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Vidas na caneta de um juiz

Caneta institucional tem força, mas costuma se mover com mais determinação quando a sociedade clama por justiça

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Ministro Edson Fachin durante a sessão da 2ª Turma / Crédito: Rosinei Coutinho/SCO/STF

Uma decisão liminar do ministro Edson Fachin poupou 95 vidas, entre maio e junho deste ano e, no mesmo período, os homicídios dolosos caíram mais de 6%, os crimes violentos letais e intencionais ficaram quase 7% abaixo do mês anterior e roubos de carga caíram pouco mais de 11%. Essas informações foram divulgadas pela Rede de Observatórios da Segurança com base em dados oficiais do Instituto de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro.

Encontrei um dos líderes das favelas brasileiras quando um colega me convidou para conhecer uma pessoa que visitava a nossa empresa. Era o Celso Athayde, ativista social, artista, escritor, esportista, profundo conhecedor das favelas e das periferias.

Celso é um dos nomes importantes da Central Única das Favelas, a CUFA, entidade já premiada pela UNESCO, que ele ajudou a criar há 20 anos com o MV Bill, a Nega Gizza e o Preto Zezé, entre outras pessoas. A CUFA é uma das maiores organizações brasileiras do terceiro setor e já tem atividades em mais de 15 países. Essas ações são coordenadas por uma holding social, a Favela Holding. Para planejar suas ações criaram um instituto de pesquisa e estratégias de negócios especializado na realidade das favelas brasileiras, o Data Favela.

Com a epidemia da Covid-19 a agenda da CUFA e de suas parceiras está focada em salvar vidas, buscar recursos para as famílias e amparar uma população muito vulnerável.

A maioria da população das favelas e das periferias é formada por pessoas pretas ou pardas e a CUFA sabe, na pele e na alma, quão desigual é o tratamento que pretos e pardos sofrem no Brasil, mesmo sendo mais da metade da população. A desigualdade é gigantesca em quase todos, senão em todos os indicadores.

Estudo do IBGE sobre as Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil mostra dados sobre as diferenças entre brancos e pretos ou pardos e escancara a enorme desigualdade existente em áreas ligadas ao trabalho, distribuição de renda, educação, moradia com a ausência de pelo menos um serviço de saneamento básico e representação política.

Em alguns setores a população das favelas e das periferias é ainda mais discriminada e seus direitos são ainda menores. Na questão da segurança pública e da violência contra a cidadania a situação é dramática. O número de pessoas dessas comunidades atingidas pela violência, as taxas de homicídios de seu grupo social e o número deles que lotam o sistema penitenciário brasileiro é acintosamente desigual e injusto.

Em um quadro como esse, a emergência da epidemia de Covid-19 só poderia agravar o que já é muito ruim. O caos na saúde seria acirrado com a crise econômica, o desemprego, a perda de renda dos informais e, por fim, o aumento da violência.

Em abril, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) entrou com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 que contou com a Defensoria Pública do Estado e inúmeras entidades da sociedade civil como amici curiae rogando por cautela na ação do Estado junto a essas comunidades “em razão do agravamento do cenário fático de letalidade da ação policial no Estado do Rio de Janeiro, em pleno quadro da pandemia da Covid-19”.

A iniciativa judicial, conhecida como ADPF das Favelas pela Vida, contou com o apoio de 92 acadêmicos que fazem parte da Rede Fluminense de Pesquisadores sobre a Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos. Em nota observaram que “as populações negras, pobres e residentes em favelas e/ou periferias da Região Metropolitana do Rio de Janeiro e demais municípios Fluminenses são as mais afetadas pelas operações policiais. São elas que têm suas áreas de moradia tratadas como territórios hostis, e seus corpos considerados alvos, expostos a todo tipo de arbítrio durante as ações policiais. Suas rotinas são duramente afetadas pelas incursões policiais que interrompemos serviços públicos dirigidos a essas populações, como escolas e postos de saúde.”

Em junho passado, o ministro Edson Fachin, do STF, proibiu operações policiais em favelas do Rio de Janeiro enquanto dure a pandemia.

No plenário virtual, o magistrado reiterou o voto já proferido no julgamento da medida cautelar, concedendo “ (i) que não se realizem operações policiais em comunidades durante a epidemia do COVID-19, a não ser em hipóteses absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificadas por escrito pela autoridade competente, com a comunicação imediata ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro – responsável pelo controle externo da atividade policial; e (ii) que, nos casos extraordinários de realização dessas operações durante a pandemia, sejam adotados cuidados excepcionais, devidamente identificados por escrito pela autoridade competente, para não colocar em risco ainda maior população, a prestação de serviços públicos sanitários e o desempenho de atividades de ajuda humanitária.”

As consequências da medida do ministro Edson Fachin foram medidas e as evidências mostram que em junho, as mortes por intervenção de policiais no Rio de Janeiro caíram 74% em relação ao mês anterior e que não houve aumento da criminalidade.

Os números confirmam a importância de uma decisão institucional para preservar vidas, em especial quando o objetivo é proteger setores vulneráveis da população.

As entidades seguem mobilizadas para garantir a manutenção da liminar pelo plenário do Tribunal e atentas para a importância de estender o campo da luta por integração e inclusão social para dentro das instituições do estado de direito. Isso requer operadores do direito de olhos abertos e nos lugares certos.

Nessa linha, o advogado cearense André Luiz de Souza Costa, Conselheiro Federal da OAB e único negro no Conselho, requereu que seja implementada ação afirmativa, na modalidade de cota racial, no âmbito dos órgãos da OAB – Conselho Federal, Conselhos Seccionais, Subseções e as Caixas de Assistência dos Advogados – para o preenchimento dos cargos de suas diretorias e de todos os seus membros, por advogados negros e advogadas negras, dentre os inscritos na Ordem, no percentual de 30% das vagas a serem preenchidas. Espera-se que seja bem-sucedido, uma vez que a OAB tem sido uma defensora atuante das ações afirmativas, em todas as esferas da sociedade brasileira.

A caneta institucional tem força, mas costuma se mover com mais determinação quando ao lado da lei há operadores do direito e mobilização da sociedade clamando por justiça.