“De um modo geral a peste introduziu na cidade pela primeira vez a anarquia total. (…) o temor dos deuses e as leis dos homens já não detinham ninguém, pois vendo que todos estavam morrendo da mesma forma, as pessoas passaram a pensar que impiedade e piedade eram a mesma coisa; além disto, ninguém esperava estar vivo para ser chamado a prestar contas e responder por seus atos.”
Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, Livro II, 53
A crise provocada pelo coronavírus terá consequências permanentes na sociedade e no ordenamento jurídico brasileiros. Não será diferente para o direito tributário e para os processos administrativos. As dificuldades pelas quais passam os contribuintes nesses meses de confinamento, isolamento e fechamento de boa parcela dos estabelecimentos comerciais trará consequências drásticas para a arrecadação e para as finanças públicas.
Os órgãos de fiscalização dos tributos federais, seguindo suas competências e prerrogativas, eventualmente lavrarão autos de infração em face de contribuintes inadimplentes ou cujas obrigações, tanto principais quanto acessórias, não tenham, na visão da fiscalização, sido operacionalizadas de acordo com os mandamentos legais.
Os contribuintes, irresignados com tais autuações, apresentarão suas impugnações e seus recursos. Ao fim, essas discussões chegarão ao Carf para a solução final na esfera administrativa.
Em termos singelos: as autuações decorrentes da inadimplência provocada pela crise atual – repita-se: uma crise sem precedentes na história do direito tributário brasileiro – chegarão ao Carf em alguns anos. E será necessário que, quando a hora chegar, os membros do Conselho tenham consciência da excepcionalidade e profundidade da crise, das medidas tomadas pelos entes públicos para evitar a proliferação do vírus e, principalmente, de como elas afetaram a saúde financeira dos contribuintes.
Diante disso, este artigo tem duas finalidades: de um lado, deixar registrada a gravidade da crise provocada pelo coronavírus e, de outro, fazer um exercício – talvez temerário[1] – de previsão, e, com ele, informar aos futuros julgadores do Conselho que as condições atuais eram incomparáveis a outras crises vivenciadas pelos contribuintes brasileiros.
Toma-se como elemento de comparação, acórdão unânime e recente do Carf, no qual o Conselho foi confrontado com o argumento da crise financeira e suas consequências para o contribuinte. Na decisão, o Conselho não deu guarida aos argumentos do contribuinte de que a crise poderia ser caracterizada como força maior e que os problemas advindos da crise poderiam afastar ou relativizar as consequências do inadimplemento, nos seguintes termos:
A Recorrente alega que passou a deixar de recolher os tributos em razão de força maior, caracterizada por crise financeira. A doutrina diverge acerca do conceito do que seria força maior ou caso fortuito e das consequências advindas de um ou outro instituto.
Fato é que, independentemente da discussão doutrinária, as hipóteses de ocorrência de força maior, normalmente resultantes de forças da natureza, como uma enchente em um determinado município, para implicarem exclusão, suspensão ou extinção de tributos, devem ser reconhecidas por atos legais. Todavia não há qualquer ato legal reconhecendo a crise financeira durante o ano-calendário 2014 com hipótese de força maior a ensejar a extinção ou moratória de impostos.
Veja que a crise financeira é uma situação econômica que atinge a todos indistintamente. (…) Não é possível afastar o lançamento efetivado em relação ao Recorrente por motivo de crise financeira, posto que esta é uma obrigação tributária a todos imposta, e a crise atinge também a todos.
(…)
Incabível a aplicação de um tratamento diferenciado para a Recorrente, tendo em vista que a obrigação de recolher o IRRF é imposta a todos os contribuintes que realizem o fato gerador, a despeito de crise financeira. (Acórdão nº 1301-003.990)
A longa transcrição se justifica por quatro aspectos levantados no acórdão que merecem ser analisados de forma detalhada.
Em primeiro lugar, o argumento de que a crise não pode caracterizar força maior. Nesse ponto, pode-se concordar com as conclusões a que o Conselho chegou. No entanto, deve-se ter em mente que uma crise econômica difere substancialmente da crise pela qual passamos no momento.
A crise provocada pela Covid-19 não é apenas econômica. Ela é também econômica, mas possui outras facetas sociais, políticas e institucionais que são, talvez, tão ou mais relevantes que a derrocada econômica que vem causando.
Em outras palavras: a comparação desta crise com as demais crises econômicas para a caracterização da força maior é indevida e tenderá a relativizar e diminuir a importância do atual momento.
Esse viés retrospectivo pode levar os julgadores a, no futuro, considerar que a crise instalada pelo coronavírus era menor ou teve menos consequências do que as efetivamente enfrentadas pelos contribuintes no momento.
Em segundo lugar, que não houve ato legal a reconhecer a força maior. De fato, em crises passadas, não houve atos formais de declaração de força maior ou calamidade.
Na atual crise, todas as esferas declararam, de uma forma ou de outra, situação de calamidade. No que concerne aos tributos federais, desde o 20 de março houve o reconhecimento formal da calamidade, posteriormente confirmado pelo Congresso Nacional.
Quer isto dizer que, na atual crise, houve a caracterização formal da calamidade, que reconheceu a situação para a finalidade específica do artigo 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, mas também para justificar o fechamento de estabelecimentos empresariais considerados como não essenciais.
Esse ponto é de extrema relevância: os casos futuros deverão levar em consideração que muitos contribuintes foram concreta e efetivamente proibidos de exercerem normalmente as suas atividades.
Diretamente relacionado, em terceiro lugar, o argumento de que a crise atinge a todos indistintamente. Ainda que crises econômicas afetem toda a sociedade, a atual crise provocada pelo coronavírus afetou alguns contribuintes de forma mais drástica que outros.
E isso por uma razão bastante singela: como referido, alguns contribuintes tiveram suas atividades consideradas essenciais e puderam manter a produção, comercialização ou prestação de seus serviços. Outros, no entanto, foram proibidos de manter suas atividades normais, devendo buscar meios alternativos – se existentes – para a manutenção de suas atividades.
Em boa parcela dos casos, entretanto, os meios alternativos não existiam ou demandariam transformações custosas e demoradas. Nesses casos a simples paralisação das atividades se mostrou como a medida mais adequada.
Na análise de casos futuros, portanto, deve-se levar em consideração que medidas estatais proibiram ou tornaram extremamente dificultosa a manutenção das atividades de muitos contribuintes, que não foram incluídos no rol de atividades essenciais.
Em quarto lugar, que não se deve aplicar tratamento diferenciado ao contribuinte sob pena de violar a igualdade. Não há dúvidas que a igualdade é premissa central e fundamental no sistema tributário.
No entanto, a igualdade também determina que, em algumas situações excepcionais, algumas adequações na legislação – seja por juízos de equidade, seja por juízos de derrotabilidade das regras aplicáveis – são exigidas pelo próprio mandamento da igualdade.
Dessa forma, tratar indistintamente a todos os contribuintes, aplicando mesmo tratamento àqueles a quem os entes estatais vedaram a manutenção das atividades, é o oposto da igualdade.
Não se propugna a criação contra legem ou praeter legem de situações não previstas no ordenamento. Ao contrário, o que se propugna ao julgador dos futuros casos que tenha consciência e leve em consideração a excepcionalidade e a gravidade da crise para contribuintes específicos, que não puderam manter suas atividades durante o prazo estipulado pelos poderes públicos.
Fazer exercícios de previsão do futuro nunca é atividade fácil. Pelo contrário. Na maioria das vezes a previsão é equivocada e em nada se assemelha ao que ocorrerá de fato. No entanto, isso não deve isentar aqueles que buscam o aprimoramento das instituições de julgamento administrativo de deixar registrado, para os futuros membros do Carf, a gravidade da situação ora vivenciada por todos os brasileiros.
Com efeito, o futuro CARF deverá manter sempre em mente que a crise que hoje vivemos não foi como qualquer outra. Que as dificuldades experimentadas pelos contribuintes não são comparáveis a outras crises econômicas, sociais, institucionais ou políticas.
Os julgadores do futuro Carf deverão lembrar que a crise atual é uma crise que engloba todos esses aspectos e outros ainda: vivemos uma crise econômica sem precedentes, uma crise institucional entre os Poderes da República, uma crise política entre as esferas estatais, uma crise de confiança na economia e na sua capacidade de recuperação, uma crise no emprego, uma crise no sistema de saúde e assim em diante.
Pode-se terminar com outra referência a Tucídides, um dos mais talentosos historiadores das origens da civilização ocidental, já transcrito na epígrafe:
Deve-se olhar os fatos como estabelecidos com precisão suficiente, à base de informações mais nítidas, embora considerando que ocorreram em épocas mais remotas. Assim, apesar de os homens estarem sempre inclinados, enquanto engajados numa determinada guerra, a julgá-la a maior, e depois que ela termina voltarem a admirar mais os acontecimentos anteriores, ficará provado, para quem julga por fatos reais, que a presente guerra terá sido mais importante que qualquer outra ocorrida no passado.[2]
A guerra que se trava contra o coronavírus é a maior batalha que os contribuintes brasileiros jamais enfrentaram. Todas as outras crises vivenciadas ficam pálidas se comparadas com a atual. A afirmação não é exagero, hipérbole ou retórica vazia.
E isso não pode e não deve ser esquecido pelo Carf. Agora e, principalmente, no futuro.
[1] HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Tradução Cid Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 61 e seguintes.
[2] Tucídides. História da Guerra do Peloponeso. Tradução Mario da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 1987, Livro I, 21.