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As escolhas de hoje e o futuro ameaçado

Se não houver planejamento do pós-crise e colaboração global, podemos ter os piores resultados na saúde e na economia

Covid-19
Preparação do Hospital de Campanha em Pelotas (RS) | Foto: Rodrigo Chagas

Henry Kissinger tem quase 97 anos e um impressionante currículo. Lutou como sargento do Exército Norte-Americano na II Guerra Mundial, fez o seu doutoramento e seguiu como professor na Universidade de Harvard, foi conselheiro de relações exteriores de muitos presidentes dos EUA e Secretário de Estado de Richard Nixon e Gerald Ford. Em 1973 ganhou o Prêmio Nobel da Paz, pelo cessar-fogo na Guerra do Vietnam, junto com o dirigente Vietnamita, Le Duc Tho, que recusou a premiação.

Na semana passada, Kissinger escreveu um artigo no The Wall Street Journal sustentando que após a pandemia do Covid-19 a ordem mundial será profundamente alterada. O artigo “The Coronavirus Pandemic Will Forever Alter the World Order” está tendo grande repercussão.

Toda crise tem três momentos, que se articulam para definir como será o futuro. O primeiro momento é a preparação para enfrentar o inesperado. Essa etapa deve ser permanente em qualquer organização. É a etapa de planejamento e organização básica para debelar a possível ameaça. O segundo momento é o enfrentamento da crise propriamente dita, onde o foco e os esforços são concentrados em reduzir danos e diminuir perdas. O terceiro momento é o planejamento do que virá após a crise. Os dirigentes devem levantar dados e informações para planejar como construir as condições de vida para seguir adiante, aproveitando as lições para fortalecer a sociedade com vistas a prosperar nos novos tempos e se defender de ameaças, que certamente tornarão a existir.

Desses três momentos, os dois últimos, enfrentamento da crise e preparação do futuro, são simultâneos e o planejamento para a transição de uma etapa para outra deve estar presente nos escalões estratégicos dos governos.

Lembra Kissinger que, nas experiências dramáticas anteriores, em especial as duas grandes guerras, havia “um propósito nacional mais elevado”, o que agora não há na maior parte dos países. A luta política tem sido um entrave para que os governos possam ser “eficientes e prospectivos para superar obstáculos sem precedentes em magnitude e alcance global”. Isso no Brasil é indiscutivelmente uma realidade.

O autor afirma que “manter a confiança do público é crucial para a solidariedade social, para o relacionamento das sociedades entre si e para a paz e estabilidade internacionais. As nações prosperam com a crença de que suas instituições podem prever calamidades, deter seu impacto e restaurar a estabilidade. Quando a pandemia do Covid-19 terminar, as instituições de muitos países terão fracassado”.

Com sua experiência em crises, o antigo secretário de Estado observa que o novo coronavírus atingiu uma escala e uma ferocidade sem precedentes e que, até agora,  ainda não há curas validadas pela ciência e nem vacinas.

Entretanto, o grande desafio ainda está por vir pois “os países estão lidando com a crise em grande parte em nível nacional, mas os efeitos da dissolução social do vírus não reconhecem fronteiras. Embora o ataque à saúde humana venha a ser temporário, o tumulto político e econômico que desencadeou pode durar gerações. Nenhum país (…) pode superar o vírus em um esforço puramente nacional. Atender às necessidades do momento deve ser combinado com uma visão e um programa colaborativo global”. E completa, “se não podemos fazer as duas coisas, enfrentaremos o pior de cada uma”.

O artigo segue com três propostas. A primeira no campo da saúde, dando sugestões para aumentar a resiliência global a doenças infectocontagiosas. O segundo, na área da economia global, lembra a necessidade de tratar dos efeitos do caos iminente na economia, sem esquecer das populações mais vulneráveis do mundo. O terceiro diz respeito a política, a ordem mundial liberal e o desafio que as democracias do mundo têm em defender seus valores iluministas.

Kissinger conclui seu artigo lembrando que “o desafio histórico para os líderes é gerenciar a crise enquanto constroem o futuro. O fracasso pode incendiar o mundo”.

Quais são e como desenhar as políticas públicas brasileiras para construir o futuro frente a essa pandemia?

Sabemos que as boas políticas públicas precisam ser organizadas com metas claras e estratégias baseadas em evidências, fatos e dados. Isso vale para o momento de enfrentar a crise e vale igualmente para transitar rumo ao futuro.

À luz do debate levantado, é fácil observar que nós, brasileiros, não estamos enfrentando essa crise adequadamente.

Começamos mal, com nosso governo federal negando o problema. No alto escalão da administração pública federal não há um entendimento comum sobre a real dimensão da crise que estamos passando. Nem é preciso lembrar a menção a “resfriadinho” ou a comparação indevida com outras viroses, para as quais já há vacina e remédios. Basta ler os jornais diários para ver a postura presidencial absolutamente inadequada.

Se Kissinger tem razão em relação à construção de uma nova ordem mundial, o que podemos esperar de um Ministério de Relações Exteriores que não valoriza o esforço diplomático multilateral e, nas relações bilaterais, provoca, sem qualquer objetivo, o nosso maior parceiro comercial.

O próprio enfrentamento da crise já está uma desordem. O presidente da República e seu círculo mais estreito, que deveriam liderar a Nação e buscar serenidade em um momento tão difícil, fazem pouco caso do conhecimento técnico e científico na área médica. Desdenham e ameaçam aqueles que defendem medidas profiláticas reconhecidas como eficazes no mundo inteiro. Entre os ameaçados está o próprio ministro da Saúde, auxiliar diretamente escolhido pelo presidente.

O texto de Henry Kissinger sobre a dimensão dos desafios que o mundo tem pela frente sugere uma reflexão sobre o nosso futuro.

Inegável que surpreende negativamente ver o presidente da República e o general chefe do Gabinete de Segurança Institucional gastando o seu tempo e desviando o seu foco das questões centrais da crise para disputar contra a ciência, contra a técnica e contra a experiência clínica de muitos profissionais gabaritados a prescrição médica para o tratamento dos enfermos com o vírus.

Isso se dá em um momento em que a confiança na ciência aumentou no mundo todo. Pesquisa recente realizada pela OMS em dez países mostrou que 85% dos entrevistados disseram que é preciso ouvir mais os cientistas e menos os políticos. No Brasil, o índice é de 89%!

O alto escalão do governo brasileiro e seu círculo mais próximo não pensam assim. Entendem que os cientistas e os técnicos são prepotentes e arrogantes. Eles estão na contramão e o Brasil poderá pagar um alto preço por isso. É patético e revoltante.