-Programa, RT, 1973, p. 155.

[2] Como Selene Peres Nunes, José Roberto Afonso, Felipe Salto e Júlio Marcelo de Oliviera, em Lei da Responsabilidade Fiscal é forma de abrandar crise, apontam analistas (Correio Braziliense, em 16.3.2020).

[3] Serra se antecipa e vai apresentar decreto legislativo para reconhecer calamidade pública (Estadão, em 17.3.2020); Planalto pedirá ao Congresso que reconheça estado de calamidade pública (Valor Econômico, em 17.3.2020).

[4] Contra vírus, governo prevê injetar R$ 147 bi na economia – Adiantamento de abono salarial e ampliação do Bolsa Família estão entre as medidas anunciadas, em Folha de S. Paulo, versão impressa, 17.3.2020, p. A1.

[5] Bolsonaro propõe voucher para informais e Guedes estuda suspensão de contratos de trabalho, em Folha de S. Paulo, 17.3.2020.