
As incertezas em torno da possibilidade de o governo conseguir cumprir a meta fiscal de zerar o déficit primário no ano que vem cresceram nas últimas semanas. Com os ruídos políticos embaralhando o cenário para as medidas de aumento da arrecadação e os dados econômicos mostrando uma receita claudicante na primeira metade do ano, essa piora na percepção é natural.
O risco de descumprimento da meta é real, reconhecido internamente no governo. O mercado hoje precifica o descumprimento da meta, com a mediana das projeções no Focus com um cenário de déficit primário de 0,8% para 2024, mas mostra-se mais inquieto com a possibilidade, que começou a ser verbalizada por governistas, de o governo alterar as metas definidas.
Porém, ainda não dá para dizer que o alcance do ambicioso objetivo para 2024 está fora do jogo e o governo inescapavelmente revisará sua meta. Esse quadro estará mais claro entre o fim deste ano – quando o orçamento a ser enviado será votado e teremos informações mais objetivas sobre a evolução das medidas de arrecadação – e março de 2024, quando sairá o primeiro relatório bimestral com o cenário atualizado para o ano.
Por ora, é importante ter clareza que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, continua obcecado em melhorar a arrecadação e adotar as medidas necessárias para isso. Certamente, ele não conseguirá tudo que quer, mas parte ele já conseguiu e ainda deve ter parcialmente o que vai propor ou está em tramitação, como os temas dos fundos fechados (exclusivos), offshores, incentivos de ICMS e taxação de comércio eletrônico, além da possibilidade de propor o fim ao Juros sobre Capital Próprio.
É bom lembrar que a Fazenda tem instrumentos para agir pelo lado da despesa no ano que vem, ainda que não seja a opção preferencial do Planalto. O novo arcabouço vai obrigar o governo a contingenciar gastos, caso fique evidente que a trajetória fiscal está fora da meta.
Não se deve imaginar que o presidente Lula vai topar contingenciamentos enormes, e mesmo o arcabouço limita os cortes para garantir 75% das despesas discricionárias orçadas. Mas o próprio Tesouro, como ficou claro em documento com projeções fiscais divulgado recentemente, já considera um cenário de contingenciamento de 0,5% do PIB.
Um corte da ordem de R$ 50 bilhões parece muito alto para os princípios do atual governo, e politicamente parece que o teto para contingenciamento estaria mais perto de R$ 30 bilhões, mas é bom considerar que o 0,5% está na planilha dos gestores da política fiscal.
Há também que colocar no cenário o tradicional empoçamento de despesas, quando os ministérios têm autorização, mas não conseguem fazer seus gastos. A Fazenda trabalha com algo entre R$ 20/30 bilhões em seus cenários.
Para além disso, há também a margem de tolerância da meta, que vai até um déficit de R$ 28,5 bilhões. Dessa forma, a despeito da necessidade grande de receitas, esses três fatores dão uma margem de manobra relevante para a equipe econômica gerenciar a execução orçamentária sem que se tenha todas as receitas hoje consideradas necessárias.
Além disso, o desenho do novo arcabouço incentiva o governo a buscar cumprir a meta e, por outro lado, não impõe sanções muito draconianas, caso o governo não consiga ficar nem no limite de tolerância. A principal consequência é crescer menos a despesa no ano seguinte, além de alguns vetos para ampliar gastos específicos e contratações.
Nesse contexto, caso o cenário se mostre complicado para o alcance da meta, uma das contas será entre o custo reputacional de se mexer no alvo e as brandas sanções do arcabouço, que apenas colocam freio no ritmo de crescimento do Estado preconizado pelo governo petista. A discussão recente da meta de inflação dá pistas de que nem sempre Lula faz valer a lógica heterodoxa.
O mercado também se incomodou com recentes movimentos e discussões que lembram algo do passado de excessos na política econômica. Entre elas, a questão de se retirar R$ 5 bilhões de déficit das estatais da meta de primário dessas empresas, e o debate sobre o estoque de precatórios ser tratado como despesa financeira.
O primeiro foi uma decisão efetiva, no âmbito do PAC, e de fato lembra medidas do passado de expansionismo fiscal e malabarismos da era Arno Augustin. Mas é importante ponderar que o valor é pequeno e que o próprio arcabouço fiscal impede o governo de estender o alcance dessa iniciativa para as despesas primárias do orçamento geral da União.
No caso dos precatórios, a discussão está limitada ao passivo gerado pela PEC aprovada no governo passado, que instituiu um calote nesse tipo de dívida. A melhor solução certamente não é mudar o nome da despesa, que de fato tem natureza primária, mas é preciso ponderar que, mantendo ou não o nome correto, o problema precisa ser resolvido e antecipar uma solução e remover essa incerteza de longo prazo é um caminho que faz sentido.
Dessa forma, apesar do crescimento dos ruídos e das incertezas, em parte provocados pelo próprio governo, a opção de Haddad pelo pragmatismo ainda está dando as cartas no governo, com respaldo de Lula. Até quando isso vai durar segue uma questão, mas não há motivo para dizer que ela já estaria sendo abandonada.