
Em coluna neste espaço, Thales Stucky tratou de recente julgamento da Câmara Superior de Recursos Fiscais – CSRF que decidiu pela ilegalidade de cumulação da multa isolada e da multa de ofício.
Não é necessário reiterar a excelente análise realizada no artigo referido. O objeto deste breve ensaio diz respeito a questão da integridade e coerência da própria jurisprudência do Carf com relação às suas decisões prévias, inclusive aquelas que foram objeto de Súmula.
Para fins de contextualização, deve-se notar que a partir de decisões reiteradas sobre a inviabilidade da concomitância entre as multas isolada e de ofício, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais editou a Súmula nº 105, assim redigida:
A multa isolada por falta de recolhimento de estimativas, lançada com fundamento no art. 44 § 1º, inciso IV da Lei nº 9.430, de 1996, não pode ser exigida ao mesmo tempo da multa de ofício por falta de pagamento de IRPJ e CSLL apurado no ajuste anual, devendo subsistir a multa de ofício.
As decisões que levaram à edição da referida Súmula se baseavam em dois argumentos principais. Em primeiro lugar, reconheciam que a aplicação concomitante das duas espécies de punição implicariam bis in idem, uma vez que o contribuinte receberia duas punições pelo mesmo fato. Em segundo lugar, aplicava-se a consunção, mantendo-se a punição mais grave, sendo a mais leve absorvida. A consunção seria decorrência da natureza sancionatória das multas, sendo de observância obrigatória para todos os casos de punições administrativas.
Não obstante a robustez dos argumentos e a reiteração do entendimento até a edição de uma Súmula, alguns julgamentos do Carf entendiam que, após o advento da Lei nº 11.488/2007, ficou restabelecida a viabilidade da cumulação de multas isolada e de ofício.
Com efeito, em muitos julgados ficou estabelecido que a Súmula 105 do Carf referia-se à redação anterior do artigo 44 da Lei nº 9.430/1996, ao estipular a mesma base de cálculo para as duas espécies de multa. Após as modificações operadas pela Lei nº 11.488/2007, a multa isolada passou a ter base de cálculo diferente, isto é, o valor do pagamento mensal, e a multa de ofício, permanecia a incidir sobre a totalidade ou diferença do imposto devido. Segundo o entendimento presente em alguns julgados, a mudança legislativa teria feito com que a identidade das multas isolada e de ofício não mais existisse.
Concretamente, isso significou que a autoridade fazendária lavrasse autos de infração exigindo além dos valores referentes aos tributos supostamente devidos, os juros legais, somadas à multa de 75% sobre a totalidade ou a diferença do tributo a recolher (i.e. multa de ofício), cumulada com multa de 50% sobre as estimativas mensais que deveriam ter sido antecipadas pelo contribuinte (i.e. multa isolada).
Na prática, esse entendimento acabava por tornar inaplicável a Súmula 105 aos processos envolvendo períodos posteriores a 2007.
Esse entendimento, que vinha ganhando força perante alguns conselheiros, é problemático por três razões principais.
Em primeiro lugar, por violar de maneira expressa e direta, o artigo 72 do Regimento do Interno do Carf, que determina a “observância obrigatória” das Súmulas pelos membros do Carf. Assim está redigido o dispositivo:
Art. 72. As decisões reiteradas e uniformes do Carf serão consubstanciadas em súmula de observância obrigatória pelos membros do Carf.
Com efeito, uma vez sumulado, o entendimento deve ser seguido e observado pelos conselheiros. A obrigatoriedade é de tal forma relevante que o artigo 45 do próprio Regimento Interno determina dentre os deveres que:
Art. 45. Perderá o mandato o conselheiro que:
(…)
VI – deixar de observar enunciado de súmula ou de resolução do Pleno da CSRF, bem como o disposto no art. 62;
Ainda, a sua observância é obrigatória a tal ponto que que o próprio RICARF prevê o procedimento para a revisão ou o cancelamento de uma Súmula. Ou seja, uma vez estabelecido e consolidado o entendimento, cristalizado por meio de uma Súmula, somente por meio de procedimento específico é que poderá ser revisto. Veja-se o artigo 74 do RICARF:
Art. 74. O enunciado de súmula poderá ser revisto ou cancelado por proposta do presidente do Carf, do procurador-geral da Fazenda Nacional, do secretário da Receita Federal do Brasil ou de presidente de Confederação representativa de categoria econômica habilitada à indicação de conselheiros.
Isso quer dizer que a Súmula não poderá ser desrespeitada ou não aplicada, devendo haver procedimento próprio e específico para que possa ser decidida pela sua manutenção, revisão ou revogação. Em todos os outros casos, havendo pertinência fática entre o auto de infração e a Súmula, os conselheiros estão obrigados a aplicá-la e observá-la.
O RICARF também prevê outras hipóteses nas quais a importância das Súmulas é reiterada, como no caso do não cabimento de recursos nos quais o paradigma não aplica súmula ou o cabimento de agravo que contrariar súmulas. No entanto, dada a natureza deste breve artigo, apenas se fará menção, sem adentrar nos detalhes das outras previsões que demonstram a relevância e vinculatividade das súmulas do Conselho.
Em segundo lugar, o entendimento é problemático por violar a obrigação de os Tribunais manterem sua jurisprudência estável, íntegra e corente, imposta pelo Código de Processo Civil. Com efeito, a aplicação do Código de Processo Civil ao processo administrativo fiscal é decorrência direta do artigo 15 do CPC, assim redigido:
Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente. (grifei)
Assim, a obrigação prevista no artigo 926 do CPC é integralmente aplicável ao CARF, como verdadeiro Tribunal Administrativo competente para o julgamento de recursos em matéria tributária. Assim dispõe o Código de Processo Civil:
Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
1º Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
2º Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
Vê-se, pois, que o CPC determina que os Tribunais têm a obrigação de observar, por meio da aplicação de sua própria jurisprudência, segurança para os jurisdicionais. No caso do Carf, a obrigação de observar sua própria jurisprudência para garantir segurança aos contribuintes. O mesmo artigo 926 prevê as hipóteses de edição de súmula para fixação e consolidação da jurisprudência dominante.
Em decorrência disso, a inobservância de uma Súmula do próprio Carf faz com que a jurisprudência administrativa não seja estável, tampouco íntegra nem coerente. Pelo contrário.
As decisões proferidas em desatenção à Súmula 105 fazem com que a jurisprudência do Carf se torne, primeiro, instável, pois não mantém o entendimento aplicado aos casos anteriores e que levaram à edição da Súmula.
Torna ainda a jurisprudência do Tribunal Administrativo débil, pois não reconhece a autoridade de seus próprios julgados e da posição consolidada formalizada pelo procedimento de edição de súmulas. Além disso, torna a jurisprudência incoerente, pois profere decisões opostas em casos semelhantes, gerando incerteza e confusão perante os contribuintes jurisdicionados.
Em terceiro lugar, o entendimento é problemático, pois a vinculatividade da Súmula 105 não decorre de um ato formalizando seu caráter obrigatório. Com efeito, a Portaria MF nº 277, de 07 de junho de 2018, não elencou a Súmula 105 dentre aquelas que vinculariam toda a Administração Pública Federal.
No entanto, como acima analisado, a edição de uma Súmula representa a cristalização de uma posição majoritária e de um posicionamento já consolidado perante o órgão julgador. A mera declaração, por uma Portaria Ministerial, não faz com que essa posição consolidada por dezenas e centenas de julgamentos simplesmente desapareça.
Em outras palavras, a Súmula vincula não pela existência de um ato formal do Ministério, reconhecendo a sua vinculatividade; a súmula vincula pela consolidação de um entendimento, reconhecido pelos próprios julgadores, estabelecido depois de anos de discussões e debates no seio dos processos e dos julgamentos, e reconhecida pelo próprio Carf como sendo a posição do órgão julgador.
Sem adentrar nas especificidades teóricas envolvidas na teoria dos precedentes judiciais, pode-se dizer que as Súmulas podem ser formalmente vinculantes, ou seja, quando há uma regra que define uma decisão anterior como vinculante. Elas também podem ser materialmente vinculantes, ou seja, quando possuem razões e fundamentos que sejam necessários, suficientes e pertinentes para a decisão de casos semelhantes no futuro.
Como se percebe facilmente, a Súmula 105 se encaixa perfeitamente no caso de vinculação material, ainda que se possa discutir se o artigo 72 do RICARF não garante a sua vinculatividade formal.
Diante de todo o exposto, o recente julgamento (acórdão 9101-005.080) da Câmara Superior coloca em xeque esse entendimento que violava a redação expressa da Súmula, para tornar a jurisprudência do Carf mais estável, íntegra e coerente. Ao final, para garantir mais segurança jurídica aos contribuintes.
O episódio 43 do podcast Sem Precedentes analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Ouça: