A discussão sobre a Medida Provisória que garantiu o valor mínimo de R$ 400 para o Auxílio Brasil mostrou mais uma vez como as regras fiscais nesse país estão à deriva. Enquanto governo e Congresso discutiam tornar permanente o benefício extraordinário, que venceria no fim do ano, técnicos da área econômica e do Planalto davam aval para que isso fosse feito sem qualquer medida compensatória, conforme o JOTA antecipou nessa quarta.
A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) define que a criação ou aumento de despesas obrigatórias de caráter continuado devem ser acompanhadas de medidas permanentes de aumento de receita ou corte de despesas. Mas a visão do governo é que essa exigência, que no ano passado motivou a criação do benefício temporário para o auxílio chegar a R$ 400, estaria afastada pelo artigo 118 do ato das disposições constitucionais transitórias, instituído pela famigerada PEC dos Precatórios.
“Os limites, as condições, as normas de acesso e os demais requisitos para o atendimento do disposto no parágrafo único do art. 6º e no inciso VI do caput do art. 203 da Constituição Federal serão determinados, na forma da lei e respectivo regulamento, até 31 de dezembro de 2022, dispensada, exclusivamente no exercício de 2022, a observância das limitações legais quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa no referido exercício”, diz o trecho que é hoje o último artigo do texto constitucional vigente.
A interpretação do governo é polêmica, apesar de fontes do Executivo estarem convictas de sua aplicação nesse caso porque, entendem, esse dispositivo só faria sentido com esse uso. Os questionamentos já tem sido feitos abertamente e também nos bastidores.
Fontes do Tribunal de Contas da União (TCU) entendem que a leitura correta é que a dispensa só é para a compensação em 2022. Um interlocutor destaca que essa interpretação parece ainda mais grave quando se considera o fato de que se está em ano eleitoral com chances de uma sucessão presidencial. Isso, de acordo com essa fonte, seria uma espécie de “salvo conduto” para comprometer espaço fiscal de um possível governo futuro sem observância dos requisitos legais mais básicos.
O consultor do Senado e especialista em finanças públicas, Vinícius Amaral, adiciona outro ponto. Segundo ele, a referência do artigo 118 do ADCT é a um programa universal de renda básica e não ao Auxílio Brasil, que é mais focalizado, ainda que tenha sido ampliado em comparação com seu antecessor, o Bolsa Família.
“A Emenda Constitucional nº 114/2021 estabeleceu que todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social — a propósito, um conceito bem mais amplo do que pobreza ou extrema pobreza — terá direito a uma renda básica, garantida pelo Estado por meio de programa permanente. E justamente para viabilizar a implantação desse programa, a Emenda também dispensou, exclusivamente no exercício de 2022, a observância das regras referentes à criação de despesa, das quais a mais relevante é a obrigação de compensação fiscal definida no art. 17 da LRF”, salienta Amaral. “Não me parece que essa exceção possa ser empregada para transformar o benefício extraordinário do Auxílio Brasil em permanente. Isso porque entendo que o Auxílio Brasil não é o programa de renda básica estabelecido pela EC 114”, completa.
O técnico salienta que a lei do Auxílio Brasil não o apresenta como sendo o novo programa previsto na Constituição. “Em segundo lugar, e mais importante: a Emenda definiu, com clareza solar, que a renda básica é um direito das pessoas em situação de vulnerabilidade social. O Auxílio Brasil, no entanto, assim como seu antecessor, o Programa Bolsa Família, não são direitos, pois estão sujeitos à disponibilidade de dotações orçamentárias, o que leva às inadmissíveis filas de espera de beneficiários”, diz.
Cristiane Coelho, que também é consultora nessa área e professora do IDP, é outra especialista que critica a interpretação do governo e defende que deveria haver compensação. Segundo ela, a leitura do Executivo até faria sentido se tivesse sido aprovada a proposta original para esse artigo, que surgiu ainda na tramitação da PEC dos Precatórios na CCJ do Senado, mas que foi alterada na versão final. Naquele desenho, lembra, não havia a restrição clara para 2022 que depois veio a ser incorporada no texto.
É preciso deixar claro que a decisão de tornar o auxílio permanente em R$ 400 é correta e necessária. Mas é de fato questionável a maneira como governo e Congresso estão agindo. Primeiro criam um benefício temporário para dar um drible na LRF e viabilizar um valor maior no ano eleitoral. Depois, no apagar das luzes de 2021, enxertam um dispositivo bastante dúbio em uma PEC carregada de polêmicas, para dizer o mínimo, para fazer um novo drible na regra fiscal que busca garantir a sustentabilidade fiscal de longo prazo. E, por fim, partem para a interpretação menos restritiva do texto constitucional de modo que, às vésperas da eleição, evite-se o constrangimento de o governo ter que discutir a continuidade do benefício.
O Brasil tem enormes urgências sociais e fiscais. De fato, é necessário um programa social robusto, que pague mais aos mais pobres, especialmente após os estragos causados pela pandemia. Mas também é preciso clareza de longo prazo sobre os rumos fiscais, o que expedientes dessa natureza pouco contribuem.
Esse episódio do Auxílio Brasil mostra mais uma vez a necessidade de uma grande revisão e harmonização das regras fiscais hoje vigentes, que lhes dê maior coerência para lidar com os diversos problemas econômicos e sociais do país, sem estimular os constantes dribles e jeitinhos que a classe política tem dado a cada momento.