Análise

Como garantir a sobrevivência durante e no pós-pandemia?

Uma análise sobre os programas Renda Brasil, Coronavoucher e Bolsa família

stf bolsa família
Crédito: Jefferson Rudy/ Agência Senado

O anúncio da proposta de criação do “Renda Brasil”, um benefício assistencial de caráter amplo e voltado a assegurar uma renda mínima aos desassistidos traz uma boa oportunidade para debater o tema, e institucionalizar de forma definitiva e organizada um benefício social que vem sendo concedido de forma circunstancial e em atenção a momentos e interesses políticos sazonais.

Já há muito se discutem as vantagens e desvantagens dos programas de transferência direta de renda aos cidadãos como forma de garantir a sobrevivência com dignidade da população mais pobre e necessitada.

Entre os objetivos fundamentais da nossa República Federativa está construir uma sociedade justa e solidária, erradicar a pobreza e reduzir desigualdades (Constituição, art. 3º, I e III), e instrumentos financeiros dessa natureza tem se mostrado úteis para atingi-los.

Temos um sistema de seguridade social, com a função de proteger todos os cidadãos em caso de necessidade, que abrange a saúde, a previdência social a assistência social. A assistência social deverá ser prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição (Constituição, art. 203). Inúmeras são as formas e possibilidades de benefícios que podem dar cumprimento às disposições constitucionais voltadas a atingir seus objetivos.

É o caso, por exemplo, do benefício de prestação continuada (BPC), fundamentado no art. 203, V, da Constituição, que garante uma prestação pecuniária mensal aos idosos e pessoas portadoras de deficiência incapazes de prover à própria subsistência[1], que tem sido indispensável para dar proteção e dignidade a essas pessoas.

Como essa, há muitas possibilidades e formas de atender as necessidades sociais, e de forma mais abrangente, universalizando o espectro de beneficiários e a amplitude dos benefícios.

O então Senador Eduardo Suplicy ficou bastante conhecido pela sua luta em prol da “renda básica de cidadania”, e tem se esforçado há décadas pela implementação do benefício[2].

Em 2004 – após uma tentativa que não prosperou como desejado de instituir o “Programa Fome Zero”, um complexo de órgãos e instrumentos voltados ao combate à fome –, foi criado o Bolsa Família, uma prestação assistencial composta pela unificação de vários outros benefícios então vigentes, como o bolsa-escola, bolsa-alimentação, auxílio-gás, entre outros[3].

Recentemente, em razão da crise aguda decorrente da pandemia causada pelo coronavírus-Covid 19, criou-se o “auxílio emergencial”, uma prestação mensal de R$ 600,00 pelo período de três meses, destinados aos trabalhadores de baixa renda (conforme o art. 2º da Lei 13.982/2020), apelidado de “coronavoucher”.

Há pouco, anunciou-se o “Renda Brasil”, proposta que pretende a ampliação do auxílio, agregando-se mais uma vez vários benefícios vigentes, como o abono-salarial, salário-família e seguro-defeso[4], na tentativa de ampliação do Bolsa Família e criação de outro mais abrangente e universal, aproximando-se da ideia da “renda básica de cidadania”, ou mesmo “renda mínima”.

Vê-se que há décadas criam-se benefícios com vários formatos, compondo uma ampla gama de instrumentos financeiros de transferência direta de renda do Estado aos cidadãos, com a finalidade de eliminar, ou ao menos mitigar, os efeitos da pobreza e reduzir as desigualdades sociais.

Vistos inicialmente com ceticismo, esses instrumentos financeiros têm mostrado em geral bons resultados, e estão se tornando uma política pública permanente em muitos países, e muitas vezes necessária, como em situações emergenciais, exemplificada de forma clara com a atual crise em função dessa pandemia sanitária de proporções mundiais.

O tema passou a despertar o interesse e a atenção de vários governos. As diversificadas formas de transferência de renda condicionada (CCT – Conditional Cash Transfer) disseminaram-se pelo mundo afora nos últimos vinte anos[5], multiplicando-se os exemplos adotados, especialmente nos países mais pobres, mas incluindo também alguns países desenvolvidos.

Cada vez mais bem vistos pelos estudiosos, e acolhidos pelos políticos, são produzidos trabalhos sobre o tema[6], e projetos de lei em andamento tramitam no Congresso Nacional, estando em discussão vários modelos, com ou sem condicionalidades, e as respectivas formas e fontes de financiamento[7].

Estabelecer ou não condicionalidades, como vincular à manutenção da educação de crianças, a mais comum nos países que implantaram programas dessa natureza[8], é uma das muitas questões a serem postas em debate, pois é amplo o leque de incentivos que podem acompanhar o programa e fomentar o desenvolvimento social. São úteis ainda como mecanismos de alerta, podendo revelar a ausência de serviços públicos essenciais e motivando o governo a supri-los[9]. Os critérios e requisitos para a concessão dos benefícios podem variar indefinidamente, dada a dificuldade em identificar os que mais colaboram para a redução da miséria e das desigualdades.

Possíveis externalidades negativas, como um eventual desincentivo ao trabalho, que já foi obstáculo ao avanço de projetos iniciais, mostraram-se menos preocupantes, mas não podem ser deixadas de lado. As externalidades positivas, difíceis de identificar e quantificar, mas inegáveis, como a melhoria nas condições de vida, sob o apecto social, e  o efeito multiplicador que impacta positivamente na economia, precisam ser levadas em consideração.

Assista ao novo episódio do podcast Sem Precedentes sobre coesão do STF ao manter inquérito das fake news:

A construção de um benefício assistencial dotado de amplitude, abrangência e universalidade, e que seja sustentável, é extremamente complexa, dadas as infinitas formas de estabelecer as fontes de receita, dimensão, destinatários, valores, critérios de distribuição e uma multiplicidade de outros fatores envolvidos.

O custo de um programa dessa natureza e magnitude é evidentemente muito alto, o que exige esforços no sentido de assegurar sua sustentabilidade financeira. No entanto, ante os bons resultados que se tem observado para o desenvolvimento social, e sua disseminação crescente, trazem evidências de ser este um caminho sem volta.

Acresçam-se os indícios de dificuldades, cada vez maiores, de manter um sistema de previdência social sustentável, e com projeções de piora para o futuro, vê-se pela frente uma tendência de aumento na demanda por benefícios assistenciais em detrimento dos previdenciários. O avanço das novas tecnologias, a “indústria 4.0”, a crescente informalização e a mudança nas relações de trabalho e empregabilidade anunciam um quadro nada animador para o futuro da previdência social. E, por consequência, uma dependência cada vez maior do sistema de assistência social.

São razões que justificam – na  verdade, tornam imprescindível –, levar a sério a questão. Há que se aproveitar o momento, que exige agir para “apagar um incêndio” de proporções gigantescas, para que se estruture um sistema de assistência social universal e sustentável, com critérios claros de justiça distributiva, evitando-se a pulverização de benefícios, tornando o sistema mais simples, transparente e suscetível de controle.

O aperfeiçoamento dos cadastros, identificação dos necessitados, logística, operacionabilidade do sistema, desenvolvimento de tecnologias e outras necessidades que tiveram de ser atendidas às pressas ajudam em muito vencer boa parte das dificuldades, e tornam cada vez mais próximo e factível avançar nesta agenda fundamental para o desenvolvimento econômico e social.

“No meio da dificuldade encontra-se a oportunidade”, disse o gênio Albert Einstein. E ela não pode ser perdida neste momento.

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[1] Constituição, art. 203. “A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: (…) V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.” Vide ainda a Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS (Lei 8.742/1993), arts. 20 e seguintes.

[2] Expõe o tema em sua obra Renda de cidadania – A saída é pela porta (7ª. Ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo / Cortez, 2004).

[3] Lei 10.836/2004, art. 1º, parágrafo único: “O Programa de que trata o caput tem por finalidade a unificação dos procedimentos de gestão e execução das ações de transferência de renda do Governo Federal, especialmente as do Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à Educação – Bolsa Escola, instituído pela Lei n. 10.219, de 11 de abril de 2001, do Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA, criado pela Lei n. 10.689, de 13 de junho de 2003, do Programa Nacional de Renda Mínima vinculada à Saúde – Bolsa Alimentação, instituído pela Medida Provisória n. 2.206-1, de 6 de setembro de 2001, do Programa Auxílio-Gás, instituído pelo Decreto n. 4.102, de 24 de janeiro de 2002, e do Cadastramento Único do Governo Federal, instituído pelo Decreto n. 3.877, de 24 de julho de 2001.”

[4] Sem orçamento extra, novo Bolsa Família só redistribui dinheiro entre os mais pobres. Folha de S. Paulo, 13.6.2020.

[5] In fighting poverty, cash transfer programs should be wary of negative spillovers. The World Bank, december 27, 2019 (https://www.worldbank.org/en/news/feature/2019/12/27/cash-transfer-programs-should-be-wary-of-negative-spillovers)

[6] Veja-se, entre outros: PIERDONA, Zelia L.; LEITÃO, André S.; FURTADO Filho, Emanuel T. Primeiro o básico. Depois, o resto: O direito à renda básica. Revista Jurídica – Unicuritiba, v. 02, p. 390-417, 2019; SOARES, Sergei; BARTHOLO, Letícia; OSÓRIO, Rafael. Uma proposta para a unificação dos benefícios sociais de crianças, jovens e adultos pobre e vulneráveis. Texto para discussão 2505. Brasília: IPEA, 2019; e ainda NERI, Marcelo. Uma próxima geração de programas de transferência de renda condicionada. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro 51 (2): 168-181, mar-abr 2017.

[7] Debate sobre renda básica deixa de ser utopia e mobiliza economistas. Folha de S. Paulo, 13.6.2020.

[8] Há outras condicionalidades, como ligar a aspectos de saúde e nutrição, também bastante utilizadas.

[9] Nesse sentido, Diogo Coutinho, O direito nas políticas sociais brasileiras: um estudo sobre o Programa Bolsa Família (In SHAPIRO et al – Orgs. Direito e Desenvolvimento, Saraiva-Direito GV, 2012), p. 111.

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